Ao ser mudada a regra de que quem ganha com maioria (relativa) afinal não governa, são os equilíbrios políticos entre a esquerda e a direita que sairão destroçados. Com isto regredimos anos e anos; e podemos regredir ainda mais.
A crise política que vivemos já causou danos profundos no nosso sistema político. Abalou, com consequências nesta altura imprevisíveis, a sã convivência entre instituições e partidos. E pode mesmo provocar a mais séria transformação do regime tal como tem sido entendido entre nós ao longo de 40 anos. O Presidente da República fez bem em recordar alguns desses aspectos. Quero aqui acrescentar outros.
a) A escolha para primeiro-ministro do líder da força política mais votada em eleições é uma regra. É uma convenção constitucional. É impreciso falar-se apenas de “tradição” ou “precedente”. Um regime político e um sistema de governo dependem, e muito, de convenções constitucionais, no nosso caso reconhecidas e seguidas pelos partidos há 40 anos. Modificar abruptamente a convenção contra a vontade de dois dos partidos com representação parlamentar, um dos quais o partido maioritário, só iria ferir os equilíbrios da nossa democracia e corromper as expectativas do eleitorado que, quando vota em eleições legislativas, vota também para definir quem governa, escolhendo ou rejeitando candidatos a primeiros-ministros. São tantos, na universidade ou nos jornais, os que têm defendido que assim é, e mais, que deve continuar a sê-lo. Veja-se, por exemplo, o constitucionalista Jorge Reis Novais: “as eleições parlamentares são cada vez mais, nos nossos dias e para a maioria dos eleitores, uma escolha do novo Governo, especialmente do novo Primeiro-Ministro”, pelo que “desde que o anterior Primeiro-Ministro – ou o partido que o apoia – se reapresente a eleições, o voto individual é determinado, para a maioria do eleitorado, por uma intenção de premiar ou sancionar a actuação desse Governo, renovando-lhe o mandato ou votando pelas alternativas das oposições”. Estamos de acordo.
b) Por isso, na nossa democracia que, como veremos, não é nem uma democracia de parlamentarismo puro e muito menos de governo de assembleia, os mandatos não podem ser tratados apenas como números. O que está em confronto não são (não podem ser) 107 mandatos vs. 122 mandatos. Subjacente a estes números está uma vontade, democraticamente expressa através do voto, de escolher uma maioria (PSD/CDS) e, por essa via, de a legitimar a formar governo. É uma espécie de lógica finalista que falha na construção mirabolante daquilo a que se tem chamado “maioria de esquerda”. Respeitar a vontade do povo não é juntar os perdedores e, com isso, criar uma nova maioria; é obrigar a maioria vencedora a ceder, a negociar, a transigir. A democracia não é uma conta de matemática.
c) Portugal é uma democracia representativa, mas não é um sistema de cariz puramente parlamentar. O Presidente, dotado de legitimidade democrática directa, tem poderes autónomos de intervenção política – e por isso tantos caracterizam o nosso sistema como semipresidencial. Como escreveu Vital Moreira, “o Presidente da República funciona como um “quarto poder” ou como poder moderador, com funções de fiscalização, supervisão e regulação do sistema de governo”. Surpreende-me que seja necessário recordar este princípio consensual àqueles que sempre o defenderam com mais afinco. A nomeação do primeiro-ministro e do Governo constitui uma competência própria do Presidente da República. Não cabe à Sra. Deputada Catarina Martins, à saída de reuniões secretas, decretar o fim de um governo ou a designação de outro primeiro-ministro, qualquer que ele seja, apresentando-o como um facto consumado. Não compete ao Sr. Deputado António Costa, rejeitado em eleições para primeiro-ministro, autoproclamar-se líder de uma suposta solução de governo, independentemente do juízo de apreciação política do Presidente sobre a consistência ou viabilidade dessa solução. Essas competências pertencem, repito, ao Presidente. O condicionamento, senão mesmo a desconsideração, do espaço de decisão do Presidente da República atingiu níveis impensáveis nestas duas últimas semanas. Como também escreveu Vital Moreira aquando da substituição de Durão Barroso por Santana Lopes em 2004, “só falta que o autodesignado "governo" se apresente por sua iniciativa perante a AR para apresentar o programa do governo.” Os teóricos da liberdade de decisão presidencial mostram-se afinal pouco convictos dessa liberdade quando o Presidente não provém da sua área política.
d) De igual modo, as funções do Presidente da República não passam apenas, no nosso sistema, por velar pela estabilidade política e pela regular formação dos governos. O regime não corresponde só a um instrumento de governo. O regime assenta em opções, valores, obrigações, consensos. A margem de actuação presidencial passa também por defender os fundamentos de um regime comprometido com a participação europeia, cumpridor das suas alianças externas e respeitador das suas obrigações internacionais. Não se pode esperar outra coisa do Presidente, qualquer que ele seja, senão ser o guardião destas fundações (também elas constitucionais) do regime. E, nota à parte, outra coisa não se poderia esperar deste Presidente para quem a nossa pertença europeia foi sempre um elemento definidor da sua acção política.
e) O espírito de condicionamento – dizendo aqui melhor: de autêntica obstrução - chegou ainda, desastrosamente, à posição sobre o papel da Assembleia da República no processo de formação de um governo. Quando se vai ao limite de considerar dispensável – e uma “perda de tempo” – a nomeação de um governo formado pela força política vencedora das eleições por causa do risco antecipado e redobrado que esse governo teria, ou terá, de ver rejeitado o seu programa, fica claro aquilo que se pensa e não se pensa sobre a soberania democrática do Parlamento, a legitimidade democrática dos governos minoritários, a publicidade dos debates parlamentares e o mandato individual dos deputados que, sendo responsáveis perante os seus partidos, são também responsáveis perante os eleitores e o país. É, com efeito, grave e inédito.
f) É inédito ainda por outra razão. Portugal não tem um sistema parlamentar puro, não só porque o Presidente da República detém poderes políticos ampliados, mas porque a nossa democracia integra a “família” das chamadas democracias parlamentares racionalizadas. Por parlamentarismo racionalizado entende-se, nas palavras de quem há muito criou o conceito, “um conjunto de mecanismos constitucionais destinados a assegurar a estabilidade do executivo”. Permitir a formação e viabilização de governos minoritários foi sempre um meio de racionalização e estabilidade da nossa democracia, considerando em particular que o nosso sistema eleitoral proporcional não facilita a criação de maiorias absolutas. Daí que os governos tivessem sido dispensados pela Constituição de obter uma aprovação formal do seu programa no Parlamento, bastando que esse mesmo programa não seja rejeitado. Por isso, a prática política, desde 1976, conheceu numerosos governos minoritários, o último dos quais em 2009 com José Sócrates. A mesma prática conduziu a que, de 1976 a 2009, e em todas as situações em que o PS ganhou as eleições sem maioria absoluta, PSD e CDS não se opusessem à viabilização de governos minoritários. Como escreveu Jorge Reis Novais, “um governo minoritário não é uma anormalidade constitucional nem suscita quaisquer problemas de legitimidade democrática, de título ou de exercício. É expressão da vontade do eleitorado manifestada no quadro do sistema eleitoral e nele se podem descobrir virtudes”. Estamos novamente de acordo.
g) Ora, ao abandonar-se agora a convenção de quem ganha as eleições, governa, a apreciação do programa de governo ameaça converter-se estrepitosamente no seu contrário: de um mecanismo que na democracia portuguesa sempre facilitou a viabilização de governos minoritários para uma forma de imposição de governos maioritários e, consequentemente, de oposição à formação de governos minoritários de centro-direita. Daqui para a frente, e se tal se consumar, o centro-direita só poderá governar Portugal se dispuser de uma maioria absoluta, condição que, como sabemos, o sistema eleitoral propicia com especial dificuldade. É bom sublinhar que não há qualquer novidade nos resultados das eleições de 2015. Foram muito semelhantes a 1985 em que o PSD obteve 29,87% e o CDS 9,96%, ou a 2009 em que o PS alcançou uma maioria relativa com 36,56% dos votos e PSD e CDS respectivamente com 29,11 e 10,43. A verdadeira novidade é esta: a alteração das condições de legitimidade em Portugal para formar governo. Os governos minoritários (do PS ou PSD) foram sempre uma opção tida como viável e legítima não podendo o Presidente obrigar o partido ou partidos vencedores a uma maioria que estes não pudessem construir. A mudança abrupta das regras de legitimidade significa que os governos minoritários do centro-direita passarão a ser uma opção impossível podendo um grupo de partidos derrotados unir-se para impor ao Presidente uma maioria, mesmo que este a considere inconsistente. Os equilíbrios do nosso sistema político serão assim rompidos.
h) Aliás, outro ponto quase em forma de parêntesis: é precisamente porque somos uma democracia parlamentar racionalizada que foi criada outra convenção constitucional, segundo a qual sempre coube ao partido ou coligação de partidos mais votada assumir o cargo de Presidente da Assembleia da República. Esta convenção não era nenhum “prémio” ao vencedor. Ela tinha por objectivo conferir maior estabilidade e racionalidade ao funcionamento do trabalho parlamentar, em particular na sua relação com o Governo, evitando que o Parlamento se transformasse numa câmara meramente negativa e instável, mas servindo também para moderar, através dum espírito de equidistância, a maioria que sustenta o Governo. A regra impôs-se, inclusive, diante de governos minoritários, como sucedeu em 2009 com a eleição de Jaime Gama. Ontem, pela primeira vez, foi quebrada. Viu-se no que deu: um discurso sectário de Ferro Rodrigues que entendeu agir como Presidente de metade da Assembleia contra a outra metade, exactamente o oposto da razão que justificou a criação dessa convenção parlamentar.
i) Mas: e lá fora? Por estes dias têm sido apresentados cinco exemplos de países europeus cujos governos assentam em coligações pós-eleitorais compostas por partidos que não venceram as eleições. Esses exemplos seriam, nomeadamente, Bélgica, Dinamarca, Luxemburgo, Letónia e Noruega. Pergunto se houve tempo para perceber como funcionam os sistemas políticos nestes países. Quatro dos cinco citados são monarquias constitucionais parlamentares, em que o Chefe de Estado assume um papel muito reduzido. Os respectivos sistemas eleitorais produzem uma elevada proliferação de partidos, vários deles com votação semelhante na casa dos 20%. Os sistemas partidários assentam em coligações entre partidos centristas, que oscilam entre centro-esquerda e centro-direita. Os partidos radicais, como aconteceu com os comunistas, passaram por percursos longos de convergência e modernização, tanto nos seus programas, prática política e organização interna. A formação de coligações nunca é vista como inesperada pelo eleitorado. Como acontece na Dinamarca ou na Suécia, os eleitores sabem à partida com o que contam. Em suma, o comparativismo apressado pode não ser o método mais feliz.
j) Por tudo isto, e sem que saibamos todos os desenvolvimentos deste processo, há desde já um facto a que possivelmente já não iremos conseguir escapar: a ruptura das regras de confiança política na nossa democracia. Uma ruptura que afectará as relações entre PSD, CDS e PS, mas também entre todos os restantes partidos. Uma ruptura nas regras de legitimidade na formação dos governos e nas fronteiras e equilíbrios que sempre nos habituámos a respeitar. Uma ruptura que impedirá a construção de consensos ao centro, ora mais para a esquerda, ora mais para a direita, o que atendendo às decisões parlamentares que carecem de maiorias de dois terços só irá agravar o bloqueio e a erosão do nosso sistema político. Ao ser mudada a regra de que quem ganha com maioria (relativa) afinal não governa, são os equilíbrios políticos entre a esquerda e a direita que sairão destroçados. Com isto regredimos anos e anos; e podemos regredir ainda mais. E não sei quantos mais levaremos depois para recuperar. A estabilidade de Portugal é o bem mais valioso. Boa sorte para todos nós.
26/10/2015
Pedro Lomba
(Membro do Governo presidido por Pedro Passos Coelho)
“Casablanca”, sempre. De vez em quando, a «TV Memória» lembra-se de nos bafejar com esse brinde, que não perdemos. Para além de toda a beleza de desempenho e figuras, emoção e nobreza de sentimentos, o momento empolgante em que o líder da resistência tcheca, Victor Lazlo, faz sobrepor ao hino alemão, tocado e entoado no café do Rick, o hino francês que electriza os frequentadores do café, com as naturais consequências de encerramento daquele, ordenadas pelo governo alemão sito em Casablanca. Bem posso lembrar que o mesmo fizemos em Lourenço Marques, sem tanto brilho e mais emoção, não condicionados pela arte coreográfica, num levantamento popular em frente à Câmara Municipal, em 1974, ao lado da linda catedral de Nossa Senhora da Conceição, cantando, em lágrimas, o Hino Nacional, com a bandeira hasteada, a lembrar o protesto contra os destruidores da nação.
Vem a referência a propósito do «Eixo do Mal» que resolvi ouvir hoje, em reposição, há muito desligada das leviandades desses comentadores que, arrogando-se de fina flor da intelectualidade nacional, mais não demonstram que vileza de pensamento nas suas risadas ou comentários tantas vezes sem classe ou sequer ética. Mas talvez o asco não fosse tão sentido como quando vejo e ouço duas moças - uma dengosa, fazendo mímicas de simpatia determinada, mesmo quando é atrevida e malcriada com os indigitados para o governo – anteriormente governantes a sério - outra serenamente superior, querendo aparentar bons sentimentos também, relativamente ao povo que as serviu com o seu voto, assim arrancado no deslumbramento por esse par de donzelas ou donas como as do tempo de outrora, Orianas que já seduziam os Amadises das cavalarias medievais, e seduziram agora os peões, ciclistas, motards, automobilistas ou mesmo apenas os que se fazem transportar de carroça, conquanto esta em vias de extinção.
O certo é que também o “Eixo do Mal” continua mais ou menos intragável, pequeno grupo a pretender discutir da pátria e dos patriotas, com uma pequena sabedoria que esconde tanto de chacota pelos sentimentos alheios, daqueles que escutam comovidamente o momento mágico de uma “Marseillaise” sobrepondo-se entusiasticamente ao hino de um povo malignamente opressor.
Não, os nossos palradores de política, não vibram com momentos desses, de hinos nacionais traduzindo um qualquer orgulho ou respeito pelo seu país, conquanto não duvide que no caso do filme norte-americano, eles não ficam indiferentes à magia do episódio. A displicência é comum, e um elemento como Pedro Marques Lopes, o das insinuações, da coscuvilhice sem nível, arrancada à experiência de vida, parece-me, ou de fura-vidas, mais do que a estudo ou arte, o qual, dizendo-se PSD, há muito segue no rasto da simpatia pelos camaradas mais cultos, em rebaixamento vil, de quem se sente que finge ser duma cor e não tardará a mudá-la, para sua própria sobrevivência.
Cavaco foi o visado, pelo seu discurso “extremista e revolucionário”, condenado pelos três protagonistas, à excepção de Luís Pedro Nunes, trapalhão mas de pensamento mais nobre, o único, por vezes, que repõe uma certa sensatez na grosseria ou excitação gerais.
Nobreza para os três da esquerda (considerando entre estes o dito Lopes), é a da esquerda – (que, todavia, tudo faz para destruir o país e qualquer projecto de governação que nos tire do lodaçal). Cavaco, porque conhece bem essa esquerda e a desprezou sem vitupérios no seu discurso, como homem honrado, no pesadelo que vive dessa viragem da nação a uma esquerda há muito dirigida por rancores e ódios e má criação, Cavaco foi chamado de ignóbil e outros epítetos de teor semelhante.
É, aliás, isso, pecha comum, excluindo as opiniões que nos confortam, pela sua sensatez e indignação de gente que sente. Tal a de Maria João Avilez. E a de muitos outros que às vezes acerto em pegar, sobretudo por indicação do meu marido.
Mas, para todos os efeitos, a esperança de sobrevivência desapareceu, num pobre país à deriva, por muita risada escarninha que o conceito mereça na praça. Se chegar à praça.
O principal trunfo do cinismo é deixar-nos espantados e desarmados. A vida em sociedade exige algo como um princípio de credulidade, uma confiança, mais ou menos espontânea, nos outros.
Os tempos andam malsãos. Parece que vivemos num daqueles poemas terríveis de Sá de Miranda, onde tudo é suspeita, logro, perigo, espanto, dissimulação, e nada é nítido. A atmosfera não é de banal má-fé. É uma atmosfera de cinismo, de cinismo puro e duro. São coisas muito diferentes. O homem de má-fé mente-se a si mesmo e acredita na verdade da sua mentira, o cínico não. O cínico mente com a perfeita consciência de que está a mentir e nem por um instante acredita no que diz[1]. Se a má-fé pode proteger da argumentação racional e da persuasão comum, o cinismo é, no capítulo, mil vezes mais eficaz. Cria uma espécie de invulnerabilidade por relação a uma e outra.
O principal trunfo do cinismo é deixar-nos espantados e desarmados. Por razões que têm provavelmente a ver com as condições básicas da vida em sociedade, não estamos nunca suficientemente preparados para o cinismo. A vida em sociedade exige algo como um princípio de credulidade, uma confiança, mais ou menos espontânea, nos outros. Mesmo um céptico encartado tem de adoptar esse princípio na sua vida quotidiana. Ora, esse princípio de credulidade comporta, em graus variáveis, a possibilidade de reacção à má-fé e à mentira pura e simples. Com isso aprendemos bem a viver, por mais desagradável que seja. Não assim com o cinismo. O cinismo, mesmo para as pessoas teoricamente mais bem preparadas para a ele reagirem, menos fáceis, por hábito ou profissão, de se deixarem surpreender, deixa-nos inermes. Viola o princípio de credulidade nas suas bases mais fundas. É difícil não o sentir como um escândalo.
Sem paradoxo algum, o cínico pode proclamar grandes ideais. Não acredita neles por um só instante, é claro, mas isso obviamente em nada o perturba. O grau de comprometimento do cínico com as suas ideias é nulo. O que, diga-se de passagem, lhe é extremamente útil. A maior parte das pessoas vive as suas ideias com algum comprometimento: menos com umas, mais com outras. E essa relação de comprometimento varia, em relação a todas elas, com o tempo, permanecendo nos melhores o amor como um ideal de comprometimento absoluto. Mas há, em todo o caso, comprometimento efectivo. O cínico encontra-se liberto desse fardo, e, liberto desse fardo, encontra-se igualmente disponível – dentro da esfera das suas possibilidades, que é ditada pelas condições da sua sobrevivência – para acolher todas as ideias que lhe surjam úteis. Descomprometido essencialmente, pode simular comprometimentos essencialíssimos com o que lhe apetecer.
Samuel Beckett escreveu um dia que “é preciso acreditar que sim, mas saber que não”. É discutível que se possa verdadeiramente viver assim, já que a crença se desdobra quase naturalmente na presunção do saber e não se vê muito bem como a manter com a consciência do seu exacto oposto. De qualquer maneira, o cínico não subscreveria a bela frase de Beckett. Dada a sua natureza pragmática, descomprometida com as ideias e portanto exclusivamente pragmática, monomaniacamente pragmática, nem acreditar que sim nem saber que não lhe interessam. Por impossibilidade do seu ser, não se relaciona com crenças próprias. A sua fórmula seria antes: “É preciso que os outros acreditem que sim e não saibam que não”. E é impressionante como tem por vezes sucesso, mesmo quando não é preciso possuir um tacto particularmente fino para não acreditarmos que sim e sabermos que não e até para detectarmos um inquietante vazio na alma do cínico.
Quem é convencido pelo cínico? Certamente que as pessoas de má-fé, que sempre aspiram a ter um cínico por mestre. A má-fé aprecia o esplendor do cinismo, o quase heroísmo do seu desprezo pela verdade e a sua magnífica ausência de pudor. Vê nele uma liberdade que ela própria não possui. Mas convence igualmente os ingénuos, particularmente aqueles predispostos a acreditarem na omnipotência do pensamento de que falava Freud, que criou a expressão para descrever a crença primitiva, ou simplesmente neurótica, numa eficácia imediata do pensamento sobre o mundo. O descomprometimento com as ideias do cínico permite-lhe sugerir que, no fundo, tudo é possível. E que melhor sugestão do que essa para quem aspira a uma transformação mágica da realidade? Os puros pensamentos agem sobre as coisas e modificam-nas. O desejo e a vontade actuam sobre o mundo sem necessidade de quaisquer mediações. A realidade exterior é abolida e substituída por uma projecção que satisfaz a psique. Uma perfeição. Com o ligeiro inconveniente – que, obviamente, não preocupa o cínico – de, por definição, conduzir a maus resultados.
Até onde pode ir o cínico? Ou, dito de outra maneira: como se sai da hora do lobo, do tempo de indistinção e de falta de confiança em que o cínico nos mergulha? É uma boa pergunta. Talvez quando aqueles que o toleram em benefício próprio o traírem. Talvez quando, passada a surpresa inicial, aquele inquietante vazio que habita a alma do cínico se tornar excessivamente palpável e a sua fragilidade última se revelar. Talvez quando a má-fé daqueles de que o cínico se alimenta se comece a desvanecer, por uma razão ou outra, surto de boa-fé ou interesse de salvação pessoal. Talvez quando a bruta realidade destruir a ilusão da omnipotência do pensamento que o cínico habilmente instilou em muitos e de que precisa como pão para a boca para sobreviver. Mais tarde ou mais cedo estas coisas acontecem todas, e mais cedo do que tarde acontecerão. A questão que se coloca é: e em que estado estaremos nós quando finalmente chegar esse momento?
Tanto a semântica como a sintaxe nos ajudam a definir conceitos que umas vezes nos convencem, outras nos deixam indiferentes e outras ainda nos provocam revolta ou aprofundam ainda mais as nossas dúvidas estaminais. De tudo isso relativo à linguística, apenas me interesso pela etimologia na medida em que ela seja verídica e não uma sucessão de invenções e improvisos para demonstrar algo ou o seu contrário.
Por exemplo, tenho a certeza de que «capitão» deriva do «capito» latino e nada tem a ver com «aquele q’apita» apesar de alguns terem a mania de usar apitos para transmitirem ordens. Sim, Capitão é feito para dar ordens. Pelo menos, aos que estejam na sua dependência hierárquica pois dele para cima são outros que lhe dão ordens a ele. É então que se diz que nessas circunstâncias «alguém apita mais fino».
No nosso “Protocolo Militar de Honras e Galhardias”, Capitão tem honras de Senhoria.
- Vossa Senhoria dá licença?
- O que manda Vossa Senhoria?
- Que Vossa Senhoria tenha muita saúde.
Etc...
Naqueles tempos em que fiz o Serviço Militar Obrigatório só havia homens nas fileiras do nosso Exército mas agora também há mulheres e eu pergunto-me amiúde como mandarão as regras gramaticais definir os femininos dos postos.
Não conheço essas regras mas também não tenho muitas dúvidas:
Soldado – Soldada;
Cabo – Extremidade («Caba» não me soa bem);
Sargento – Sargenta;
Aspirante – Aspirante (seria «Aspiranta» no conceito de Dilma Roussef mas não no meu)
Alferes – Alferes (Dilma deve dizer «Alferesa» ou «Alferoa» mas o problema é dela);
Tenente – Tenente (aquela que tem, poderia ser «Possuidora» ou «Possessiva»);
Capitão – Capitã (ou Capitoa mas prefiro a primeira hipótese);
Major – Majora (como a marca de brinquedos infantis);
Sempre no tal “Protocolo Militar de Honras e Galhardias”, se Oficial tem esposa, Sargento tem mulher e Soldado tem fulana, o tratamento é de «Vossa Excelência» de Major ou Majora inclusive até lá acima, Capitão ou Capitã é, como já disse, «Vossa Senhoria», Sargento ou Sargenta é «o Senhor» ou «a Senhora», Soldado é «tu» ou «tua». Será? Às vezes ainda tenho dúvidas...
Mas as dúvidas que mais me assoberbam são:
Se um Oficial Superior ou General masculinos recebem a honra de «Excelência», por que razão a honra desses postos no feminino não deva ser «Excelêncio»?
O mesmo se diga do Capitão, «Senhoria», em que à Capitã deveria corresponder a honra de «Senhorio».
Será?
É que, realmente, custa-me que numas situações o posto e a honra sejam de géneros diferentes e noutras se mantenha o género. Parece-me homogenérico, o que não tarda muito pode variar para outras homogeneidades menos naturais. E disso eu não gosto.
O primeiro é de Vasco Pulido Valente. A advertência de quem conhece homens e coisas e o passado:
Sem desculpa
Vasco Pulido Valente
18/10/2015
O PC, o Bloco e o PS discutem agora presuntivos pontos de um “programa comum”. Pelo que se tem sabido só discutem medidas que aumentam a despesa e medidas que reduzem a receita. Isto não parece impressionar António Costa, que anteontem foi à televisão garantir que os deveres de Portugal com a Europa (e os credores) serão rigorosamente cumpridos. Não se percebe como. Mas não nos devemos preocupar com esse pequeno pormenor: ou Costa mente ou planeia uma tremenda “austeridade” para os “ricos”, que infelizmente não existem ou tendo a fama não têm o dinheiro. De qualquer maneira, como não se cansam de dizer os peritos da televisão, as coisas estão muito divertidas. Para eles, pelo menos. Para nós, que, segundo o dr. Ulrich, “aguentamos tudo”, fica o prazer de contar os tostões.
Há ainda algumas dificuldades. Parece que não passou despercebido ao PC que no resto da Europa o apoio ao PS acabou por desfazer os partidos comunistas. E que o próprio Bloco, num ou outro intervalo lúcido, desconfia que lhe pode acontecer o mesmo. Uma desconfiança histórica leva essas duas meritórias congregações da nossa “esquerda” a não quererem negociar com Costa mais do que um programa mínimo para a investidura de um governo minoritário do PS. Costa, com o seu arzinho repolhudo de estadista, rejeita isto. Primeiro, porque a ideia de se tornar refém dos seus companheiros de caminho não o atrai especialmente. Depois, porque passar uns meses na rua da Imprensa à Estrela acabaria com ele. A lógica de Costa implica um contrato de legislatura ou, em última análise, uma coligação.
Até hoje não se resolveu nada. Mas bastaram meia dúzia de reuniões para provocar a indignação dos “puristas” do PS e da “esquerda”. A indignação no vazio não incomoda ninguém e é particularmente estimada pelas capelas do progresso. O caso muda de figura se ela se manifestar a propósito de actos do governo ou da sua omissão. O PS e o Bloco não se distinguem pela sua particular disciplina; e o PC é guiado por interesses completamente estranhos ao “bom funcionamento” do regime. O papel que Costa pretende equivale a tomar o comando de um grupo de guerrilhas, na esperança de o transformar no exército prussiano. Fora do mundo da fantasia as guerrilhas continuarão guerrilhas e Costa precisará de uma entrevista permanente na televisão para desculpar o que não tem desculpa.
O segundo é de João Miguel Tavares, de quem sabe reflectir sobre o presente com a sensatez necessária:
O PS passou-se?
João Miguel Tavares
22/10/2015
Para não ser logo muito bruto, deixem-me começar pelas questões em que António Costa tem razão, ainda que alguma direita tenha dificuldade em admiti-lo.
Costa tem razão na legitimidade de um Governo à esquerda, se Passos e Portas caírem no Parlamento e o PS conseguir um acordo sólido com Bloco e PCP – eu não alinho nas conversas de golpe de Estado. Costa tem razão quando diz que foi claro durante a campanha eleitoral na rejeição do Bloco Central (o facto de ninguém o ter levado a sério não é culpa sua). Costa também tem razão quando acredita que a maior parte do PS está do seu lado. E Costa tem ainda razão quando intui que a possibilidade de uma fragmentação do PS pode ser maior em caso de acordo com a direita do que no caso de um acordo com a esquerda.
Costa até tem razão em tentar prosseguir o seu caminho: quando olhamos para a sondagem da passada segunda-feira na TVI, ela não disse o que muitos gostariam que dissesse. Se os números do PS não mexem, isso significa que a quase totalidade do seu eleitorado engoliu a patranha anti-austeridade e deseja, em primeiro lugar, que a coligação seja impedida de formar Governo. Quatro anos de sacrifícios racharam o país ao meio – António Costa tinha um tubo de cola na mão direita e martelo e escopro na mão esquerda. Optou pelo martelo e escopro. Está no seu direito. E até combina melhor com a bandeira do PCP.
Mas, como imaginam, tudo o que atrás ficou dito, todas as razões que atribuí a António Costa, têm como premissa duas pequenas palavrinhas: “acordo sólido”. “Acordo”, no sentido de “documento assinado”. E “sólido”, no sentido de “aceitável dentro das metas do Tratado Orçamental”. É que, sem acordo, não há nada. Sem acordo, há apenas um grupo de socialistas desesperados a rodopiar por aí. Sem acordo, resta António Costa travestido de um Martim Moniz com défice democrático, procurando com a bojuda perna esquerda impedir que a porta de São Bento se feche na sua cara.
Deixem-me, então, recorrer à brutidade: a figura que o PS fez na terça-feira, primeiro pela voz do líder do PS, à saída do Palácio de Belém, e depois, à noite, na SIC e na TVI, pelas vozes de Carlos César e de Pedro Nuno Santos, é das coisas mais irresponsáveis e vergonhosas que me foram dadas a assistir na política portuguesa. Quando questionado sobre os termos do acordo, Carlos César respondeu: “Não lhe posso detalhar o acordo. Em primeiro lugar, ele não está subscrito pelos seus parceiros. E, em segundo lugar, a sua divulgação só tem interesse por ocasião da indigitação.” Está tudo doido?
Uma resposta destas merecia nova manifestação na Fonte Luminosa. António Costa tinha jurado na sexta-feira, em entrevista à TVI, que não iria chumbar um Governo da coligação se não tivesse uma alternativa. Mas, na terça-feira, embora essa alternativa não existisse nem se soubesse se iria existir, ele já estava a pedir ao Presidente da República a indigitação para liderar o país. Não há acordo, ninguém o viu, o PS acha que não tem de o mostrar, mas o Governo só pode ser dele. Confirma-se: está mesmo tudo doido.
O DN resumia o caso exemplarmente na sua manchete de ontem: “Governo à esquerda – só falta que Costa, Catarina e Jerónimo assinem acordo.” No campeonato do wishful thinking, é das melhores coisas que li até hoje. Dentro desse mesmo espírito, posso já revelar aqui o título do meu próximo artigo: “João Miguel Tavares casa-se com Monica Bellucci, Charlize Theron e Scarlett Johansson – só falta elas aceitarem”.
O terceiro consiste em dois excertos de uma pequena peça de teatro –“Exercício escolar” – escrita em 1979, que inseri em “Cravos Roxos”, e cujas aflições que a ditaram, estão perfeitamente adaptáveis às aflições deste presente dos jogos de “infantilíase” que, sem pejo nem travão, se vão permitindo entre nós, numa irresponsabilidade de profundo atraso mental e social, joguetes que somos de mentes brincalhonas. Cito o CORO DO PARTIDO, do Argumento inicial, e do seu Final:
Muita gente no Brasil não sabe se Santo António é de Lisboa ou de Pádua, ou se são dois santos. Na maioria dos lugares invoca-se o de Pádua, com seu nome tem cidades, cooperativa agro-pecuárias, festas, do Norte a Sul, etc. O de Lisboa tem uma paróquia em Florianópolis, terra de açorianos. Por isso tive vários pedidos para escrever sobre o Santo e esclarecer quem é quem!
Acontece que já tinha escrito há quatro anos. Quem não leu na ocasião pode ler novamente.
Foram dois textos, que resolvi colocar no blog de uma só vez.
A festa dos "dois" celebra-se no mesmo dia: 13 de Junho, dia da sua morte.
1
Santo António de... Lisboa
Lisboa, 13 de Junho. Feriado Municipal. Festa de Santo António... de Lisboa. O Casamenteiro.
Filho de Martinho de Bulhões e Maria Teresa Taveira, nasceu à volta de 1190, (15 de Agosto?) em Lisboa, um menino que foi baptizado com o nome de um tio, cónego, Fernando, Fernando Martins Bolhão, ou Bulhões.
“Seus pais moravam à beira da Sé, e eram gente limpa e remediada”! Talvez o pai fosse ourives, uma vez que o nome Bolhão significava “barra de prata, com liga de outros metais, boa para bular, amoedar”. Bular acabou significando “colocar o selo” em documentos de grande importância, a bula!
Na Sé, havia ao tempo, aula de gramática e de artes, e, ali, Fernando, a partir dos sete anos, muito jovem, excepcional memória e invulgar inteligência, aprendeu as primeiras letras e os rudimentos de humanidades. Desde sempre mostrou uma profunda devoção e o começo de uma mística, profundas, apesar de andar com “amigos estróinas”, que o obrigaram a muito meditar sobre a sua vida.
Até aos 15 anos vive na casa dos pais, entra num período de vida libertina com os tais “amigos” e, para fugir aos chamados mundanos, decide entrar no mosteiro de São Vicente de Fora, dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, com a idade de 18 anos. Logo tomou o hábito da mão do Prior, e feito os votos possivelmente um ano depois. Aí fica dois anos na meditação e estudo e pede depois para ser transferido para o mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, onde ficaria longe dos amigos que o assediavam para o mau caminho.
Santa Cruz, em Coimbra, junto à Corte, tinha uma rica biblioteca e alguns mestres já formados em diversas cidades da Europa, o que o tornava “uma pequena academia de sábios”.
Em ambiente de estudo e oração permaneceu entre nove a onze anos. No entanto aquela vida de estudo e oração não o satisfaziam. Fernando impressionava-se com a visita dos frades menores de Santo Antão dos Olivais, que de vez em quando iam ao mosteiro de Santa Cruz pedir esmola. Por este mosteiro devem ter passado os cinco frades menores que em Marrocos deram a vida pela fé cristã, em 16 de Julho de 1220, e cujos restos mortais foram recolhidos por D. Pedro, irmão do rei Afonso II, e entregues ao mosteiro de Santa Cruz para aí serem depositados.
“O exemplo destes humildes, pobres, alegres e ardorosos pela causa de Deus, como se mostram os franciscanos de Coimbra e, sobretudo, o magnífico exemplo dos mártires, levam-no a trocar o nome de baptismo por Frei António, e a cândida estamenha Agostinha pela estamenha parda dos frades menores, o rico e afamado mosteiro de Santa Cruz, pelo pobre e obscuro de Santo Antão dos Olivais, a vida sedentária de cónego, pela vida errante de frade mendicante e missionário.”
Santo António – pintura do séc. XIII, da Pinacoteca de Perugia
Entregue à pobreza e à missionação, Frei António decide partir para Marrocos, onde os cinco mártires tinham sido degolados pelo Emir, Amir al-Mu'minin, o Miramolim. Desta vez porém os muçulmanos deixam Frei António em paz, mas ao mesmo tempo uma doença pertinaz o obriga a voltar a Portugal.
O barco que havia de o levar sofre uma violenta tempestade, é desarvorado, e vai ter às costas da Sicília, onde, nas imediações da cidade de Messina encontra abrigo num pequeno convento de Frades Menores.
E assim acaba a vida de Frei António em Portugal! E começa o Santo Antonio de Pádua!
Num próximo texto continuaremos a seguir a sua vida. Hoje, deixamos um só dos seus sermões, que mesmo parecendo estranho pode ajudar muito a meditar:
Parábola do anel de Ouro
(Jesus tomou o saco das nossas misérias)
Lê-se no Passionário de São Sebastião que um rei possuía um anel de ouro ornado de uma jóia preciosa, que lhe era muito querido. Um dia caiu-lhe do dedo dentro de uma cloaca, o que muito o penalizou. E, não encontrando alguém que lhe pudesse tirar dali o anel, depondo os vestidos da dignidade real, desceu à cloaca vestido de saco, procurou o anel durante muito tempo, até que finalmente encontrou o que procurava e, alegre, trouxe para o palácio o achado. O Reino é o Filho de Deus; o anel, o género humano; a jóia do anel, a preciosa alma do homem. Este caiu no gozo do Paraíso, como do dedo de Deus, na cloaca do inferno. O Filho de Deus muito se doeu desta perda. Para recuperar o anel, procurou entre os anjos e os homens, e não o encontrou, porque ninguém foi capaz. Então, depôs os vestidos, aniquilou-se a si mesmo, tomou o saco da nossa miséria, procurou por trinta e três anos o anel; finalmente desceu aos infernos e aí encontrou Adão e toda a sua posteridade. Muito alegre, levou o achado consigo para a eternidade.”
N.- Voltaremos ao Santo António, mas... de Pádua!
10/06/2011
2
Exulta Lusitania Felix
Santo António de... Pádua
Primavera de 1221. Frei António, doente, tem que regressar a Portugal, mas levado por um violento temporal, vai dar às costas da Sicília, onde nas imediações da cidade de Messina, encontra abrigo num humilde conventinho de frades menores.
Está quase com 31 anos. Um erudito teólogo, profundo conhecedor das coisas da Igreja, da Bíblia, dos Santos Doutores, e de tudo quanto os muitos anos de estudo em Coimbra lhe proporcionaram. Até ali tinha sido um estudioso, mas o exemplo dos frades menores, franciscanos, com toda a sua humildade, pobreza e vocação missionária, o levam a ingressar nesta Ordem fundada por Francisco de Assis em 1209.
No final de Maio de 1221 realiza-se em Assis um Capítulo Geral, que ficou conhecido na história como o Capítulo das Esteiras, porque a multidão de frades era tal que a grande maioria teve que dormir no chão! Lá vai o nosso Frei António, desejoso de encontrar o Fundador da Ordem, Frei Francisco de Assis. Ali aprendeu ao vivo o que deve ser o verdadeiro frade menor.
Levado para o eremitério de Montepaolo, na Romagna, onde fica mais de um ano a celebrar missa, ajudar nos trabalhos domésticos, e a vida activa com que sonhara em Coimbra, converte-se em contemplativa.
Em finais de Setembro de 1222 há ordenações sacras na vizinha cidade de Forli, e o nosso Frei António ali vai. No momento próprio o superior da comunidade dos franciscanos pede aos dominicanos que tinham comparecido à cerimónia, para pronunciarem algumas palavras de circunstância. Perante a escusa destes, manda então a Frei António que anuncie a palavra de Deus. E acontece o inesperado: a revelação. Todos ficam rendidos à sua simplicidade e bom senso, à sua palavra leve e profunda. Frei António revela ser não só um frade santo, pronto a lavar panelas de cozinha, como um sacerdote de vastíssima cultura e brilhante arte da oratória.
Aos sacerdotes mais dotados nomeavam pregadores. Em pouco tempo o Provincial de São Miguel foi informado do que acontecera e “Frei António obrigado a deixar o seu silêncio e sair a público, encarregado do ofício de pregador, o que o fez percorrer cidades, aldeias, castelos e casais espalhando a semente da vida com tanta abundância como fervor”.
A sua doutrina e santidade começou a brilhar em muitos lugares do Norte da Itália. Em 1220 Frei João Strachia organizara uma casa de estudos em Bolonha, e Francisco de Assis ao se aperceber que ela se destinava a “poctius doctos quam piuos”, formar mais doutores do que frades piedosos, acaba com ela. Mas em Bolonha será por fim a primeira casa de formação intelectual da Ordem.
São Francisco viu em António que estudo e piedade podiam não só conviver perfeitamente, como influenciar-se positivamente, e expede o seguinte bilhete:
“A Frei António, meu Bispo, Frei Francisco envia saudações. Apraz-me que ensines Teologia aos frades, contanto que para tal estudo não extingas o espíritoda oração e devoção, como está contido na regra.”
Santo António e São Francisco
Em 1224 é mandado a França onde a sua santidade de vida e a sua pregação foram de tal forma eficientes, que lhe chamaram “martelo dos hereges”; aproveita o tempo e ensina nas escolas conventuais de Toulouse e Montpellier.
Em 3 de Outubro de 1126 morre Frei Francisco de Assis. Para escolher o seu sucessor são os frades convocados a Capítulo, em começo de 1227, onde Frei António é nomeado Provincial da Itália do Norte, e já não regressa a França.
Em 1228 vai a Roma, e prega, na Igreja de São João de Latrão, diante do Papa Gregório IX, cardeais e muito povo. O Papa tão impressionado ficou, que o chamou de “Arca do Testamento”.
Dois anos depois é-lhe dada a carta geral de pregador e libertado do cargo de Provincial.
Decide então retirar-se para a sua querida cidade de Pádua, para ali continuar a sua missão de pregador e escritor. Aí Santo António, como já era conhecido por todo o norte da Itália, escreve uma série de textos, tentando levar a paz onde reinava o ódio, sobretudo em Florença entre os guelfos e os gibelinos, a libertar os presos por dívidas, o que levou a um estatuto publicado pela edilidade de Pádua em 1231, luta contra as usuras e bens obtidos pela violência, procura afastar as prostitutas da sua degradante vida, e até se esforça para convencer os ladrões profissionais a não tocarem no alheio e a trabalharem honestamente.
Escreve entretanto muita coisa mais, e também os seus famosos “Sermões”.
Com quarenta anos, sente-se cansado e vai descansar uns dias em Camposampiero, perto de Pádua. Durante a refeição do meio dia, 13 de Junho de 1231, sente-se desfalecer. Vendo-o tão mal levam-no para a casa dos Frades de Arcella, onde recebe os últimos sacramentos. Já com o Senhor à vista, disse aos que o assistiam: “Video Dominum meo!” e entregou a alma a Deus.
E apesar do silêncio guardado pelos Frades, logo correu a notícia pelo povo: “Morreu o padre santo. Morreu o Santo António!”
Em 17 de Junho foi sepultado em Pádua.
Nem um ano passado era canonizado pelo Papa Gregório IX.
Em 1934 foi declarado Padroeiro de Portugal.
E finalmente em 16 de Janeiro de 1946 o Papa Pio XII, em sua Carta Apostólica, que começa
Exulta Lusitania Felix,
o Felix Padua gaude
declara Santo António Doutor da Igreja, Doutor Evangélico.
Lisboa tem imensos ciúmes de Pádua, que guarda lá os ossos do Santo, e nem se atreve a, alguma vez, dizer que o Santo é de Lisboa.
Com estes breves textos se pode ver que enquanto em Portugal, Santo António foi um frade desconhecido, mas onde estudou e se “encheu”de toda a bagagem que o tornaria famoso em Itália. Foi aqui que pregou, ensinou aos frades, pode considerar-se o primeiro lente franciscano, e ainda em vida já era chamado de santo.
Preparou-se em Portugal e revelou-se na Itália.
Deve ser o único Santo da igreja que tem dois nomes!
O jogo do ganha-perde era um jogo de damas que jogávamos com o meu pai, em que ele nos punha a comer todas as pedras enquanto o diabo esfrega um olho, fazendo-nos perder imediatamente o jogo, apesar da aparente vitória, estatuída como derrota, segundo as regras previamente determinadas – tal como era a vitória resultante de as pedras serem comidas, no jogo do comer vitorioso. É claro que perdíamos sempre, quer o comer significasse derrota ou vitória, e breve deixámos de jogar com o nosso implacável pai, procurando brinquedos menos humilhantes, tais o paulito, o berlinde, a bola, o ring, com parceiros da mesma competência e alegria na agilidade.
Foi o que me lembrou este artigo de Henrique Monteiro, do Expresso de 17/10, “Manual de Ética Política”, o jogo do ganha-perde da minha infância, na determinação abusiva estatuída por um pensamento pretensamente adulto, de António Costa e camarilha, que viram na jogada (sugerida anteriormente por mentores da nossa inteligência nacional, excluído o status ético pessoal), um meio de projecção e de autêntico furo para Costa e camarilha, à falta do resultado arrasador que prometera, quando expulsara Seguro, e igualmente para o PS, desejoso de recuperar o protagonismo do comando, embora contrariado por alguns adeptos moralmente mais escrupulosos ou pelo menos aparentando isso. Quanto à camarilha da esquerda, os sonhos são naturalmente radiosos, pelo inesperado do maná no seu deserto de destruição assumida sempre com gozo.
O artigo de Henrique Monteiro aponta igual estratagema de quem ganhou perdeu, sem que, todavia, tais regras fossem previamente estabelecidas, mas antes forjadas, no acaso de conjunturas favoráveis e aliciantes, que duas jovens ardilosas resolveram impor a um povo aparentemente subdesenvolvido que as alcandorou a um lugar de bastante relevo, para massagem do seu ego fascinado por inesperada glória política, novas padeiras para ficar na história das nossas batalhas. Felizmente, por enquanto, o subdesenvolvimento não é tão manifesto como elas e os seus companheiros de rua o supunham, embora isso seja por escassos dias, caso Costa continue a fazer finca-pé no seu capricho sem escrúpulo. (De facto, assim acontece).
O texto de Henrique Monteiro, é taxativo, o que demonstra quanto de vilania cresceu entre nós, trazido também por um 25 de Abril liberalizador de preconceito e sentido de vergonha, no vale tudo da vaidade cega e do ódio invejoso que irá, certamente, cilindrar direitos e haveres. Como na velha China de Mao, para não falar em outras revoluções passadas e presentes, ditadas por extremismos predadores, neste jogo do ganha-perde, do vale-tudo que já se viveu por cá.
Mas nessa altura houve um general para repor o equilíbrio. Agora, também isso foi ao ar.
General côr de rosa ou tropa fandanga
Pode, é certo, voltar, a tropa fandanga – (permito-me a expressão, enquanto ainda reina a tal democracia) – numa reorganização de apoio às forças da usurpação, munidas dos conceitos democráticos só para enganar os tolos que os alcandoraram ao poder.
Berta Brás
Manual de ética política
Henrique Monteiro
Expresso, 17/10/15
Os dias que se seguiram às eleições de 4 de Outubro não foram bonitos de se ver, depois de uma noite que augurava uma normalidade e elevação considerável, com Passos a reconhecer que sem maioria teria de negociar e Costa a assegurar que não faria coligações negativas.
Os dias seguintes trouxeram, porém, uma surpresa: Costa e os seus apoiantes transformaram, sem aviso prévio, as eleições parlamentares num plebiscito esquerda/direita. E descobriram que, apesar de a coligação ter ganho as eleições, afinal as tinha perdido.
Não conheço quem goste de votar sem saber para que o faz. Por mim gostaria de ter sido avisado com o mínimo de ética que se espera de toda a gente. Mas logo dizem que em muitos países é assim: não é quem ganha que governa,mas sim blocos de partidos que conseguem maiorias. Eu sei, mas recordoqueesses países são estritamenteparlamentares e não semi presidenciais, o que torna as coisas diferentes. Porém, estou convicto de que um acordo entre PS/BE/PCP é legítimo.
Não apenas do PS, mas também da esquerda radical. Se o país já era manco, por a esquerda não se unir, mais manco ficará quando se sabe ter sido transposto o muro, que Costa se orgulha de ter derrubado, no sentido errado. Ou seja, no essencial, o derrube não se seguiu a uma viragem do PCP e do BE no sentido democrático, europeu e ocidental, mas a uma necessidade do PS (ou melhor, do seu líder) em salvar a pele.
Apesar dos erros de Passos (e também tem vários) o que sobressai é a clara falta de ética republicana de quem, depois do assalto ao partido, quer agora assaltar o país sem querer saber de convenções e tradições. Como se antes dele nada houvesse e depois nada ficasse.
Mesmo sem o lerem, tudo se encaminha para que o Programa de Governo não passe na Assembleia da República e, portanto, que o Governo presidido por Pedro Passos Coelho caia.
Pelo discurso de Cavaco Silva, desacreditando qualquer solução de esquerda, não é crível que, na queda do Governo da Coligação, o Presidente encarregue alguém daquela área ideológica para formar Governo.
Restam duas hipóteses: o Governo da Coligação ficar em gestão até às próximas eleições; o Presidente encarregar algum independente de formar Governo (ao género do que fez Ramalho Eanes com os chamados Governos Presidenciais).
Rezo a todos os santinhos para que fiquemos com o nosso Governo em gestão pois as Portarias, os Despachos Normativos e os Despachos simples serão suficientes para garantir a ordem legislativa herdada do Governo anterior e os duodécimos do OE15 serão um modo pragmático de gastarmos menos dinheiro enquanto não houver OE16.
Se Pedro Passos Coelho não aceitar ficar em gestão, isso significará um período muito conturbado pois nenhum Governo da não esquerda passará, as tentativas governativas suceder-se-ão com grande desgaste político e maior prejuizo económico (a instabilidade é horrível).
Servirá esta instabilidade para efectivamente desgastar a esquerda? Não faço a menor ideia mas gostava de não passar por esse cenário de um Governo cada mês até à marcação de eleições.
Eis por que peço a Pedro Passos Coelho que preste mais este serviço ao país sacrificando-se a presidir a um Governo de gestão durante mais uns meses. Mais uma vez, os sensatos agradecer-lhe-ão.