Acho uma certa graça ouvir os que se referem ao Euro como a moeda comum aos países da chamada «eurolândia». Será que acreditam mesmo no que dizem?
É que o Euro só é comum no nome por que optaram os países que a ele aderiram pois, quanto ao mais, cada país vale por si e não pode contar com mais nada para além das obrigações que com a adesão assumiu. Refiro-me à paridade perante moedas terceiras, o que implica uma política monetária e cambial praticada pelo Banco Central Europeu e não mais pelos ex-bancos centrais. E quase só isso.
É que no relacionamento inter-pares, tudo funciona como se cada um valesse por si. E é isso mesmo, cada um vale mesmo só por si. Ou tem crédito sobre os demais ou não tem esse crédito e tudo falha no que se refere à «solidariedade financeira».
Se um banco do país A esgotar o crédito que tenha sobre os bancos do país B, C ou D, deixa de ter capacidade de financiamento das transacções que os seus clientes queiram fazer com origem nesse país B, C ou D, importações nomeadamente. Mesmo que o cliente lhe tenha depositado os Euros (internos) para financiamento da operação em causa. É que os Euros cá de dentro não significam crédito lá fora, em Euros de lá.
Ou seja, tudo se assemelha ao antigamente: ou o nosso banco tem crédito sobre os seus parceiros externos ou não o tem. E não o tendo, tudo cessa se o nosso banco não se quiser expor de tal modo que a solução seja do tipo da absorção do devedor pelo credor.
Portanto, chamar moeda comum ao Euro pouco menos é do que mero bluff. É, sim, uma moeda com nome comum e quase só isso mesmo.
Numa época em que os juros estão a subir nos mercados financeiros internacionais, lembro-me do tal «figurão» que dizia que as dívidas não são para pagar.
E apesar do título do presente escrito inspirar racionalidade, começo com um dogma que, por definição, dispensa racionalidade:
Uma pessoa de bem, paga o que deve
Este dogma aplica-se tanto na dimensão micro como na macro, ou seja, às pessoas e aos Estados. Porque, ao contrário do que disse esse tal «figurão», as dívidas são mesmo para pagar.
Então, deixando a questão da dívida micro ao cuidado dos contabilistas, a nível macro a dívida global tem duas componentes: a pública e a privada, ambas com as vertentes interna e externa.
A dívida pública é a que vem sendo mais referida pela comunicação social mas a privada também tem que se lhe diga – e muito.
A dívida pública, constituída para financiar os défices públicos, só pode ser reduzida na medida dos superávites públicos; a dívida privada externa– a que mais me preocupa - só pode ser reduzida na medida dos saldos positivos da balança de transacções correntes.
Enquanto não tivermos saldos positivos nas contas públicas, não reduziremos o stock da dívida pública; se não tivermos saldos positivos na balança de transacções correntes, o sistema bancário nacional continuará a endividar-se sobre o exterior persistindo na via da falência ou, no mínimo, da absorção pela banca estrangeira.
Temo que o Orçamento de Estado para 2019 nada tenha muito a ver com este tipo de preocupações. É claro que se trata de um Orçamento folclórico para entreter a esquerda caviar e a ferrugenta na certeza, porém, de que as «centenárias» cativações o vão pôr nos conformes com as necessidades da redução do stock da dívida pública. Sim? A ver vamos por causa das eleições…
E quanto à dívida externa privada? Ah! Aí pia muito mais fininho e o problema só se resolve com mais falências bancárias. Qual será o próximo?
Como de costume, recorro à contra-capa e às badanas para descrever minimamente o enredo sem incorrer em inconfidências que estraguem a leitura dos leitores futuros.
Assim, diz o narrador que a vida é aquilo de que nos recordamos, ou seja, as grandes histórias que vivemos. Nada, de repente, existia a não ser Lisboa, cinquenta anos atrás. A minha Lisboa, onde amei tanto e tantas vezes. A minha Lisboa, das pensões e dos espiões, dos barcos ingleses e dos submarinos alemães; a Lisboa das ligas da Mary em cima de um lençol branco; a Lisboa dos coscktails no Aviz enquanto eu perseguia Alice; a Lisboa do penteado «à refugiada» da minha noiva, a Carminho; a Lisboa dessa menina frágil e alemã, Anika, por quem arrisquei o pescoço; a Lisboa de Michael…
Lisboa, 1941, um oásis de tranquilidade numa Europa fustigada pelos horrores da guerra…
Narrativa que põe o leitor «dentro» do ambiente que se vivia naquela época na grande Lisboa num estilo leve de muitos diálogos entre personagens reais e fictícias, o que só é possível quando tudo se configura numa grande compatibilidade entre o real e o imaginário. Curiosa alternância entre o passado e o presente em que o personagem principal assume a função de narrador e a de actor.
Interessante, a cena em que a antecessora da PIDE, a PVDE, se vê na necessidade de prender dois figurantes (fictícios) para os livrar das garras da Gestapo. Si non é vero, é ben trovato.
Quanto ao que me tocou, refiro que parte substancial da trama romanesca é passada num cenário que corresponde às ruas que me são vizinhas, as das Embaixadas inglesa e alemã nesse período da História, ao da residência oficial do então Presidente do Conselho de Ministros, ao hotel em que o narrador se instala 50 anos depois de a paz ter regressado. Conheço-lhes o aroma das «damas da noite», tudo me pareceu acontecer em frente ao meu bigode. Mais: conheci pessoalmente um dos personagens verídicos que o Autor tanto cita e que tinha um dos primeiros Jaguar E que houve em Portugal.
O livro poderá não vir a dar o Prémio Nobel ao Autor mas eu li-o com interesse.
A aculturação das populações pelos grandes meios de comunicação a um modelo standard e globalizado corta o acesso às raízes culturais mais endógenas e isso anula qualquer ética étnica, essência da cultura mais genuína dos povos.
Uma vez desenraizadas e fidelizadas a novas «divindades» tão motivadoras como as telenovelas (e seus complementos, os telejornais), às legiões pseudo desportivas ou aos clubes políticos, as multidões deixam-se esmagar pelo stress publicitário, acreditam na demagogia partidária e sindical que as convence de que a tudo têm direito, usam e abusam do crédito que a banca lhes apresenta como se de mais um direito se tratasse, endividam-se para além dos limites do razoável e, quando menos esperam, vêem-se falidas e perseguidas pelos algozes ao serviço dos «deuses» em que foram induzidas a acreditar.
Se a todo este absurdo somarmos a mentira institucionalizada a que está na moda chamar-se a «pós-verdade» e eufemizarmos a realidade acima descrita chamando-lhe «cenário quântico», então continuaremos na fuga para a frente rumo à completa irracionalidade.
Colhe, assim, perguntarmo-nos como estaríamos agora se as multidões já se tivessem apercebido do ocaso dessa «religião» que dá pelo nome de Hedonismo e do respectivo «deus», o Prazer.
E a questão é: - Como hão-de as multidões erguer-se acima do caos e emergir à luz do Sol?
Então, a resposta é: - Pela reintrodução de significados tão antigos como o bem e o mal.
E lendo D. Manuel Clemente no seu livro “1810-1910-2010 DATAS E DESAFIOS” (pág. 121), «as coisas não são boas ou más porque Deus as mande ou as proíba; antes as manda porque são boas e as proíbe porque são más».
Ou seja, tanto o bem como o mal existem fora da discussão teológica e por isso também é possível erigirmos uma Ética laica. Não ser religioso não é, portanto, desculpa.
E onde está o mal?
O mal está no contrário do bem. Assim, basta encontrarmos o bem para que, no seu oposto, encontremos o mal.
E o que é o bem?
O bem é o que está conforme à ética e à moral sendo esta a questão dos princípios e aquela a dos factos.
A proposta laica (mas enquadrável religiosamente) que aqui endereço a todas as pessoas de boa vontade é a condição ética definida pela síntese do «eu, tu, ele»: o que é que eu quero, posso e devo fazer por ti sem o prejudicar a ele, esse terceiro que pode nem sequer ser nosso conhecido?
Uma atitude inicial que parte do voluntarismo traduzido pelo «quero», que reconhece – com mais ou menos humildade – as limitações pessoais através do «posso» e que se auto impõe o «dever»: altruísmo, humildade, sentido do dever.
E aí está ele, o contrário do bem, o mal representado pelo egoísmo, pela arrogância e pela irresponsabilidade.
Então, passando do singular ao plural na síntese do «nós, vós, eles», chegamos ao bem-comum (a que também poderemos chamar «Sentido de Estado»): o que é que nós podemos fazer por vós sem os prejudicar a eles, esses terceiros que não sabemos sequer quem são.
E assim regressamos à questão estaminal da distinção entre o bem e o mal.
Estes são temas sobre que nunca é demais pensar e sem o que nunca chegaremos ao Céu.
E foi preciso andar tanto para, afinal, regressarmos aos primórdios da Civilização?
Sim, é que, como dizia Hölderlin, o poeta atacado de mansa loucura, «somos originais porque não sabemos nada».
FIM
Henrique Salles da Fonseca
(Setembro de 2018, em Bali, frente ao caos e à ordem)
Hoje, escolho “O crepúsculo do dever”[2] como o livro de Gilles Lipovetsky que me parece mais apropriado para o tema que me move neste escrito, o da morte prematura da moral e da ética.
(...) A sociedade post-moderna ou post-moralista designa a época em que o dever se adocicou e tornou anémico, em que a ideia do sacrifício pessoal se ilegitimou socialmente, em que a moral já não exige que as pessoas se devotem a uma causa superior, em que os direitos subjectivos dominam os mandamentos. Na sociedade post-dever, o mal transformou-se em espectáculo, o ideal pouco engrandecido. Se perdura a crítica do vício, o heroísmo do bem enfraquece. Os valores que reconhecemos são mais tidos como negativos do que como positivos. Por trás de uma falsa revitalização ética, triunfa uma moral indolor, último estádio da cultura individualista democrática. (...) [pág. 57 op. cit.]
Na sequência do que chegámos à filosofia do poder, aquela em que o grande objectivo é o poder e que resulta claramente de um espírito de permanente competição. Como cada vitória tenderá a elevar o nível dessa mesma competição, o final lógico de tal filosofia é o poder ilimitado e absoluto. Aqueles que buscam o poder podem não aceitar as regras éticas definidas pelos costumes, a tradição e, pelo contrário, adoptam outras normas e regem-se por outros critérios que os ajudam a obter o triunfo. Tentam mesmo convencer as outras pessoas de que são éticos no sentido do objectivo supremo por eles definido tentando conciliar o poder e o reconhecimento da moralidade.
Assim foi que se sentaram na cadeira do poder muitos daqueles para quem a ética dos costumes virtuosos, das leis naturais, da fé, do voluntarismo e da disciplina são palavra vã. Daí ao poder absoluto, à ausência de regras consensualmente construídas, ao Direito «pret à porter» e à dissolução do Estado de Direito, vulgo o fascismo, não dista muito ou não dista mesmo nada. Ignorados os princípios que definem o bem-comum, instala-se o “salve-se quem puder”, instala-se a razão da força em oposição à força da razão.
Globalizado e sacralizado o império da competição desenfreada, não mais resta qualquer esperança de sobrevivência aos que não sejam campeões. E a alternativa para os não campeões – em que o 2º classificado mais não é do que o 1º vencido – é unicamente a de serem servos. Servos mais ou menos mitigados, mais ou menos engravatados, numa gaiola mais ou menos doirada mas servos e apenas servos.
O poder mal alcançado é o oposto da glória e por isso me apetece voltar a Popper para, com ele, lastimar que, perante tanta desgraça, «só nos reste ir para o Inferno».
Mas não, pelo contrário, opto pelo título verdadeiro do romance de Graham Greene, «THE POWER AND THE GLORY».
Henrique Salles da Fonseca
(templo hindu, Yogyakarta)
[1] - Corruptela do título do livro de Graham Greene, “THE POWER AND THE GLORY”
É quando menos esperamos que nos cruzamos com gente conhecida e assim também acontece com pensamentos nossos, actuais, em escritos alheios muito anteriores.
Foi o caso de andar eu a confabular sobre estas matérias da liderança e tanto da legitimidade como da transparência do Poder e ter começado a ler um livrinho de Karl Popper sobre questões epistemológicas[1] deparando logo no Prefácio com linhas que eu poderia subscrever.
Diz Popper ser naturalmente favorável à democracia, mas não do mesmo modo que a maioria dos seus defensores. Citando de Churchill a célebre frase «A democracia é a pior forma de governo com excepção de todas as outras», reconhece que não temos alternativa ao respeito pelas decisões livremente expressas da maioria mas acrescentando que um governo democrático é responsabilizável sendo que a responsabilidade perdura individual e colectivamente para além do exercício do período do respectivo mandato. Trata-se duma responsabilidade moral e ética, mais do que uma responsabilidade meramente cívica ou mesmo criminal. E essa é a grandeza da democracia – a responsabilidade moral e ética.
Não fora cruzar-me com estes pensamentos de Popper e lá estaria eu a dar razão ao poeta alemão Hölderlin[2] quando dizia que «somos originais porque não sabemos nada». Pior, lá estaria eu a fazer meu o que genuinamente era alheio.
Então, a responsabilidade e possível responsabilização moral e ética fazem a diferença para com os governos que se dizem «do povo» que, no final, provam ser apenas modos de servir os interesses de nomenklaturas frequentemente demagogas e falaciosas. Estas, acabam normalmente julgadas por critérios criminais; e se o não forem no plano judicial efectivo, são-no certamente pela História e perante a Humanidade.
Eis a grande diferença entre as elites que devem liderar pelo exemplo da elevação e as nomenklaturas que devem ser judicialmente responsabilizadas.
É a diferença entre o trigo e o joio.
Talvez não fosse mau darmos uma vista de olhos pelos escritos de Gilles Lipovetsky[3]. Já lá iremos…
Henrique Salles da Fonseca
[1] “A Vida é Aprendizagem – epistemologia evolutiva e sociedade aberta”, Karl Popper – EDIÇÕES 70, ed. de Fevereiro de 2017, pág. 11 e seg.
[3]Gilles Lipovetsky (Millau, 24 De Setembro de 1944) é um filósofo francês, teórico da Hipermodernidade, autor dos livros A Era do Vazio, O luxo eterno, A terceira mulher, O império do efêmero, A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo, entre outros.
À laia de interregno, deixemos os níveis etéreos e desçamos às realidades terrenas para enquadrarmos a questão portuguesa nessa substituição do ser pelo ter.
Isso de se querer «tudo e já» conjugado com a substituição do ser pelo ter, numa economia pouco produtiva e, mesmo assim, com baixa produtividade, só pode levar ao desastre na balança comercial, na de transacções correntes e mesmo na de pagamentos. Daí à falência perante o exterior foi um passo (como todos sabemos por experiência colectiva própria) e não houve turismo nem remessas de emigrantes que na crise suprema conseguissem tapar o buraco. Tivemos mesmo que pedir ajuda aos credores e passar por todas as restrições que tanto doeram.
E, atenção, não refiro a apropriação indevida de bens e liquidezes que por aí campeou; apenas refiro a falta de capacidade da oferta interna para suprir o consumo também interno. Quando a produção interna é restringida por inúmeros factores (custos de contexto, opacidade dos mercados, vícios na formação dos preços) e o consumo é incentivado, só o cenário da catástrofe se afigura como plausível.
Então, não serão necessárias muitas mais explicações para se compreender que «quem não trabuca, não manduca» e que o verdadeiro motor do desenvolvimento não é o consumo mas sim a produção dos bens transacionáveis que todos tanto gostamos de consumir. Quase diria que Colbert deveria ser desenterrado para nos impor o seu mercantilismo durante uns tempos. E digo impor porque «às boas» não iremos lá. Lá, onde? À racionalidade da auto-sustentabilidade pela via da produção e da competitividade.
E aqui, trago um excerto de um escrito de Francisco Gomes de Amorim no qual se refere à podridão:
O Brasil bateu todos os recordes do mundo em ladroagem e corrupção, tem uma classe política com uma abissal falta de educação, cultura, ética, classe e conhecimentos, mas continua a ser um lugar meio mítico com o seu carnaval, as suas praias e as suas gentes, sempre amáveis.
Corrupção houve desde sempre, sempre. Lembremos só o Bezerro de Ouro, a ter-se passado foi há mais de 3.500 anos, os 30 dinheiros que o pobre Judas recebeu, os presentes que davam a Khrushchov quando premier dum mundo eufemisticamente chamado comunista, o governo do general Grant no EUA, considerado o mais corrupto de toda a história daquele país (incluindo Bush) e centenas, milhares de outros, entre eles o Príncipe Bernardo da Holanda que recebeu mais de um milhão de dólares para que usasse sua influência junto ao governo neerlandês na aquisição de aviões de combate americanos!
Olhemos à nossa volta e meditemos. Mas não olhemos de mais para não cegarmos com tanta vergonha nem meditemos de mais para não ensandecermos ou entrarmos em curto circuito neurológico.
Ponto final no interlúdio terreno, regressemos à elevação.
Assim é que, sob o culto do consumismo de bens, serviços e notícias, colhe perguntar se resta lugar para valores éticos e morais.
Mais concretamente, a questão está em saber qual é o lugar dos valores superiores num mundo de factos e como podem aqueles entrar neste mundo primário.
Poucos são os homens de Ciência que escrevem sobre valores porque a grande maioria considera que isso não passa de mero palavreado.
Contudo, os valores emergem juntamente com os problemas e frequentemente estes dizem respeito a factos.
Uma coisa, uma ideia, uma teoria ou uma mera abordagem podem ser admitidas como válidas para ajudar a resolver um problema mas só passam a pertencer ao mundo intelectual se forem submetidas à discussão, à crítica. Antes disso, pertencem muito provavelmente apenas à esfera do empirismo. Até porque tudo começa empiricamente e só depois é que evolui para outros patamares.
É que o mundo mais primitivo, desprovido de vida, não tinha problemas e, como tal, não tinha valores porque os problemas entram no mundo pela mão da vida e não apenas pela da consciência. Daqui resultam dois tipos de valores: os criados pela vida, pelos problemas inconscientes tais como os do reino vegetal; os criados pela mente humana com base em soluções anteriores na tentativa de resolver problemas. É este último tipo de questões – formadas pelo conjunto de problemas historicamente originados em factos, respectivas soluções, críticas para o despiste de erros, teorias globalizantes e valores consequentes – que dá forma ao mundo da intelectualidade.
O mundo dos valores transcende, pois, o mundo sem valores e meramente factual, o mundo dos factos brutos.
O drama está quando se disfarça de intelectualidade a mera discussão de factos e, mais gravemente, de pessoas.
Eis a imensidão do que fica por fazer entre o primarismo factual e a elevação dos valores.
Resta a esperança de que uma elite consiga preencher esse imenso vazio.
Então, a primeira questão é: - O que são elites?
Sendo que a segunda questão é: - A elite é-o porque tem ou porque pensa e, portanto, é?
O materialismo considera que a elite tem.
A terceira questão é: - Alguém duvida sobre o que nós pensamos?
Para além da espiritualidade, todas as religiões tratam de questões sociais de tal modo que cada uma delas construiu o seu próprio Código de Conduta e, daí, a sua civilização: civilização hindu, civilização budista, civilização judaica, civilização cristã, civilização muçulmana, …
Assim foi que tempos houve em que eram os teólogos a ditar essas normas sociais e quando os argumentos lógicos não bastavam, avançava-se com a ameaça da ira divina; e se mesmo esta não bastasse, ditava-se o dogma. Exemplos? Tantos que é impossível enumerá-los: não comer carne de porco; não beber álcool; não comer carne à sexta-feira; não cobiçar a mulher alheia; etc…
E foi da base dogmática e sequente exegese que derivou o quadro jurídico que a partir de certo estádio se tornou progressivamente mais «civil» e menos espiritual. Relativamente a nós, ao Ocidente, a Revolução Francesa foi decisiva para esse corte entre o Clero e o Povo.
Na sequência da tomada da Bastilha e com a chegada das forças populares ao Poder, o Regime laicizou-se e a ameaça da ira divina foi substituída pela «obra» bem mais terrena do médico Joseph-Ignace Guillotin.
Então, na ausência de uma justificação sobrenatural, qual passou a ser o rumo dos povos? E a resposta está no regresso à filosofia platónica em que o objectivo da vida é a obtenção do prazer - não há mais uma vida edénica para além da morte, há, na vida terrena, um direito inalienável de obtenção do prazer. Que tipo de prazer? O prazer de todos os tipos, desde o virtuoso ao vicioso. E como a fé numa vida para além da morte deixou de ser crível pelos actuais «senhores da guerra», há que obter de imediato o máximo de prazer.
O crescimento não é um mero pormenor na ideologia do mercado livre. É toda a sua essência.
Jonathan Franzen, in «Liberdade», ed. D. Quixote, 4ª edição, Setembro de 2015, pág. 442
É da natureza humana ambicionar para o futuro algo melhor do que o presente já que ao presente lhe cumpre mostrar ser melhor que o passado.
E ao que não decorra deste modo se lhe chama contra-natura.
Dando-se a circunstância de a vocação da política ser precisamente a de desenhar o caminho entre a situação presente e a situação futura que se pretende melhorar, não há programa político que não refira o objectivo do crescimento como instrumento para se alcançar um determinado tipo de bem-comum. Até porque o decrescimento está associado à recessão, à perda de qualidade de vida.
Então, é na definição do bem-comum e no caminho para lá se chegar que diferem as diversas propostas partidárias, as quais, em democracia, são ciclicamente postas a referendo popular.
Ganha o melhor? Não propriamente; ganha o que melhor souber «vender o seu produto». Mais concretamente, ganhará aquele que fizer as promessas mais apetecidas pelos eleitores. E assim tem sido desde que a ditadura do número – a que chamamos democracia - passou a ser o melhor regime que se nos oferece. Contudo, as forças políticas que tradicionalmente (desde o final da II Guerra Mundial) têm dominado o cenário europeu, vêm ultimamente sofrendo sérias ameaças e até rudes golpes por parte de novas forças a que os «velhos» se apressam a apelidar de populistas. E esses «novos» não são apenas de direita (a Alternative für Deutschland, o francês Front National, o Freiheitliche Partei Österreichs, etc.) mas também de esquerda (o Bloco de Esquerda em Portugal, o Podemos em Espanha, o Sirysa grego, etc.). E nas bocas dos «velhos», todos estes novos passam por populistas… como se eles, os tradicionais, não tivessem sempre sido isso mesmo. A essência da democracia é o populismo e dizer o contrário é ser elitista, platónico.
E se já nos cenários tradicionais o que para uns era positivo e para outros podia ser negativo, actualmente, as diferenças radicalizaram-se. Ou seja, as variáveis dos diversos modelos económicos (e sociais) têm interpretações diferentes conforme o campo político a que pertençam os observadores e quanto mais actores buscarem o protagonismo, mais essas diferenças tenderão a acentuar-se.
Aos eleitores são apresentados leques mais profusos de alternativas e resta saber se o eleitorado distingue o trigo do joio, ou seja, o plausível do utópico.
Há quem considere a produção como o grande motor do desenvolvimento mas outros há que consideram que o grande motor é o consumo; há quem aposte na indústria a há quem aposte nos serviços; há quem queira erradicar o analfabetismo mas também há quem considere que a felicidade está na ignorância… Mas todos apregoam que querem o crescimento.
Crescer até onde? Tem o crescimento um tecto ou pode ir até ao Céu infinito? Se não tem, tudo bem, o modelo político pode continuar; se tem, o discurso político extingue-se. E depois?