LIDO COM INTERESSE – 23
Título: Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões
Autor: João Gaspar Simões
Editores: Publicações Europa-América
Edição: Março de 1957
Sim, leu bem, o livro foi mesmo publicado em 1957 e descobri-o há meia dúzia de anos no processo de encerramento da casa dos meus pais. Deve ter sido o meu tio, o escritor Branquinho da Fonseca, que o ofereceu ao irmão, o meu pai, que era engenheiro aeronáutico e pouco dado a poesias. Só quando se reformou é que se dedicou à História. Ao fim destes anos todos tive que abrir o livro com uma faca pois nunca tinha sido folheado, por certo passando despercebido à minha mãe que tanto lia como método de estimulação dos neurónios – ela própria o dizia – naturalmente enferrujados pela estupidificante ocupação de dona de casa.
O meu tio era amigo do João Gaspar Simões e no relacionamento pessoal não ficaram sequelas da polémica que tiveram no âmbito da Presença. Continuaram a relacionar-se até que um deles morreu e como ambos viviam em Cascais, o relacionamento estendia-se às duas famílias com a naturalidade de quem se aprecia mutuamente.
Infelizmente, eu era muito novo (como cronologicamente me competia) e não tinha maturidade para entender as conversas deles. Mas tenho-a hoje e tento remediar o irremediável lendo as obras de cada um. Uma das conversas que maior pena me faz hoje não ter então entendido foi a que se passou à minha frente num jantar que os meus tios ofereceram ao Jorge Amado e Zélia Gattai, ao João Gaspar Simões e mulher, a D. Mécia que era muito amiga da minha tia. O meu avô, Tomás da Fonseca, também estava presente pois tanto ele como eu passávamos algumas temporadas na casa dos meus tios na Malveira (a de Cascais, não a dos bois), ele para este tipo de relações literárias e eu para deambular por Cascais enquanto a minha família directa não abria a casa de Verão perto da Cidadela, frente à baía.
O meu avô e eu acompanhávamo-nos muito e ele teve uma enorme influência no processo de formação do meu pensamento. Os meus primos não estavam presentes por qualquer razão que não recordo e eu deixei-me ficar calado num canto da mesa a tentar entender tudo o que de facto me escapou. E do que naquele jantar foi dito só me lembro duma risota geral por causa do conceito de que «o mundo é a casa dos homens e a casa é o mundo das mulheres». Dos presentes no jantar só a escritora brasileira e eu somos hoje vivos mas, tendo ela mais de 90 anos, não deve ter paciência para recordar o que foi conversado durante aquele encontro. Assim se perde uma conversa que deve ter sido interessantíssima. Paciência, o que não tem remédio remediado está.
Eu diria que aqueles cuja conversa não entendi eram pessoas que não andavam por cá para se limitarem a consumir oxigénio. Fernando Pessoa tinha uma expressão bastante melhor para referir os outros, os estéreis de ideias: «cadáveres adiados que procriam» (pág. 28 op. cit.).
Explicado o contexto familiar em que o livro me chegou às mãos, colhe referir por absurdo um conselho que Fernando Pessoa dá a João Gaspar Simões na carta que lhe escreveu em 3 de Dezembro de 1931 citando um diplomata francês que não identifica: “Nunca explicar, nunca se desculpar, nunca se arrepender” (pág. 89). Parece que João Gaspar Simões tentara justificar uma crítica que fizera na Presença a uns poemas de Pessoa[1] e que este aceitara lindamente apesar de logo de seguida dizer que não concordava com ela.
Mas não estando nós habituados a ler prosa de Fernando Pessoa, estas cartas foram para mim uma revelação completa e admito que também o pudessem ser para os eruditos se esses lhes tivessem acesso: mais do que o conteúdo que nalgumas é meramente comercial mas sobretudo pelo estilo da escrita corrente de um homem a quem as ideias se formavam mais rapidamente do que a máquina conseguia escrever. Lembrou-me Kant que numa só frase inclui tantos conceitos que é necessário recorrermos a vírgulas, travessões e parênteses – que nem sempre lá estão e que por vezes estão em lugares por que não esperávamos – para decompormos temas e ideias.
A propósito do livro O Mistério da Poesia que João Gaspar Simões pedira a Fernando Pessoa para criticar, diz este a certa altura, a propósito da preocupação explicativa do autor: (…) O Gaspar Simões cresceu mentalmente – cresce-se mentalmente até aos 45 anos – e está atravessando uma fase de uma doença de crescimento. Sente a necessidade de se explicar mais, e mais profundamente, do que fez em “Temas”, mas, em parte, não atingiu ainda o comando dos meios de aprofundamento, e, em parte, busca aprofundar pontos da alma humana que não haverá nunca meios para aprofundar. De aí – sempre, a meu ver – o que de febril, de precipitado, de ofegante estorva a lucidez substancial de certas observações, e priva outras, centralmente, de lucidez.
À parte o que vejo nisto de uma simples manifestação de evolução íntima, creio que se entrega um pouco mais do que deveria às influências e sugestões do meio intelectual europeu, com todas as suas teorias proclamando-se ciência, com todos os seus talentos e hábeis proclamando-se e proclamados génios. Não o acuso de não ver isto; na sua idade nunca isto se vê. Pasmo hoje – pasmo com horror – do que admirei – sincera e inteligentemente – até aos 30 anos, no passado e no (então) presente da literatura internacional. Comigo isto deu-se tanto com a literatura como com a política. Pasmo hoje, com vergonha inútil (e por isso injusta) de quanto admirei a democracia e nela cri, de quanto julguei que valia a pena fazer um esforço para bem da entidade inexistente chamado «o povo», de quão sinceramente, e sem estupidez, supus que à palavra «humanidade» correspondia uma significação sociológica, e não a simples acepção biológica de «espécie humana. (…)» (pág. 92 e seg.)
E para meu espanto, daqui passa a uma análise social de inspiração freudiana que acusa de ser causa de grandes desvirtuamentos do comportamento das gentes: (…) Isto dá azo a que se possam escrever, a título de obras de ciência (que por vezes, de facto, são), livros absolutamente obscenos, e que se possam «interpretar» (em geral sem razão nenhuma crítica) artistas e escritores passados e presentes num sentido degradante e Brasileira do Chiado assim ministrando masturbações psíquicas à vasta rede de onanismos de que parece formar-se a mentalidade civilizacional contemporânea. (…)»
Para além desta, há no livro várias referências ao espírito degradante e mesquinho dos frequentadores habituais da Brasileira do Chiado, instituição que por isso mesmo o poeta abominava. Não deixa de ser uma verdadeira fatalidade que a Câmara Municipal de Lisboa tenha escolhido essa esplanada para colocar a estátua de Fernando Pessoa. Mas, apesar disso, mais vale que esteja ali do que em lado nenhum. E se abstrairmos desta confissão que ele faz sem adivinhar que as cartas viriam a ser publicadas, então podemos achar que a estátua está ali muito bem. E também julgo da mais elementar justiça dizer que gosto da estátua.
A propósito de Mário de Sá Carneiro, diz: (…) A obra de Sá Carneiro é toda ela atravessada por uma íntima desumanidade, ou, melhor, inumanidade: não tem calor humano nem ternura humana, excepto a introvertida. Sabe porquê? Porque ele perdeu a mãe quando tinha dois anos e não conheceu nunca o carinho materno. Verifiquei sempre que os amadrastados da vida são falhos de ternura, sejam artistas, sejam simples homens; seja porque a mãe lhes falhasse por morte, seja porque lhes falhasse por frieza ou afastamento. Há uma diferença: os a quem a mãe faltou por morte (a não ser que sejam secos de índole, como o não era Sá Carneiro) viram sobre si mesmos a ternura própria, numa substituição de si mesmos à mãe incógnita; os a quem a mãe faltou por frieza perdem a ternura que tivessem e (salvo se são génios da ternura) resultam cínicos implacáveis, filhos monstruosos do amor natal que se lhes negou.» (pág. 99)
E mais não digo para ver se provoco algum sentido de falta em quem me lê. Pode ser que daí resulte algum movimento para a reedição deste livro que há décadas se deve encontrar esgotado. Até pode mesmo suceder que ocorra a feliz decisão de reeditar a obra desse grande homem de letras que foi João Gaspar Simões.
Lisboa, Fevereiro de 2008
Henrique Salles da Fonseca