Coevo é sinónimo de contemporâneo e os historiadores estão sempre a procurar documentos coevos do acontecimento que querem historiar porque os consideram as fontes verdadeiramente fidedignas, credíveis; que tudo o mais é susceptível de dúvidas, de interpretações.
Ora, se ser contemporâneo é prova historicamente reconhecida de fidelidade ao acontecimento, então nós próprios – os que vivemos certos acontecimentos – somos esses «documentos» coevos historicamente reconhecidos como válidos. Ou seja, os nossos relatos pessoais são tão válidos (ou mesmo mais) do que as crónicas de Fernão Lopes relativas a D. Pedro I e a D. Fernando ou de Gomes Eanes de Zurara relativamente a D. João I. Estes cronistas relataram o que presenciaram mas também dá para crer que escreveram o que os respectivos «patrões» lhes mandaram escrever. E nós, que vivemos os acontecimentos de que falamos e não temos «patrões», não somos credíveis, porquê?
Fernão Lopes
Gomes Eanes de Zurara
Coeso é aquele em que há coesão, o que une, liga; o que é fiel à verdade dos acontecimentos a que se sente ligado.
E a questão é a de saber por que razão Fernão Lopes e Zurara hão-de ser mais credíveis que nós, os que vivemos nos tempos dos Consulados do Doutor Salazar e do Professor Marcello Caetano.
Nós, sendo coevos e coesos, somos provavelmente mais credíveis que esses afamados cronistas pois nós assistimos às ocorrências e não nos submetemos a quem nos queira dizer o que devemos escrever.
E quem são esses «nós»? Não sei. Falo por mim e digo o que penso. Eu sou o tal «documento» coevo e coeso porque assisti a muitos acontecimentos das épocas relativas aos Consulados que refiro e não tenciono escrever de modo diferente ao que observei.
Marcello Caetano, Historiador e a Academia Portuguesa da História
Orador – António Alves Caetano, Professor Doutor
Local – Lisboa, sala de actos da sede da Academia
Data – 24 de Janeiro de 2018 (15,00 h.)
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Nota prévia – fui marcelista por quase todas as razões que me tinham feito não salazarista, o que explicarei noutra ocasião. Por agora, basta dizer que considero importante fazer justiça a Marcello Caetano. Também para isso, fui à conferência.
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Sala tão cheia que foi necessário ir não sei onde arrebanhar cadeiras para que não fossem muitos assistentes a ficar de pé. A coxia central quase desapareceu; as coxias laterais já lá não estavam quando entrei.
O orador tinha sido meu Professor na minha efémera passagem pelo ISCEF em 1962/3 (donde zarpei enxotado pelo famigerado ambiente das greves académicas) e dele guardava uma ideia que confirmo passados todos estes anos: a de quem, com toda a naturalidade, se dá ao respeito, sabe do que fala, ensina com método.
Hoje, para além das características anteriores, falou com erudição.
O tema geral era meu desconhecido pois sabia que o Professor Marcello Caetano fora doutrinador de Direito mas não sabia que tinha sido historiador. E, pelos vistos, com vastíssima obra - desde os temas relativos às estruturas económicas medievais na cidade de Lisboa e as questões legais e políticas abordadas nas Cortes de Leiria em 1254 até às «manigâncias» manuelinas contra os judeus, tudo foram novidades para mim. E muitos mais temas que não fixei porque erradamente não tomei notas.
Recordei que a Academia Portuguesa de História, instituída em 1936, é a sucessora da Academia Real da História Portuguesa instituída no reinado de D. João V e fiquei hoje a saber que o Professor Marcello Caetano fez parte do grupo de refundadores ocupando a cadeira 24 até que faleceu em 1980. Apesar de academicamente ser de ramo diferente, foi reconhecido como historiador e teve cargos relevantes na estrutura da Academia.
Debalde, procurei o seu retrato numa das paredes da sala de actos mas concluo que deve estar exposto nalguma outra dependência a que o público anónimo não tem acesso…
Resta-me a esperança de que o Professor Alves Caetano autorize que a Academia publique o texto da sua conferência. Comprarei com todo o interesse.
No final, houve um simpático período de comentários, perguntas e respostas de que fixei o pedido de alguém na assistência no sentido de se organizar outra conferência em que se aborde o tema de «Marcello Caetano como pedagogo».
Em vez de pedir a palavra nesse período, aproveito agora este espaço que o éter me oferece aqui para pedir que se realize ainda uma outra conferência que aborde o tema «Marcello Caetano como actor na História de Portugal».
É que só assim se começará a fazer a justiça que tarda.
Não eleves a fé até à altura do vôo dos pássaros e não rastejarás depois como os vermes.
John Steinbeck, in «As vinhas da ira» (pág. 110 - LIVROS DO BRASIL, edição de Novembro de 2014)
Por cá, dizemos «fia-te na Virgem e não corras, logo verás o trambolhão que dás». Ou seja, o livre arbítrio é determinante no rumo das nossas vidas, o determinismo não faz sentido. Temos sorte na vida se a soubermos «levar direitinha»; com muitas probabilidades, o azar bate-nos à porta se não procurarmos acertar, se pusermos o pé em ramo verde, não pusermos as barbas de molho.
O anjo da guarda só actua se nós não abusarmos da sorte, se agirmos dentro da sociabilidade, enfim, se seguirmos o Decálogo com um mínimo de respeito; ele, o anjo da guarda, age contra agressões externas, não contra o mal que façamos a nós próprios tanto por actos como por omissões.
No que respeita à saúde, convém passarmos pelo médico antes que este já nada saiba fazer e quando isto suceder, então e só então, é que devemos procurar a ajuda sobrenatural.
Fomos dotados duma capacidade estaminal de raciocínio que nos tem permitido grandes progressos científicos. A própria capacidade de raciocínio, a inteligência, tem evoluído muito ao longo dos milhares de anos que a humanidade já conta e, portanto, afrontaremos quem nos dotou dessa capacidade estaminal se não recorrermos aos conhecimentos adquiridos e se não nos deixarmos tratar por quem utilize a medicina em conformidade com a ética.
Curámo-nos da maleita que nos incomodava? Óptimo! Isso foi porque nos deram a injecção certa, nos submeteram à cirurgia conveniente, nos fizeram a transfusão de que estávamos necessitados. Deixemos o «queira Deus» para quando o homem já não souber actuar. Então, sim, entreguemo-nos ao Altíssimo.
Santos - refiro-os no masculino apenas por uma questão de simplificação da escrita mas é para mim claro que o feminino se lhe aplica em perfeita igualdade.
Sei de Santos em várias religiões – na hindu, na budista, na católica e na muçulmana. Nas outras, não sei se os há.
E o que é um Santo? Objectivamente, é alguém a quem os fiéis pedem bênçãos por intermediação com a Divindade Suprema. E serão mesmo “muito bonzinhos” como diz a crença popular? Tenho as minhas sérias dúvidas de que tenham obrigatoriamente que o ser. Não podem é ser maus porque, se o forem, não serão aceites como intermediários credíveis entre Deus e o humano pecador (mas não obrigatoriamente pecaminoso).
Como se pode, então, ser intermediário entre Deus e os homens? Tenho como condição essencial, a de ser aceite por ambas as partes, Deus e homens, sem o que não se estabelece a imprescindível ligação. E só uma grande finura espiritual pode alcançar o misticismo necessário à aproximação da Divindade Suprema - o Ser Supremo budista, Brahma hindu, Allah muçulmano, o Deus cristão - e em nome dos homens obter a dádiva por estes pedida. Tudo, no singular ou no plural, no masculino ou no feminino.
Esta aproximação e intermediação pode ser feita em vida do Santo, antes do reconhecimento canónico por parte das respectivas Igrejas; o Santo pode sê-lo antes da canonização uma vez que esta é apenas o reconhecimento oficial (canónico) pelos homens das capacidades sobrenaturais do Santo, do seu misticismo. Mas o Santo é-o independentemente de ser ou não reconhecido pelos homens.
Daqui, dá para imaginarmos quantos Santos por aí andam ou andaram que ninguém conhece nem reconhece…
Os Santos são-no por si próprios, não pelo reconhecimento humano e com ou sem parusia.
Citam os antigos quatro seres da esfera espiritual: anjos, arcanjos, querubins e serafins.
Os anjos são citados como mensageiros e executores da ordem divina, espíritos que servem a Deus e aos humanos. Em alguns textos cristãos, os anjos são descritos com características semelhantes às humanas.
O arcanjo é uma espécie de “Anjo-chefe” e exerce uma posição de destaque na esfera espiritual. Por exemplo, São Miguel Arcanjo, o protector de Portugal, é uma figura mística que não corresponde a alguém que tenha vivido na Terra e que historicamente resulta da cristianização do deus romano Zéfiro que, por sua vez, tinha sido a romanização de Endovélico, o deus dos lusitanos.
Santuário de Endovélico – Rocha da Mina
Quanto aos querubins e aos serafins, parecem-me fruto de imaginações muito elásticas e, portanto, não os levo em consideração. Não creio que tenha sido algum destes que me tenha chamado.
E o que é a verdade? A verdade da nossa vida, sendo o contrário do erro, é revelada pelo sentido protegido da vida individual terrena, a que levamos. Nada a ver com qualquer predestinação definida superiormente, apenas com a «boa gestão» de um processo em que o livre arbítrio desempenha um papel central; um sentido místico que nos protege não nos deixando cair em tentações, nos dá sinais que nem sempre percebemos e, portanto, não seguimos; a que subjaz a uma orientação que nos é concretamente sugerida pelo tão esquecido Decálogo.
Tudo, para além da mera ordem cognitiva metafísica; tudo, na ordem da fruição mística, do superlativo intelectual.
Etimologicamente, «Mitologia» vem de mito que é algo que não existe, que é ficcional; «Teologia» tem a ver com «teo», Deus.
Independentemente da verdade, só a nossa religião é teológica; todas as demais são mitológicas.
Inti é o nome quéchua do Sol, tido pela divindade mais significativa da fé do Inca.
Culturas anteriores à quéchua tinham Viracocha como sendo a suprema divindade. A definição completa do seu poder absoluto passava pela enumeração da sua superioridade sobre a água, a terra e o fogo mas evoluiu para um conceito mais complexo que acabou por se tornar no Deus único e criador universal, Inti.
Este novo e muito poderoso Deus do Sol não estava sozinho, estava casado com a sua irmã, a Lua com quem compartilhava uma posição igual no tribunal celestial. A Lua era conhecida sob o nome de Mama Quilla.
Inti era representado por uma elipse de ouro; Mama Quilla era representada por um disco de prata. Como um criador, Inti era adorado e reverenciado, mas também concedia (ou não) favores e ajudava (ou não) a resolver problemas e aliviar as necessidades; só ele podia dar boas colheitas, curar doenças e providenciar a segurança exigida pelo homem. E no meio de Natureza tão agreste com desertos tão áridos, com chuvas diluvianas, com tremores de terra e tsunamis tão devastadores, bem se compreende como esta (e qualquer outra) divindade era importante.
A Mama Quilla foi atribuído o fervor religioso das mulheres e elas foram as que formaram o núcleo duro dos seus fiéis seguidores. Quem melhor do que Quilla conseguia entender os seus desejos e os seus medos dando-lhes a protecção pretendida?
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Teologia ou apenas mitologia, uma coisa é certa: mesmo fora da influência das civilizações nossas conhecidas no Médio Oriente, no Oriente, no seu Extremo ou aqui na Europa, o homem acreditava em divindades - ou porque as sentira ou apenas porque precisava de se agarrar a uma crença. E aceitou os intermediários que lidam directamente com o divino: os xamãs, os médiuns, os sacerdotes, todos mais ou menos profissionais, todos verdadeira ou falsamente imbuídos de misticismo, uns verdadeiros, outros charlatães.
Mas, ao contrário dos que matam em nome de Deus, eu acho que a fé não se discute.
Quando todas as questões científicas possíveis e imagináveis tiverem sido respondidas, os problemas da vida – a tragédia, o sofrimento, a felicidade, o significado das nossas vidas – permanecerão completamente intocados porque a ciência e o mistério da vida são dois mundos diferentes. E, neste sentido, a ciência priva-nos da verdade. Então, perdemo-nos num amontoado de verdades transitórias e parciais.
Eis por que, perdido o sentido da metafísica, nenhuma verdade pode existir, a mentira domina e triunfa o nihilismo da missão do homem na vida. E esta vacuidade leva forçosamente à filosofia do poder, ao «salve-se quem puder». E foi nesse desespero que Nietzsche pôs termo à vida.
O drama actual está em evitar que a nossa velha Civilização continue na senda nietzschiana. Também, com todo o materialismo e profusão do conforto consumista, chegámos à alienação pela obesidade física, ao enfartamento informativo, à manipulação do conhecimento, à anulação da velha sabedoria geracional.
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Depois deste interregno sociológico, sem nos transformarmos em anacoretas, urge regressarmos à Metafísica para não ficarmos fisicamente enfartados e pensarmos pelas nossas cabeças em vez de nos deixarmos manipular pela indústria da informação.
E a questão é: onde cabem os anjos mensageiros da verdade nesta floresta de verdades transitórias e parciais?
Quando pousei pela primeira vez na Índia, logo o guia turístico me chamou a atenção para a profusão de Deuses na religião hindu. Tantos que nem ele, devoto, os conhecia a todos. Mas um, Brahma, é o principal, o criador de tudo [i], sendo os outros apenas seus auxiliares na ligação temática com os humanos. Por isso, os hindus consideram que, para cada tipo de questões, devem invocar um certo Deus secundário.
Claro está que, em silêncio, logo fiz uma analogia com o Deus cristão, Cristo e Santos assim como também me lembrei do que os budistas fazem nos pagodes (onde rezam a Buda e, por sua intercessão, ao Ser Supremo) e nos templos (onde invocam o orago respectivo e lhe pedem isto e aquilo).
Hierarquias estas que me parecem muito semelhantes (se bem que cada religião com particularidades muito específicas). Semelhanças evidentes entre o Deus cristão, o Ser Supremo budista e o Brahma hindu a quem os homens reconhecem a função criadora. Uma diferença evidente que é apenas de cariz semântico. Depois vêm as outras diferenças resultantes do isolamento durante milhares de anos de uns relativamente aos outros, de exegeses diferentes e assim por diante…
Mas também me parece evidente que muitas diferenças resultam do interesse dos respectivos Cleros manterem os seus rebanhos próprios, bem controlados e isolados dos demais no âmbito de um esquema a que chamo «Teo business». Ou seja, há muito interesse no distanciamento e muito pouco em qualquer espécie de diálogo inter-religioso.
Se os homens se quisessem entender nestas matérias, bem poderiam começar por abordar as questões de semântica. E só com isso já seriam capazes de se entreter durante uns quantos séculos num longo processo de paz e de tendencial concórdia. Talvez…
Sobre a reencarnação nada tenho ainda para dizer mas acerca da perenidade do espírito sobre a caducidade da matéria, já disse e repito, acredito.
Foi Santo Agostinho que disse que todo o ser vivo corpóreo tem alma, a qual lhe é dada por Deus: no caso dos vegetais, a alma é simplesmente o que dá vida ao corpo permitindo que este seja alimentado, cresça e se reproduza; nos animais, a alma não é somente a fonte dessas actividades que se encontram nos vegetais mas é também a fonte da sensação e do apetite; nos seres humanos, a alma racional é a fonte do pensamento e da vontade, além de todas as demais actividades que os homens têm em comum com os vegetais e com os animais.
E São Tomás de Aquino disse que o embrião humano tem uma alma vegetativa, o feto tem uma alma animal e só pouco antes de nascer tem uma alma verdadeiramente humana.
Não gosto desta doutrina de S. Tomás pois abre portas à interrupção voluntária da gravidez e com esta não concordo minimamente (a menos que clinicamente aconselhável) mas chego-me descontraidamente à de Santo Agostinho acrescentando a possibilidade de os animais domesticados (e os pets por maioria de razão) terem uma alma evoluída no sentido da sofisticação da humana. Sim, neste sentido, creio que as almas também se educam.
Mais: admito que, após a morte do corpo, a alma possa vaguear uns tempos pelos locais onde os afectos se tenham manifestado durante a vida (não pelos cemitérios, locais com que as almas nada têm a ver) mas que posteriormente se encaminhem para níveis definidos fora das tais quatro dimensões nossas conhecidas: o Céu dos cristãos «onde se sentarão à direita de Deus Pai» ou os sucessivos patamares budistas «rumo ao Ser Supremo» ...
Porque não são conhecidos regressos do Céu ou dos tais patamares budistas, só as almas errantes poderão reencarnar. Será?
Como será na outra dimensão que não esta, material, em que nos encontramos? Não sei e não pensei ainda no assunto. O que sei é que não me vou preocupar por enquanto com o tema. Por enquanto…
Mas, embora possa parecer um absurdo, agora penso em James Joyce e na sua epifania, a epifania joyceana dos lugares e das suas ocasiões. E do que se trata? Trata-se de «vermos» o que aconteceu nos lugares por que passamos, sobre as pedras que pisamos. Mas isso, numa condição: a de sabermos o que se tenha por ali efectivamente passado. Então, vemos as cenas, imaginamos as pessoas, os factos historicamente conhecidos. E tudo isso acende luzes na nossa mente até ao ponto de consciencializarmos os pormenores, os fundamentos dos acontecimentos, a quinta essência dos locais.
Eis por que espiritualismo nada tem a ver com espiritismo; James Joyce nem sequer terá conhecido Allan Kardec. Prefiro «Ulisses».
A epifania a que me refiro acontece a partir do conhecimento prévio do que tenha acontecido, resulta de nós, não é uma adivinhação nem uma revelação de algo que não conhecíamos e que nos seja trazida… por quem? A transcendência joyceana é endógena, genuinamente nossa, não usa mesas com pé de galo nem fumos mais ou menos anabolizantes espirituais.
E nada me diz que James Joyce tenha curriculum que o eleve aos altares.