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A bem da Nação

EFEMÉRIDE – ainda a tempo

Álvaro de Campos

"Nasceu em Tavira, extremo sul de Portugal, no dia 15 de outubro de 1890. Teve uma educação vulgar de Liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro Mecânica e depois Naval. Todavia não exerceu a profissão por não poder suportar viver confinado em escritórios”. (Fernando Pessoa)

 

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,

E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

De ser inteligente para entre a família,

E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

 

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,

O que fui de coração e parentesco.

O que fui de serões de meia-província,

O que fui de amarem-me e eu ser menino,

O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...

A que distância!...

(Nem o acho... )

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

 

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,

Pondo grelado nas paredes...

O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),

O que eu sou hoje é terem vendido a casa,

É terem morrido todos,

É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...

Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!

Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,

Por uma viagem metafísica e carnal,

Com uma dualidade de eu para mim...

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

 

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...

A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,

O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,

As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

 

Pára, meu coração!

Não penses! Deixa o pensar na cabeça!

Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!

Hoje já não faço anos.

Duro.

Somam-se-me dias.

Serei velho quando o for.

Mais nada.

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

 

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

 

Álvaro de Campos 

(in "Poemas")

DECLARAÇÃO

Aqui, o dono da «casa» sou eu e se, sendo aberta ao público, todos a podem visitar, nela só toma assento quem eu permito.

Actualmente, os textos publicados são apenas da minha autoria uma vez que a maioria dos outros Autores - que tanto me ajudaram a fazer este blog - se instalaram nas suas próprias «casas».

Quanto aos comentários, divido-os em três categorias:

  • Os substanciais, que equiparo a «textos de Autor»;
  • Os lacónicos, de simpatia, de aprovação ou de cordata rejeição;
  • Os que, pela forma ou pelo conteúdo, rejeito e não publico.

 

* * *

Os habitués desta «casa» sabem que sou cordato, republicano não jacobino e democrata cristão não religioso e sabem também que não tolero faltas de respeito a ninguém, tanto meu correlegionário como adversário, amigos, conhecidos ou terceiros que não conheça sequer pessoalmente, figuras públicas ou cidadãos comuns.

Vem tudo a propósito de dois comentários que rejeitei nos quais havia referências que considerei negativas ao Duque de Bragança, D. Duarte Pio, a quem reconheço um notável Sentido de Estado e que, embora tenha uma opção de Regime oposta à minha, me merece as mais altas estima pessoal e consideração institucional.

Sim, na minha «casa» só se senta quem eu quero.

22 de Outubro de 2020

Henrique Salles da Fonseca

CONVERSAS SOLTAS - 5

Personagens:

  • Rei D. Manuel II
  • Presidente Manuel Teixeira Gomes
  • Rainha D. Maria Pia

Cenário – passeio sobranceiro à «Praia dos Pescadores» na Ericeira

* * *

MTG – Boa tarde, Majestade! Cá estamos nós prontos para espantar os nossos colegas, os fantasmas que nos atazanam.

R – Como as outras, a conversa de hoje também fica exclusivamente entre nós, nem às paredes a confessaremos porque as paredes têm ouvidos e os ouvidos têm pernas.

MTG – Às ordens de um Rei sereno até um Presidente sereno obedece. – ambos riram -  Mas é claro que manterei segredo do que Vossa Majestade disser. Ouso pedir reciprocidade de tratamento.

R – Os pedidos de um Presidente sereno são facilmente satisfeitos por um Rei sereno. Tratemos, pois, de afastar os nossos fantasmas…

MTG – Quem começa?

R – Posso começar eu. E, para já, não vou afastar os meus fantasmas mais antigos. Fico-me só pelo que aconteceu em 5 e 6 de Outubro de 1910: a viagem de Lisboa a Mafra e o embarque aqui na Ericeira. Como se imagina, nas Necessidades, toda a gente estava de cabeça perdida, desde os criados que se viam sem emprego até às Rainhas mas a carruagem apareceu a horas de viajarmos para Mafra, quando lá chegámos tudo estava preparado para nos receber durante a noite, na manhã seguinte viemos até aqui sem correrias de quem foge, tínhamos um bote à nossa espera e o yacht «Amélia» ancorado ao largo. Até mesmo o percurso de Lisboa a Mafra pareceu um passeio de Domingo. A República tinha sido proclamada em Loures no dia 4, não devíamos passar por lá; a viagem por Cheleiros seria impossível para os cavalos e, contudo, sem que eu desse uma única ordem, saímos calmamente das Necessidades, rumámos a Queluz, tomámos o caminho de Pêro Pinheiro e Negrais, Malveira e Mafra, tudo isto sem subidas nem descidas difíceis. Estava tudo pensado por alguém, tudo aconteceu sem atropelos. Este é o meu primeiro enigma. O segundo, o ambiente em Mafra onde parecia que nada se estava a passar no resto do país e, finalmente, o que aconteceu à chegada ao yacht quando, esperando nós que rumaríamos ao Porto, o Comandante me declarou – sem me pedir licença nem qualquer hesitação – que rumaríamos a Gibraltar e não a qualquer outro destino. Pura e simplesmente, estávamos a ser raptados e o rapto começara no preciso momento em que subíramos para a carruagem no pátio das Necessidades. E quando chegámos a Gibraltar, já estava tudo arranjado para a minha avó seguir para Génova e não nos acompanhar até ao nosso destino final que, entretanto, já sabíamos que seria Londres. Tudo excessivamente sincronizado para se poder assemelhar a uma fuga.

MTG – Eu não lhe chamaria rapto mas sim uma acção que visava pôr a Família Real portuguesa a recato, em condições que garantissem a sua própria segurança física.

R – E a minha avó?

MTG – Vim a saber mais tarde que Londres não queria que a Casa de Sabóia se imiscuísse nos assuntos do Império Britânico.

R – E o que é que Portugal tem a ver com o Império Britânico?

MTG – Formalmente, nada. Mas a antiga Aliança dá aos ingleses um sentido de obrigação de protecção de Portugal que não sentem com outros países.

R – A Aliança ou os vinhos do Porto e da Madeira, as possessões ultramarinas e mais não sei quê?

MTG – Pois… E quando Vossas Majestades chegaram a Londres e se instalaram no mesmo palácio em que a Senhora D. Amélia nascera (estava então a Família Real francesa também em exílio), houve que procurar um Embaixador português que «falasse» bem inglês…

R – A bon entendeur! Quer isso dizer que os ingleses já tinham ligações com os republicanos?

MTG – Manda a prudência ao cavaleiro que mantenha um pé em cada estribo.

R – Agora sou eu que digo «Pois…». Realmente, com a sua chegada a Londres, sentimos uma certa segurança. Mas o fim da sua comissão foi um tanto repentinoa.

TG – O Presidente Sidónio Paes era da linha dura. Recebi ordem de regresso imediato a Portugal. Despedi-me do Rei Jorge V e da Rainha Alexandra que me receberam à pressa e, por amizade, fora das normas do protocolo. Despedi-me do Primeiro Ministro e segui no primeiro barco que arranjei. Passei por Lisboa para tratar de assuntos administrativos e recolhi-me a Vila Nova de Portimão e às minhas adoradas amêndoas, as minhas filhas, entretanto adolescentes. E assim fiquei em recato enquanto o Capitão Agostinho Lourenço punha a Marinha Grande na ordem sidonista. Com o fim do Consulado Sidonista, Lourenço desaparece da cena portuguesa durante 15 anos para só reaparecer em 1933 para instalar a PVDE. Ele e eu fomos como os alcartruzes mas em 1925 fartei-me de tudo, desmoralizei e exilei-me. Deixei os bens às minhas filhas e fui para longe da confusão que só com mão de ferro assentaria. E como não sou dos da «hard glove», auto-exilei-me  na Argélia francesa onde encontrei estalajadeiras amáveis e deixei-me por lá ficar à espera que o Capitão Agostinho Lourenço fizesse o que fez e que não era do meu estilo «soft glove».

R – E os «Serviços» abandonaram-no?

MTG – Bem, Majestade, digamos que as minhas modestas despesas foram sempre atempadamente liquidadas. Mas o meu funeral em Bougie foi pago pelo nosso Governo.

R – E com esta conversa, o Senhor afugenta algum fantasma?

MTG – Sim, Majestade. Estava muito necessitado de contar tudo a quem merecesse saber e me desse garantias de segredo absoluto. É o caso de Vossa Majestade.

Foi então que, no seu passo miúdo, vinda do «Passeio Marítimo», surgiu a Rainha D. Maria Pia que, passando junto do Rei e do Presidente, lhes fez saber que – Ho sentito tutto quello che hai detto e penso che, se non è vero, è ben trovaato – e, sempre no seu passo miúdo, seguiu até à porta da «Casa da Fernanda» onde se esfumou… Iria comer um «ouriço»? Que disparate! Quando é que já se viu um fantasma a comer?

Outubro de 2020

Henrique Salles da Fonseca

CONVERSAS SOLTAS - 4

Personagens:

  • Rei D. Manuel II
  • Presidente Manuel Teixeira Gomes

Cenário – varanda do hotel em que o Presidente viveu de 1925 a 1941 frente ao Mediterrâneo na cidade de Bougies, leste da Argélia.

* * *

 *

MTG – Majestade, é uma honra recebê-lo no meu local de exílio. E, sobretudo, tão longe de Lisboa.

R – Ora, ora, Senhor Presidente, como sabe, nesta nossa condição, tanto nos faz a distância de Lisboa ao Porto como de Portimão a Bougies. E, curiosamente, estas são paragens que conheci na infância.

MTG – Ah! Desconhecia por completo.

R – Sim, sim. Na minha infância, fizemos um cruzeiro no yacht «Amélia» até ao Egipto. No regresso, se bem me lembro, percorremos vários portos nesta costa. Mas do que melhor me lembro é da entrada em Valeta, a imponência das muralhas do porto… E é claro que, do Egipto, me lembro das pirâmides e duma volta que dei num camelo.

MTG – Também conheci muitas destas paragens. Não na infância mas já como jovem adulto quando andei ao serviço da casa comercial do meu pai, a comprar e vender frutos secos. Sobretudo, amêndoa do Algarve. Mas o mercado era maior do que a produção e tínhamos que comprar noutras fontes. Viajei muito e ganhámos muito dinheiro. Mas… «nem só de pão vive o homem» e tive que enveredar por outros caminhos.

R - Os da literatura e da política?

MTG – Exacto. E assim foi que me vi em Londres como Embaixador.

 R – E que balanço faz dessa missão? Se não me engano, foram sete anos, ou seja, muito mais do que o habitual.

MTG – Era uma missão que a todos parecia impossível. Levar a Inglaterra a reconhecer a República sob a presença da Família Real acabada de chegar em exílio forçado, com laços familiares e de amizade pessoal com a Família Real inglesa… Bem, reconheço que a atitude serena da Família Real Portuguesa me facilitou enormemente a missão. Os ingleses fizeram-me saber muitas vezes que admiravam a serenidade do relacionamento de Vossa Majestade com o representante da República e – não deveria ser eu a dizê-lo – também apreciavam a atitude serena da representação diplomática. Tiveram sempre a delicadeza de nunca referirem que parecia sermos amigos. Ainda bem que tiveram esse cuidado. Evitaram problemas políticos que Vossa Majestade dispensava e a República, ali representada por mim, também não queria de modo nenhum.

R – Gosto de confirmar que não fui motivo de preocupação. O Senhor devia ter muito mais com que se preocupar…

MTG – … o problema da dívida portuguesa, a ultrapassagem das sequelas políticas do «Ultimatum» que continuavam a azedar as relações bilaterais e, mais tarde, a pré-Grande Guerra, a nossa participação nos combates integrados nas Forças Britânicas, o nosso desempenho militar em África e mais um ror de temas que na altura pareciam relevantes mas que hoje dão vontade de rir.

R - Lembra-se de algum?

MTG - O empenho que coloquei na satisfação do pedido que a rainha Alexandra me fez de lhe redecorar o seu gabinete de trabalho com prejuízo de tempo na análise de informações mais ou menos relevantes que os Serviços de cada lado me iam transmitindo para eu enviar ou não à outra parte.

R – Os ingleses enviavam-lhe informações?

MTG – Informações classificadas que eu deveria analisar e encaminhar para quem eu considerasse conveniente. Nem sempre são as vias habituais, Majestade.

R – Pois, pois… Nem todos estão nos cargos certos, nem todos são merecedores das informações, nem todos percebem o que elas significam…

MTG -Nem todos os políticos ou funcionários se interessam pelo fim da História.       O fim da História – não o fim cronológico nem biológico mas, sim, o do alcance dos grandes objectivos da Humanidade tais como o equilíbrio económico estrutural, a harmonia social, a abastança cultural e moral – é nisso que o animal histórico, o homem, não pensa tão frequentemente quanto devia; dedica-se a questões menores, à análise conjuntural e perde o sentido dos grandes objectivos da Humanidade, o fim da História. Como Hegel diria, «a verdade que os homens demandam».

R - Sim, Senhor Presidente, concordo, mas já os latinos diziam «primum vivere, deinde philosofari» e nós, em vida, ainda estávamos na fase de tentarmos alcançar a primeira etapa, a do conforto material. Certa vez, tive conhecimento de uma discussão sobre o local politicamente mais apropriado para construir um simples chafariz para dar de beber a cavalos e azémolas. Um «Sentido de Estado muar».

MTG – E quando eu fui Presidente, as discussões não seriam muito diferentes dessa. Tudo tem a ver com os modos de satisfazer eleitorados, de ganhar votos nas eleições seguintes. E um Rei é deposto e um Presidente é levado ao desespero por causa da aguada de burros e mulas…

R – E por quê este exílio em Bougies?

MTG – Porque naquela época, aqui era a França exótica onde podia entregar-me tranquilamente à escrita e onde encontrei quem cuidasse de mim.

R – Senhor Presidente, fiquemos por aqui. Acho que continua a não querer contar tudo mas não se esqueça de que, para nós, «tudo o vento levou». O nosso próximo encontro vai ser na Ericeira onde espero espantar alguns colegas nossos.

MTG – Que colegas, Majestade?                                               

R – Fantasmas.

Outubro de 2020

Henrique Salles da Fonseca  

CONVERSAS SOLTAS - 3

Personagens:

  • Rei D. Manuel II
  • Presidente Manuel Teixeira Gomes

Cenário – Sala de música do Palácio da Ajuda, Lisboa

No meio da cena, o violoncelo do Rei D. Luís com uma poltrona de cada lado

* * *

R – Senhor Presidente, seja bem vindo à casa dos meus avós.

MTG – Obrigado, Majestade! A casa que, durante muitos anos, foi a «Real Barraca», de madeira.

R – Dá para imaginar o susto que o meu tetravô, o Rei D. José, apanhou no Paço da Ribeira com tudo a desmoronar-se e com o tsunami que alagou de enxurrada a baixa de Lisboa. Também eu nunca mais voltaria a entrar numa casa de pedra e cal.

MTG – Mas aqui estamos nós no cimo da Calçada da Ajuda, a recato de tsunamis e junto do violoncelo do Senhor D. Luís. Chegou alguma vez a ouvi-lo tocar?

R – Não. Eu nasci cerca de um mês depois da sua morte mas a minha avó dizia que em Portugal havia quem tocasse melhor violoncelo do que ele e que em Itália, então, muito melhor.

MTG – Ah, sim, a Côrte de Sabóia devia ser um centro cultural de primeira grandeza.

R – Era isso que a minha avó dizia. E foi lá que cumpriu o exílio. Exilou-se no seu próprio país. Teve mais sorte que nós.

MTG – E, contudo, ambos tivemos exílios dignos. Vossa Majestade teve um ambiente acolhedor e eu tive o ambiente que eu próprio escolhi.

R – Ainda hoje estou convencido de que o ambiente acolhedor que nos rodeou, à minha mãe e a mim, se ficou muito a dever a si, Senhor Presidente, enquanto Embaixador em Inglaterra.

MTG – A minha preocupação era a de que ninguém importunasse Vossas Majestades. A República nunca me deu ordens para hostilizar a Família Real exilada. Foi-me fácil actuar pela positiva. Na maior parte das vezes, bastou-me não fazer nada.

R – Mas houve ocasiões em que teve que agir.

MTG – Admirei muito o oferecimento de Vossa Majestade para integrar o Corpo Expedicionário Português na Flandres. Apoiei a ideia mas Lisboa não deu seguimento ao meu apoio e recusou a ideia. Embaixador não se enfurece mas lastimei-me à Raínha Alexandra. Terá sido ideia dela a integração de Vossa Majestade como Oficial da Cruz Vermelha britânica.

R – Adivinhei que tinha havido alguma actuação do então Embaixador de Portugal junto de alguém que nunca identificara até agora.

MTG –  Soube então que Vossa Majestade ficou zangado por não ter sido aceite a sua generosidade mas, perante a recusa, não consegui fazer grande coisa.

R – Mais do que zangado, fiquei triste. De princípio, fiquei desiludido com a nomeação inglesa para a Cruz Vermelha mas, passados uns dias, pensando mais serenamente, concluí que só podia ter sido obra do Senhor Embaixador. E foi esse o sentido do meu super-discrteto cumprimento em Ascot quando o Senhor, à distância, tirou o chapéu e eu fingi dizer que sim à minha mãe que, a meu lado, nada dissera. Ela percebeu tudo e limitou-se a dizer «Vaut mieux comme ça», discretamente e à distância. Espero que tenha percebido o meu agradecimento.

MTG – Sim, percebi e foi essa afabilidade que me deu alguma tranquilidade no desempenho das minhas funções. E foi também com entusiasmo que anunciei a iniciativa de Vossa Majestade de oferecer a sala de operações ortopédicas ao Hospital Português em Paris. Quando me chumbaram a ideia de colocar uma placa a referir que fora Vossa Majestade que oferecera a sala, tive que puxar pela cabeça e acabar por mandar escrever aquela ignomínia que lá foi colocada «Oferta de um português em Londres». Peço que me desculpe.

R – É claro que desculpo! Na altura, achei mal mas, face às circunstâncias, não vejo hoje que melhor solução houvesse. Sobretudo com o jacobino que então representava Portugal em França. Quem era ele?

MTG – Já não me lembro mas não era por certo alguém que gostássemos de ter nestas nossas conversas.

R – Claro que não! É isso que admiro em si, Senhor Presidente: o Senhor não é jacobino e tem uma concepção serena da República, deseja para Portugal o mesmo que eu. Como tudo poderia ter sido diferente se nos tivéssemos conhecido no início do meu reinado…

MTG – Como se viu, também eu não fui capaz de fazer grande «coisa». A insubordinação que vigorava entre as elites nos finais da Monarquia era a mesma que me levou ao desespero como Presidente da República. Só uma mão pesada que se abatesse sobre essa balbúrdia poderia resolver o problema mas nem Vossa Majestade nem eu eramos filosoficamente capazes disso. As elites portuguesas encarregam-se ciclicamente de fazer esboroar as intenções inocentes dos democratas liberais.

R – Não merecem a liberdade que lhes demos a servir. E que me conta do seu exílio?

MTG – Contarei com o maior gosto numa próxima oportunidade porque o pessoal da limpeza está a entrar ao serviço e não convém que nos confundam com alguma nuvem de pó.

R – Muito bem, o nosso próximo encontro vai ser em Bougie. A nós, o Governo da Argélia não exige Passaportes nem Vistos.

Outubro de 2020

Henrique Salles da Fonseca

CONVERSAS SOLTAS - 2

Fulano - Olá, ainda bem que chega!

Eu - Obrigado.

Beltrana – Olá! Estávamos aqui a falar sobre coisas etéreas.

Eu – Ena! A esta hora tão matutina?

Beltrana – E por que não? É uma hora tão boa como outra qualquer…

Eu – Sim, sim. Então, do que falavam?

Fulano – Não se assuste! Estávamos a falar de Metafísica.

Eu – Boa! E que diziam?

Fulano – O que é a Metafísica?

Eu – É o que está fora da Física.

Beltrana – Eu bem dizia que estávamos a falar de coisas etéreas…

Fulano – Pode dar um exemplo?

Eu – Uma ideia, um princípio, um conceito…

Fulano – Uma ideia? Como é isso?   

Eu – Sim, qualquer coisa imaterial.

Beltrana – Assim, tão simplesmente? Então, o «hardware» dos computadores é físico e o «software» é metafísico.

Eu – AHAH! Bem visto. Quase me apanhou. Sim, o «hardware» é físico mas o «soft» não é metafísico porque é… electricidade. E porque nem tudo o que lá circula é doutrinário, genérico, conceito. Esses conceitos, sim, são metafísicos mas são-no por si próprios e não por circularem numa via «soft».

Beltrana – Mas assim, não é nenhum bicho de sete cabeças como parece com as explicações complicadas que por aí andam…

Fulano – E era sobre essas explicações complicadas que estávamos a partir pedra.

Eu – Complicar é fácil. Mas se a definição é simples, tudo o que lá cabe pode não ser assim tão simples.

Beltrana – Como por exemplo…?

Eu – Desde o conceito aritmético mais simples (2+2) até Deus.

Fulano – Deus, uma ideia?

Eu – Sim, uma ideia… «e no princípio era o Verbo»…

Beltrana – Está a dizer que Deus não é mais do que uma ideia?

Eu – Deus é uma ideia que se explica pelos chamados Argumenrtos Ontológicos.

Betrana – Os argumentos quê?

Eu – Ontológicos do grego «onthos» que significa «ser». Os argumentos pelos quais se chega à existência de Deus.

Fulano – Isto, sim, é conversa boa para servir como aperitivo para o almoço. E pode dar um exemplo desses argumentos?

Eu – Sim, claro! Há muitos mas eu tenho sempre três na ponta da língua – o de Santo Anselmo, o de Pascal e o de Einstein.

Fulano – Eh caramba! Assim de enxurrada?                                  

Eu – Bem, não propriamente de enxurrada. Posso dizê-los calmamente.

Beltrana – E, então, que disseram eles?

Eu – O mais progressista foi o mais antigo destes três, Santo Anselmo. À nossa semelhança quando hoje dizemos que «o que não está na Internet é como se não existisse», ele disse que «as coisas só existem se nós as imaginarmos; se não as imaginarmos, é como se não existissem». Então, imaginemos algo que está mais a cima do que qualquer outra coisa que possamos imaginar, que seja inultrapassável. Esse «algo» é Deus.

Beltrana – É curioso dá que pensar. Não é de repente que se percebe. OK! Fica o registo para mas amadurecer. E o Pascal?

Eu – Cito-o mais por curiosidade do que pela elevação do raciocínio que não passa de um exercício de contabilidade de «Ganhos e Perdas»:

- se acreditas em Deus e ele existe, depois da morte terás todas as recompensas;

- se não acreditas mas ele existe, perdes tudo;

- se acreditas e ele não existe, não ganhas nada;

- se não acreditas e ele não existe, não ganhas nem perdes.

Portanto, o melhor é acreditares.

Fulano – Fico na dúvida sobre se Pascal está gozar connosco ou…

Beltrana – Não gosto desse raciocínio.

Eu – Einstein é mais interessante. Começa por uma afirmação, faz uma pergunta e responde:

- O Universo começou com o «big bang»;

- Quem deu a ordem para que essa mega explosão ocorresse?;

- A única resposta possível, Deus.

Fulano – Prefiro este.

Beltrana – Também eu.

Eu – Parece que estamos todos de acordo. Mas há muitos mais argumentos ontológicos. Normalmente, agrupam-se em conjuntos mais ou menos homogéneos.

Beltrana – Grupos de argumentos? Que grupos são esses?

Eu – Religiões.

 

Fulano – Então, as religiões são grupos de argumentos?

Eu – Sim, mas não só.

Fulano - Mais quê?

Eu – Fé.

Beltrana – Ah, claro! E tudo isso é Metafísica.

Eu – Exacto! Mas agora são horas de almoço, tenho que ir andando.

Fulano – E vamos continuar esta conversa noutra ocasião?

Eu – Por mim, encantado. E deixo já um mote para que, entretanto, vão vendo o que diz o Google sobre «Exegese». Até breve!

Fulano – Até brreve!

Beltrana – Beijinhos!

Outubro de 2020

Henrique Salles da Fonseca

CONVERSAS SOLTAS – 1

 

Personagens:

  • Rei D. Manuel II - 1889 – 1932 (exílio em Inglaterra, 1910-1932)
  • Presidente Manuel Teixeira Gomes - 1860 – 1941 (Embaixador em Inglaterra, 1911-1918; PR, 1923-1925)

* * *

Os espíritos vagueiam pelos lugares dos respectivos afectos, não pelos cemitérios.

Nascido no palácio de Belém, D. Manuel II vagueava pelo jardim e parou junto ao gradeamento olhando o Tejo que naquele dia estava azul. Como sempre, cruzara-se com quem não o via nem sequer o sentia mas, desta vez, foi ele próprio que sentiu que quem estava a seu lado também se encontrava nessa tal outra dimensão, a volátil…

MTG - Creio, Majestade, que, finalmente, podemos conversar sem que rebente algum escândalo político.

R - Ah! Senhor Embaixador, sim, finalmente. Mas ao Senhor também coube a amarga tarefa de chefiar este Estado. Tratá-lo-ei por Presidente e não mais por Embaixador.

MTG - Sim, amarga tarefa, essa, a de se ser Chefe de Estado constitucional em Portugal. Constitucionalmente, nada se pode fazer mas, afinal, é ao Chefe de Estado que todas as explicações são exigidas.

R - Exacto! Mas mais vale assim do que o tratamento dado aos déspotas em final de carreira a quem cortam o pescoço. E nem sequer foi preciso a Luís XVI de França ser déspota – que nem sequer o foi de modo evidente - para o «despentearem».

MTG – O Senhor seu Pai não era déspota e…

R – O meu Pai nomeou um Chefe de Governo que bulia com os Partidos (tanto monárquicos como com o Republicano) que se consideravam os «donos» do País. Mexeu num ninho de vespas ou, como dizem os brasileiros, «cutucou a onça com vara curta». Desequilibrou um equilíbrio muito instável para tentar sair de um caminho que não levava a lado nenhum e…

MTG - … e aqui estamos nós a recordar situações aparentemente diferentes – uma em Monarquia e a outra em República – para concluirmos que, afinal, o problema português tem mais a ver com as elites do que com o tipo de Regime. Estamos sempre a esbarrar na gestão da «coisa pequena», na falta de grandes rasgos de imaginação, de quem lance o trampolim para o meio do ginásio.

R - … e se alguém o faz, logo os medíocres se assanham em denegrir essa iniciativa.

MTG – Exactamente, Majestade! O nosso problema fundamental é a mediocridade polvilhada de inveja. Sacrificam-se os homens em nome de fins históricos apregoados como sublimes e, afinal, esses fins encontram-se ao nível das couves e das batatas a que os arautos da História se dedicam mal saem dos focos que inundam a ribalta. O juízo moral que incide sobre o Chefe e a sua obra é condicionado por essas couves e batatas, é tão fino que dá para lhe chamarmos grosseiro. Foi esse o julgamento que produziu o regicídio, foi esse o julgamento que levou Vossa Majestade
a Ericeira no dia 6 de Outubro de 1910, foi o desespero pela obra imperfeita que me levou a embarcar no navio «Zeus» em Dezembro de 1925 com destino ao norte de África. Porque a minha sorte teria sido igual à de Vossa Majestade caso eu tivesse deixado a iniciativa por mãos alheias. Dá para revermos o que fizemos enquanto passámos pelo «activo»?

R – Sim, claro que dá! Pela minha parte, mantive-me fiel à Carta Constitucional que jurei defender aquando da minha entronização perante as Cortes.

MTG - …ocasião em que baniu a cerimónia do «beija-mão real». Vendo a História ao contrário, apetece perguntar se valeu a pena. Nós, republicanos, achámos bem e houve quem aplaudisse a abolição de um cerimonial anacrónico mas não foi isso que levou a que se desistisse da mudança de Regime; em simultâneo, poderá ter acontecido que alguns monárquicos se sentissem menos vinculados ao Rei.

R – Obediências servis, dispensei-as porque não as tenho como seguras nem compatíveis com a dignidade humana. Isso era tipicamente medieval. Apesar das fragilidades que aponta, acho que fiz bem ao abolir uma cerimónia abjecta aos olhos do século XX. Quando o Senhor assumiu a Presidência, achar-se-ia mais confortável com algo semelhante por parte das Ordens profissionais ou de outros importantões da sociedade civil?

MTG – Claro que não! Mas, em República, não há juras dessas…

R – Pois! Há outras, daquelas que não se fazem às claras.

MTG – Como no tempo da Monarquia.

R - …mais a Carbonária. Mas tanto o Senhor como eu, já não estamos em condições de corrigir a História. Fica a conclusão de que ambos fizemos o melhor que pudemos pelo nosso querido país.

MTG – Tiro também outra conclusão: Vossa Majestade e eu estávamos, afinal, do mesmo lado da barricada, o da democracia, ambos opostos aos totalitarismos.

R – Senhor Presidente, agradeço ter vindo conversar. Acho que ainda temos mais coisas a dizer mas terá que ficar para uma próxima oportunidade pois estão a chegar vivos que querem ver o Tejo.

O Presidente Marcelo chegou-se à grade da varanda para fazer uma selfie com Ursula von der Leien mas não viram os espíritos que se esfumaram.

 

Mais do que solta, esta é uma conversa improvável

Outubro de 2020

Henrique Salles da Fonseca

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