Sabemos que a imagem de um Deus intransigente e castigador lançou gerações numa paralisante angústia. (…) é necessário anunciar que a justiça de Deus não é punitiva mas sim uma justiça iluminada pela misericórdia
* * *
O livro começa com um prefácio do Papa Francisco
«Este caminho espiritual foi oferecido por si, que nos ajudou a sentirmo-nos procurados pela sede de Jesus, que não é uma sede de água, mas é maior: é sede de alcançar as nossas sedes, de entrar em contacto com as nossas feridas»
e conclui com um agradecimento também papal
«Obrigado, Padre e continue a rezar por nós»
pois que este é o guião do retiro espiritual que a Cúria Romana fez por altura da Quaresma de 2018 sob orientação do Padre José Tolentino Mendonça.
Entretanto, o Padre Tolentino foi nomeado Director dos Arquivos da Santa Sé e ordenado Arcebispo de Suava.
Como se depreende das palavras do Papa acima transcritas, o título é a apologia da busca da fé, mas é também um incitamento à pregação entre os infiéis.
Pese embora um estilo literário que me parece algo piegas, foram várias as passagens que prenderam a minha atenção.
Em vez de viver a sede do absoluto, Jean (personagem duma peça de Ionesco) escolheu viver o absoluto da sede. Por isso, tudo lhe parece ínfimo, insuficiente e mesquinho. Sobre todas as coisas espalha o mesmo veneno da lamúria, condenando-as. Esta sede, a que ele não consegue dar um rosto, faz dele um homem sem casa nem raízes, incapaz de criar laços, estrangeiro de si mesmo, perdido no labirinto onde escuta apenas o solitário rumor dos seus passos. (…) Uma sede que se torna numa grande insatisfação, numa desafeição em relação ao que é essencial, numa incapacidade de discernimento que nos empurra para os braços do consumismo. (…) A desilusão atira-nos para o círculo insone do consumo - (pág. 39 e seg.)
(…) as sociedades organizadas à roda do consumo, explorando avidamente as compulsões de satisfação de necessidades induzidas pela publicidade, estão na prática a remover a sede e o desejo tipicamente humanos. (…) promete libertar o desejo das inibições da lei e da moral em nome de uma satisfação ilimitada, mas quando o gozo, a paixão e a alegria se esgotam no consumismo desenfreado, chagamos à agonia do desejo. A vida perde horizonte, os tetos tornam-se cada vez mais baixos - (pág. 55)
Em vez de uma sede de futuro que nos projecta para a criatividade do dom, deixamo-nos enredar no sinuoso labirinto do pessimismo que recusa e descrê de qualquer horizonte – (pág. 64)
O Espírito (Santo) é o dinamismo do (Cristo) Ressuscitado em nós – (pág. 86)
A fé não é um pódio, é uma estrada (…) e a estrada tem mais a ensinar-nos do que a estalagem – (págs. 103 e 105)
Misericórdia é compaixão, é bondade, é perdão, é colocar-se no lugar do outro, é levar o outro aos ombros, é a reconciliação profunda - (pág. 132)
Sabemos que a imagem de um Deus intransigente e castigador lançou gerações numa paralisante angústia. (…) é necessário anunciar que a justiça de Deus não é punitiva mas sim uma justiça iluminada pela misericórdia – (pág. 136)
Finalmente, já é o Papa que faz humor no agradecimento ao Padre Tolentino pela forma como orientou o retiro da Cúria chamando a atenção para inúmeras circunstâncias em que o homem, mesmo o consagrado, é induzido ao pecado:
- Como dizia a madre superiora às suas irmãs: «Somos homens, pecadores, todos» - (pág. 166)
Conheci o Bruno C. e sua mulher em 2013 quando a minha mulher e eu fizemos um cruzeiro no Danúbio. Ficámos na mesma mesa e conversámos muito durante as refeições. Em inglês, porque a mulher dele é americana e porque ele, italiano, continua com Napoleão um pouco de través.
Engenheiro naval, na casa dos 70, bem aposentado depois de larguíssima carreira no mar, está zangado com os italianos, vive em Nice e apenas vai regularmente à fronteira comprar um jornal para não «perder o pulso ao desvaire».
Lembro-me de que nos disse com plena convicção de que o tráfico de imigrantes vindos do Norte de África está plenamente controlado pelas forças navais italianas, quer dos Carabinieri quer da própria Marinha Italiana, de tal modo que não há «perdas» quando são elas as receptadoras dos traficados. Sim, tudo por certo com ligações mafiosas à mistura. E já lá vão uns anos que esta conversa aconteceu… Kadhafi morrera dois anos antes.
Confesso que não prestei então muita atenção ao tema. Mas não o esqueci.
Acho, contudo, que está na altura de o retomar porque o movimento imigratório não dá, entretanto, sinais de abrandamento e o que salta agora à vista é uma alteração fundamental no cenário líbio com o aparecimento do General Haftar a entrar em Trípoli, vindo de Tobruk.
O Governo sediado em Trípoli e reconhecido internacionalmente é conivente com a situação de descalabro no país com as suas mais de 140 tribos em zaragata permanente, com os traficantes de escravos negros à rédea solta, com os negócios do petróleo em descontrole completo.
As forças «rebeldes», controlando a metade leste da Líbia e com sede em Tobruk, são lideradas pelo general Haftar, dos tempos de Kadhafi, homem de 75 anos que está numa de pôr um ponto final à situação caótica a que o seu país chegou. E marchou sobre Trípoli sem demagogias nem promessas miríficas duma democracia que os muçulmanos sunitas não estão em condições de usar sem o medonho jugo clerical sharioso. Mais: considera que os seus opositores são radicais islâmicos que urge domar, que são divisionistas das tribos que há que controlar, que são intervenientes nos negócios do petróleo que há que integrar nos interesses do Estado Líbio, que são traficantes de escravos negros que há que aniquilar.
Trípoli tem o apoio de António Guterres e de Itália, nomeadamente da sua ENI; Tobruk tem o apoio do vizinho Egipto, de Putin e de Macron.
Perguntado pelo Senhor Coronel Miranda Lima sobre como combater a economia paralela (comentário ao meu texto «A POBREZA E A JUSTIÇA» publicado em 15ABR19), respondi que faria texto específico em vez de apenas me ficar por comentário-resposta no blog. A isso venho, pois.
* * *
Economia paralela é a que, legalmente não isenta de tributação, na realidade não se encontra tributada. Por fuga ao Fisco, está visto.
Vai desde o cândido biscate até ao tráfico de estupefacientes e outras brutalidades do género passando pela «bica» sem factura-recibo, do cabeleireiro, do veterinário…
Ou seja, nem toda a economia paralela merece tratamento policial.
É por isso que divido a questão em duas partes que, no meu entendimento, não são miscíveis e que carecem de tratamentos distintos:
a criminosa – que é do foro policial;
a «cândida», que não merece tratamento policial – que essa, sim, podemos tentar combater com medidas de política, nomeadamente no âmbito da fiscalidade.
A. Começo por recordar que houve medidas legislativas que, por exemplo, ilegalizaram a mais antiga profissão do mundo e que, ipso facto, a atiraram num instante para fora da fiscalidade. Foi em 1961 quando houve que enviar para Angola grandes contingentes militares e que o Governo de então terá entendido que essas profissionais eram mais necessárias lá do que cá. Entretanto, apesar de terem passado «só» quase 60 anos, as circunstâncias sanitárias terem passado pelo stress da SIDA e de outras doenças sexualmente transmissíveis, a moralidade real ou fingida dos políticos mantém essa ilegalidade com todos os perigos sanitários inerentes e óbvio prejuízo da Fazenda Pública.
NOTA À PARTE
[A tributação da prostituição não passará certamente pelo controlo dos recibos emitidos a favor do consumidor final com inequívoca identificação fiscal, passará certamente pela presunção de facturação daquelas profissionais com base na experiência dos Chefes das Repartições de Finanças – prática esta, presuntiva, muito experimentada em diversos sectores da actividade económica ao longo da história recente dos nossos sábios publicanos.]
Quantos mais sectores excluídos poderiam ser trazidos de volta à esfera da fiscalidade?
B.A carga fiscal - tanto directa quanto indirecta - é um convite à fuga pois tudo o que «passe por fora», é metido ao bolso sem mais problemas. Sobretudo quando o cliente final só pode descontar uma ninharia no respectivo IRS.
Nesta questão, há duas soluções (fora os arranjos e combinações que a imaginação sugira):
ou se reduz a tributação directa do vendedor;
ou se permite que o cliente final possa deduzir no IRS a tributação indirecta suportada (de preferência toda ou, então, muito mais do que actualmente é permitido) nas compras de bens e serviços que faça.
Então, bastaria que se pudesse descontar esse tipo de despesas no IRS para que os recibos passassem a existir, o IVA a ser cobrado e o volume de negócios sectorial declarado a aproximar-se da dimensão real.
Afinal, até parece que é verdade serem os Governos que, com estas proibições, promovem a evasão fiscal e enviam inteiros sectores de actividade para fora da economia oficial. Fazem-no apenas por nabice, claro está, porque nas Escolas aprenderam doutrinas da Fiscalidade que já não existe.
É com base nestas realidades que nasce a tese que diz que se todos pudermos descontar todas as despesas no IRS, as receitas públicas aumentam. E como não poderia deixar de ser, também existe a antítese que afirma que os novos descontos no IRS ultrapassariam o aumento das receitas pelo que o encaixe público seria menor.
Sim?
A partir daqui, recorro a um texto que escrevi quando a taxa normal do IVA era 21%.
O actual método de cálculo da matéria colectável – tanto para efeitos de IRS como de IRC – apenas permite o desconto de algumas despesas.
Imaginemos o seguinte cenário:
Matéria tributável no IRS = 100
Despesas dedutíveis (30%) = 30
Matéria colectável = 70
Taxa aplicável = 30%
COLECTA = 21
Admitamos agora que sobre metade da matéria colectável (35), o Contribuinte, ao não pedir recibo, permite que nessas transacções o lado da oferta se evada fiscalmente. Ou seja, no nosso modelo, a evasão fiscal assume a dimensão de 35 pelo que só 65 se enquadram na economia oficial: os 30 já “agarrados” pela dedutibilidade das despesas no lado da procura mais os 35 do lado da oferta que não passaram à clandestinidade apesar de corresponderem a despesas não dedutíveis.
Nestas circunstâncias, do lado da oferta, o mesmo modelo será como segue:
Matéria tributável no IRC = 65
Despesas dedutíveis (30%) = 19,5
Matéria colectável = 45,5
Taxa aplicável = 30%
COLECTA = 13,65
COLECTA TOTAL (IRS + IRC) = 34,65
IVA, à taxa de 21% (sobre 65) = 13,65
IVA s/ 100 do lado da procura a 21% = 21
RECEITA PÚBLICA TOTAL = 69,3
Imaginemos agora que o Governo fazia aprovar um novo método de cálculo do IRS permitindo o desconto de mais despesas, agora para 50% em vez dos 30% do exemplo anterior. Introduzindo apenas essa variação no modelo do lado da procura, sucederá o que segue:
Matéria tributável no IRS = 100
Despesas dedutíveis (50%) = 50
Matéria colectável = 50
Taxa aplicável = 30%
COLECTA = 15
Continuemos a admitir que sobre metade das despesas não dedutíveis (25) pela procura, o lado da oferta nessas transacções se evada fiscalmente. Assim sendo, a evasão fiscal assume a dimensão de 25 e ao universo tributável inicial (65), há agora que juntar aqueles que abandonaram a clandestinidade (25) para constituírem um novo universo tributável do lado da oferta já com a dimensão de 90 num total de 100.
Matéria tributável no IRC = 90
Despesas dedutíveis (30%) = 27
Matéria colectável = 63
Taxa aplicável = 30%
COLECTA = 18,9
COLECTA TOTAL (IRS + IRC) = 33,9
IVA, à taxa de 21% (sobre 90) = 18,9
IVA s/ 100 do lado da procura a 21% = 21
RECEITA PÚBLICA TOTAL = 73,8
E assim sucessivamente até à exaustão da economia paralela «cândida» para o que bastará os Governos permitirem que a procura – apenas os singulares para efeitos de simplificação do modelo – deduzam todas as despesas na declaração anual de rendimentos para efeitos de cálculo da matéria colectável.
RESUMO
Descontos no IRS
Colecta
30
50
Δ%
IRS
21
15
-28,6
IRC
13,65
18,9
38,5
IVA
34,65
39,9
15,15
TOTAL
69,3
73,8
25,05
Neste exemplo apenas permiti que os singulares deduzissem mais despesas aos seus rendimentos declarados e nada fiz quanto aos colectivos. Se procedermos de igual modo quanto a estes, poderemos trazer de volta à economia oficial as tais empresas «maquizardes» que não suportam a actual carga fiscal e o Fisco passaria a obter receitas de fontes em que actualmente não mete o nariz.
Fica assim demonstrado que o acréscimo da dedução à colecta é, por si próprio, um incentivador da receita pública.
CONCLUSÃO:
A economia paralela de génese criminosa é do foro policial mas a «cândida» pode e deve ser reduzida por diversas medidas de política, nomeadamente as de índole fiscal.
Escreveu Raymond Aron (1905-1983) durante alguns anos (1952-54) de grande meditação e profunda tristeza pessoal (morte de uma filha) um livro que intitulou «L’opium des intelectuels» em que explica a sua oposição aos intelectuais franceses de então. Globalmente liderados por Sartre (que se servia de Simone de Beauvoir quando ele próprio não queria «dar a cara»), todos esses intelectuais se perfilavam pela esquerda, muitos deles de filiação comunista e outros lá perto mas sem filiação no PCF (caso do próprio Sartre).
Sobre este livro – de que estou a ler um resumo feito pelo próprio Aron nas suas «Memórias» [i]e de que escreverei mais – extraio da pág. 325 uma citação que Aron faz de um escrito de Sartre sobre a actuação comunista em França naquela década de 50:
Estou certo de que boa parte da estratégia da CGT [ii] na greve é muito mais comandada por fins militares longínquos do que por objectivos sociais evidentes.
Repito que se trata de escrito de Sartre que Aron apenas cita.
Ou seja, Aron nem precisou de se levantar contra a esquerda porque foi ela própria que fez a afirmação de que o estalinismo se dedicava a tácticas de mobilização de massas para bloquear França sempre que quisesse.
Isto foi em França nos anos 50 do séc. XX mas é precisamente o mesmo que vemos actualmente em Portugal com o surto interminável de greves e manifestações. Trata-se obviamente duma táctica de mobilização permanente de massas que a qualquer momento possa paralisar o país. Basta, para além das massas humanas, colocar uns camiões em pontos chave do trânsito para que o caos se instale. Já o fizeram várias vezes, não hesitarão repeti-lo.
Como fica patente, em Portugal a cartilha stalinista continua em vigor.
E onde está a legitimidade democrática e a defesa dos princípios humanistas pelas Forças Armadas e de Segurança? Provavelmente manietadas por infiltrações cirúrgicas.
Não estou, pois, apenas a recapitular a História, estou a olhar para o presente e a temer pelo futuro.
Abril de 2019
Henrique Salles da Fonseca
[i] - Pág. 312 e seg. ed. GUERRA & PAZ, Fevereiro de 2018
[ii] - Confédération Générale du Travail (central sindical comunista)
É logo da capa que se extrai a informação de que o livro deu em filme, o que induz de imediato a ideia de que se trata de obra pictórica e, talvez mesmo, animada. Pictórica, sim; animada, na nossa própria imaginação como o terá sido na da realizadora, Natalie Portman.
Eu já conhecia Amos Oz de um livrinho que ele publicou (não me lembro onde o tenho e se o li em inglês ou português) em que expõe as suas ideias políticas sobre Israel e o processo de paz que preconizava (morreu em finais de 2018) de modo a ultrapassar a tensão permanente entre judeus, árabes e palestinianos. Gostei do que então li e avancei para este livro (636 páginas de texto) cuja leitura tive pena de ver chegar ao fim. Até porque a autobiografia não é completa, muito terá ficado por contar. Fico à espera do trabalho futuro de algum biógrafo que nos relate o que aqui ficou por contar da vida deste que foi um dos mais importantes escritores israelitas.
Nascido Klausner, Oz decidiu mudar de nome não só por razões literárias mas também porque a certa altura decidiu mudar radicalmente de vida abandonando Jerusalém e optando por um kibbutz. Essa mudança radical aconteceu pouco tempo depois do suicídio da mãe e de o pai se ter casado novamente.
Mas para ter a certeza de que não estrago a futura leitura de quem me lê, inspiro-me na contracapa…
Amor e trevas são duas poderosas forças que se cruzam e acompanham a vida do Autor que nos guia numa fascinante viagem ao longo dos 120 anos de história da sua família e dos seus paradoxos.
Em busca das raízes remotas da sua tragédia familiar, Oz desvenda segredos e «esqueletos» de quatro gerações de sonhadores, intelectuais, homens de negócios mais ou menos fracassados ou mais ou menos prósperos, reformistas, sedutores antiquados e rebeldes ovelhas negras.
Celebridades históricas materializam-se em personagens autênticos, desde David Ben-Gurion a Menahem Begin e a escritores como Tchernikhovsky e ao nobelizado Agnon, todos eles algumas vezes passantes – ou passeantes - pela vida de Amos Oz.
* * *
Do que chamou a minha atenção:
Pensava que «renome mundial» significava ter pernas doentes porque eram frequentemente velhos com bengalas que coxeavam um pouco e andavam vestidos de fatos de lã grossa mesmo no Verão – pág. 9;
Em Jerusalém andava-se como num funeral ou como os espectadores atrasados num concerto: primeiro apalpava-se o terreno com a ponta do pé. Em seguida, depois de pousar o pé, não havia pressa em mexê-lo: se tínhamos levado dois mil anos a conseguir pôr o pé em Jerusalém, não íamos renunciar tão rapidamente. Porque se levantássemos o pé, podiam tirar-nos o pedaço de chão. Por outro, se já estava no ar, também não havia pressa em pousá-lo: sabe-se lá que ninho de víboras lá podia estar, que intrigas e maquinações. Durante dois mil anos tínhamos pago com sangue a nossa imprudência caindo constantemente nas mãos dos nossos inimigos porque pousávamos o pé sem medir bem as consequências. Era mais ou menos assim que se andava em Jerusalém. Mas em Telavive, qual quê! A cidade inteira parecia um gafanhoto. As pessoas, as casas, as ruas, as praças, o vento marítimo, as areias, as avenidas e até as nuvens corriam. Telavive era outro continente – pág. 14;
Sobre o mérito do escritor: Só há bênção se o murmúrio das asas assentar no suor e a inspiração nascer da perseverança e do rigor – pág. 68;
Um corredor estreito e comprido, o intestino da casa – pág. 68;
Diz o tio ao sobrinho: - Faz-me o favor de perguntar à tia onde está a pomada para a pele, o meu creme para o rosto. Diz-lhe, por favor, que é o antigo porque o novo não presta para nada. E saberás tu, por acaso, a enorme diferença que existe entre «O Redentor» na língua dos góis e o nosso «messias»? Para nós, messias é apenas alguém que foi ungido com óleo: todos os sacerdotes e reis da Bíblia são messias e em hebraico a palavra «messias» é uma palavra totalmente prosaica e de todos os dias, muito próxima da palavra «pomada» - ao contrário das línguas dos gentios nas quais «messias» é chamado «O Redentor» e «O Salvador» - pág. 82;
Sobre a cidade idealizada pelo «Amor de Sião» e a realidade: - A Jerusalém de ruas calcetadas de jaspe e ónix, com um anjo em cada esquina e por cima o céu a brilhar à luz dos sete firmamentos, não a cidade poeirenta, canicular e fanática – pág. 113 e seg.;
O avô nunca mudou a sua opinião (…): alguns dias depois da conquista da cidade velha de Jerusalém na Guerra dos Seis Dias, propôs que as nações do mundo ajudassem Israel a fazer regressar todos os árabes ao Levante, «com o maior respeito, sem tocar num único dos seus cabelos, nem se apropriar de uma galinha sequer», à sua pátria histórica, a que ele chamava «Sáudia Arábia»; «Tal como nós, judeus, regressamos agora à nossa pátria histórica, também eles devem ter o direito de regressar dignamente a casa, a Sáudia Arábia, de onde eles todos vieram – pág. 127 e seg.;
Dizia o outro avô, aquele a quem todos chamavam Papá – Há muito mais cores e cheiros do que palavras; a riqueza era pecado e a pobreza castigo mas, aparentemente, Deus queria que entre o crime e o castigo não houvesse relação nenhuma; um peca e o outro é castigado. Eis como o mundo é feito – pág. 196 e seg.;
E mais dizia o avô Papá: - Justiça sem compaixão é um açougue; compaixão sem justiça talvez fosse bom para Jesus mas não para os simples seres humanos que tinham comido a maçã do Mal – pág. 201;
Foi sempre assim nas famílias judias: os estudos constituíram sempre uma segurança para o futuro, a única coisa que ninguém jamais podia tirar aos filhos, mesmo que houvesse outra guerra, outra revolução, outra emigração ou outras perseguições – o diploma podia ser rapidamente dobrado e escondido no forro do casaco antes de fugir para um sítio onde fosse permitido os judeus viverem – pág. 223;
Dizia a mãe de Amos Oz que as sinagogas, as casas de estudo, as igrejas, os conventos e as mesquitas eram todos semelhantes, uns lugares aborrecidos que cheiravam aos corpos dos religiosos que se lavavam pouco; mesmo debaixo da nuvem pesada de incenso, sentiam-se os eflúvios enjoativos da carne mal lavada – pág. 336;
E agora é a vez de ser o pai do Autor a dizer que quem roubasse as ideias de um livro, era considerado um gatuno literário, autor de plágio; quem roubasse de cinco livros, não era considerado ladrão mas sim especialista; se roubasse de cinquenta livros, era um grande sábio – pág. 408;
Sobre quem é desprezado – os gatos também têm o direito de olhar para os reis – pág. 619.
Sim, o sub-título é obtuso. Como obtusa é a afirmação de que é uma injustiça os portugueses serem pobres. Contudo, é este o tema de um livro agora publicado a que o Autor conseguiu dar publicidade disfarçada de notícia.
Simplesmente, os portugueses são pobres porque não conseguem enriquecer honestamente.
E isso acontece por algumas, não muitas, razões:
Porque a média de instrução e formação profissional é muito baixa tanto em termos absolutos como relativamente aos nossos comparadores habituais
Porque é muito mais «imediato» viver de biscates do que se enquadrar na economia formal (em 2015, os cálculos da IENR apontam para uma economia paralela da ordem dos 27,29% do PIB oficial – v. em
Há temas que habitualmente ladeio por me parecerem menores ou apenas circunstanciais mas, de vez em quando, há um ou outro que inesperadamente chama a minha atenção. É o caso de Assange.
E a questão que me coloco é a de saber se Assange é um bandido ou um herói da transparência contra as manigâncias daqueles que estão habituados a manipular o rebanho dos mansos e amorfos. Só que estes mansos e amorfos votam e, portanto, os poderosos não podem prescindir deles num processo que se diz democrático.
E, de preferência, querem-nos – aos mansos e amorfos - devidamente manipulados, bem mansos e bem amorfos, distraídos.
A confirmar-se uma circunstância deste género, a da manipulação, quero crer que Assange deve ser considerado um herói.
Mas – e lá vem o tal «mas» que sempre existe – há questões legais (e éticas, haverá?) que o incriminam. E parece serem muitas, essas questões desde a invasão da privacidade individual até à extorsão e outras coisas horríveis…
Fica agora a minha dúvida sobre se este monte de ilegalidades de que o acusam não será, afinal, o castelo defensivo dos tais poderosos que se estão a ver descobertos e, apressadamente, o querem calar a todo e qualquer preço.
Por muito que venham por aí agora todas as costumeiras parangonas a dizer que o tipo é um bandido, eu fico na dúvida.
Mas, cautelosamente e por enquanto, não ponho as mãos no fogo em sua defesa. Por enquanto…
A bem da verdade, deveria ter juntado o subtítulo «BLUM, CAMUS, ARON E O SÉCULO XX FRANCÊS» na ficha técnica inicial mas ficaria uma paginação muito pesada e optei por esta solução que me parece razoável.
* * *
Esta, a minha leitura principal enquanto viajei pelo mundo de Mafamede assim me fazendo recordar que nem tudo é Talião.
São 280 páginas de substância, fora, portanto, as habituais fichas técnicas, título, índices e etc.
Trata-se de uma apreciação da vida intelectual de três vultos da França do séc. XX, Léon Blum (que foi primeiro ministro duas vezes), Albert Camus (que foi Nobel da Literatura) e Raymond Aron (que foi um dos mais importantes filósofos modernos franceses).
Mas, curiosamente, nenhum deles entrou neste livro por ter sido o que acima refiro: Blum, por ter sido o civilizador do socialismo; Camus, entrou como o grande moralista; Aron, pelo rigor da sua análise social.
E é sobretudo nestas perspectivas que toda a obra se desenrola numa leitura fácil apesar de constantemente abordar temas difíceis. Porquê difíceis? Porque todos eles mobilizaram as elites intelectuais e políticas francesas durante quase todo o séc. XX em discussões públicas, tanto políticas como académicas (as que transpareceram cá para fora, que não foram poucas).
Não vale a pena ler a correr, o livro não foge. Eu não o li, saboreei-o.
* * *
Uma curiosidade que só pude constatar quando cheguei ao fim da substância: a primeira frase e uma das últimas merecem a minha incondicional concordância.
A primeira frase (pág. 25, primeira frase da substância relativa a Blum): A História não é escrita como foi vivida – que o diga quem, como eu, viveu o 25 de Abril de 1974 num turbilhão comunista em que as loas à liberdade ainda hoje apregoadas mais não são do que a liberdade que os comunistas adquiriram de mandar prender quem se lhes opunha.
Frase quase final (pág. 289, última página da substância relativa a Aron): Os intelectuais franceses, observou [Aron] um dia, não procuram nem compreender o mundo nem mudá-lo, mas denunciá-lo – eis ao que continuamos a assistir tantos anos depois da morte de Aron (1983) em que a contestação permanente tudo exige sem querer saber da plausibilidade das exigências nem das consequências de uma putativa satisfação dessas mesmas pretensões às quais não apresenta alternativas - talvez porque as não tenha e porque talvez mesmo nunca tenha querido tê-las. Denúncias irresponsáveis, portanto, a que os órgãos da comunicação dão muita cobertura criando uma tensão social que muitas vezes mais não conduz do que a becos. Porquê? Porque a tensão factura e os becos são problemas alheios, não das instituições da comunicação. Os outros que se danem porque eles, entretanto, já tiveram as audiências, as tais que facturam.
Muito mais haveria para contar mas nada melhor do que ser o meu leitor a fazê-lo directamente.
NOTA FINAL – A reler, Camus na sua perspectiva moral, sobretudo na da não ficção.
Foi por terras de Mafamede que me lembrei de Santa Luzia.
Santa Luzia de Siracusa (~283-304), Santa da Luz segundo a tradição da Igreja Católica. Mesmo sem olhos, nascida numa família rica de Siracusa, foi venerada como virgem e mártir cristã que, segundo consta, morreu durante as perseguições do imperador Diocleciano.
Na antiguidade cristã, juntamente com Cecília, Águeda e Inês, todas elas atempadamente canonizadas, a veneração a Santa Luzia foi das mais populares e, como as primeiras, tinha ofício próprio chegando a ter vinte templos em Roma nomeados em sua devoção.
O episódio da cegueira, ao qual a iconografia a associa, deverá estar ligado à faculdade espiritual de captar a realidade sobrenatural. Por este motivo, Dante Alighieri, na Divina Comédia, lhe atribui a função de «graça iluminadora».
E assim foi que ficou como padroeira dos amblíopes, zarolhos, cegos e, claro está, dos oftalmologistas – e presumo que dos optometristas, oculistas e outros que tais…
E porque foi em terras de Mafamede que me vi metido em trabalhos com o meu olho direito, lembrei-me dela. E muito!
Então, foi assim…
… meti-me a fazer um rally pelas dunas do deserto do Dubai e na manhã seguinte apareci com a sensação de que ia fazer um treçolho. Só que não tinha a pálpebra inchada. O pseudo-treçolho desapareceu mas surgiu uma mancha opaca. No hospital do barco deram-me um antibiótico oftálmico e um anti-inflamatório. Assim me tratei até ao final do cruzeiro (rejeitei uma ida a um oftalmologista em Aqaba) e apresentei-me no Banco do Hospital de Santa Maria no dia seguinte à chegada a Lisboa. Médicos em polvorosa a espreitarem cá para dentro, análises (normais), TAC (normal), ida à Neurologia (saído limpo)… mais análises na manhã seguinte mas, entretanto, tome lá isto mais aquilo. E tomei. Vá ter connosco ao «Instituto Gama Pinto». Fui. Devo ter sido observado por cerca de uma dúzia de especialistas. Absolutamente formidável a atenção que me dispensaram. Derrames e inflamações desde a córnea ao disco e ao próprio nervo óptico. Como acontece uma coisa destas? Sabemos lá! Vi-os «à nora» e foram muito sinceros (e sérios, claro!): Quando não sabemos o que fazer, receitamos cortisona. Tome isso! Tomei tudo nas doses prescritas.
Voltei lá hoje e viram-me pormenorizadamente. Que estou incomparavelmente melhor. Reduziram-me a medicação. Posso montar de novo a cavalo mas com cautela. Querem ver-me no final do mês e então é que se vai ver quanta visão mantenho no olho afectado. A ver, como se diz em Oftalmologia.
Valham-me Santa Luzia e os médicos do Gama Pinto.
Sim, quem se mete por terras de Mafamede… é como quem adormece com crianças, sai húmido.