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A bem da Nação

QUANDO UM DIA ESTIVER PERDIDO …

 …mas perdido mesmo de ideias, …

 

Assim poderia eu continuar a glosar Manuel Bandeira na sua famosa “Pasárgada” mas não o faço porque bastará que algum dia me falte o tema e logo entrarei numa livraria a ler capas, badanas e contra-capas.

 

Todas as semanas me delicio nos escaparates e venho de lá com tantas ideias que me lembro sempre dum conhecido dos tempos da juventude que saltava de tema em tema – cada um mais mirífico que o outro – nunca aprofundando nem concluindo qualquer deles.

 

Depois de ao longo de várias semanas ter lido o “Górgias” de Platão, dei nesta última vez por mim a ler as primeiras páginas do “Elogio da Loucura” e da “Utopia” desses dois que tanto se admiravam mutuamente, Erasmo e Tomás Morus.

 

  Erasmo de Roterdão (1469-1536)

 

Thomas More (1478-1535) por Hans Holbein, o Jovem  (1527). S. Tomás Morus (1478-1535)

 

E perguntarão: então e que tal comprar um desses livrinhos e lê-lo calmamente em casa em vez de o fazer de pé nas livrarias? E a resposta é simples: leio-os de pé porque são livrinhos; os outros devem ser lidos no conforto e, para tal, há que os comprar. E assim procedo com alguma regularidade se por acaso ninguém me oferece no Natal o que procurei ao longo do ano. Como faço anos em Junho, as ofertas ficam equilibradamente distribuídas pelos dois semestres e a gestão das compras facilitada.

 

À cabeceira continuo a ter o “Império marítimo português” de Charles Boxer que vou lentamente estudando – há livros que se lêem e há outros que se estudam – mas o “livro de serviço” neste momento é um que descreve com o maior interesse as explorações africanas de Burton, Speke e Livingstone. Em paralelo, outras leituras sobre que escreverei a seus tempos e, mesmo assim, a lista de espera é grande.

 

Com tanta profusão de leituras, para além do tal conhecido saltitante nos tempos da juventude, recordo também o Professor Marcello Caetano que, segundo se diz, lia vários livros em simultâneo. Terá essa particularidade alguma relação com os factos que a História registou? Porquê tanta coisa ao mesmo tempo? Quem é que disse que “quem muitos burrinhos toca …”? Sim, perguntas incompletas e respostas ausentes, reticências, subentendidos e subtilezas. Enfim, uma grande misturada. Não parece uma atitude pragmática e talvez nem sequer sensata: quando fazemos uma coisa não nos devemos distrair com outra sob pena de nunca assentarmos e nada fazermos de jeito. E lá voltamos ao Professor Marcello Caetano cuja superior erudição não lhe permitiu enfrentar a “velha guarda” mais ou menos trauliteira do regime que bem tentou democratizar e muito menos a meia dúzia de escopetas revolucionárias que – mais tarde viemos a saber – nem munições tinham.

 

Mas eu estou aposentado e posso dar-me a diletâncias, cumulo de livros e saladas de ideias desde que me concentre nas coisas importantes e tudo o mais cesse quando disso fôr o caso. O pior é quando a diletância impera no espírito dos que estão ao activo, quando há quem se considere especialista em assuntos gerais, quando o profissionalismo baixa as guardas e é invadido pelo amadorismo. E quando há cada vez menos activos para cada vez mais aposentados, corremos o risco de inventarmos uma sociedade diletante e quiçá flatulenta que se compraz a saltitar de tema em tema sem nada aprofundar e muito menos concluir.

 

Se isto se passa no âmbito de um processo de globalização em que impera a competitividade nua e crua, tudo se verga à produtividade e a vitória é a única palavra do léxico dos sobreviventes, então há que temer o pior se não tomarmos muita atenção ao que estamos colectivamente a fazer. É que na globalização que encetámos no séc. XV fomos nós que ditámos as condições mas nesta segunda, totalmente friedmaniana, pertencemos ao grupo das vítimas e não nos poderemos distrair com diletâncias, poesias e divagações.

 

Bom seria que pudéssemos admitir a hipótese de um retorno às ideias de Friedrich List mas está visto que esse caminho foi vedado por Milton Friedman e que só nos resta descobrir um modelo de desenvolvimento compatível com o curso que a História tomou e que não podemos mais discutir. Sem qualquer vocação albanesa dos tempos de Enver Hoxa, resta-nos correr para apanharmos o comboio e arranjar um lugar na classe de luxo em vez de nos relegarmos para os bancos corridos da terceira.

 

E se o retorno à produção de bens transaccionáveis é um imperativo já inquestionável para que alcancemos algum reequilíbrio na balança comercial, na de transacções correntes e na de pagamentos, bem podemos aproveitar o actual ciclo especulativo nos preços mundiais das commodities para relembrarmos David Ricardo e a sua teoria das produções marginais. Só que nada disso funcionará se não houver transparência nos mercados e um método lógico de formação de preços. E nada sucederá também enquanto Sua Excelência o Ministro da Agricultura se não convencer de que o problema agrícola português não existe e que o único problema que efectivamente afecta os agricultores é comercial.

 

E mesmo que Sua Excelência se convença disso, ainda faltará saber se as grandes superfícies autorizarão que alguma coisa de jeito se faça para salvar o que resta da produção.

 

Isto não são diletâncias, é pão para a boca. Alternativa? Sim, claro: mais um ou dois bancos comerciais portugueses para a posse de capitais estrangeiros.

 

Lisboa, Outubro de 2007

 

 Henrique Salles da Fonseca

 

 

 

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