No dia em que D. Juan Carlos I de Espanha abdicou do trono, foram muitas as coisas de que me lembrei...
Foram historietas do foro pessoal sem qualquer expressão política mas que fazem lembrar muitas coisas da política durante o reinado que então terminou, felizmente que em vida.
Um dia estava eu na Quinta da Marinha, em Cascais, a espreitar uns cavalos dentro das boxes e olhando para o lado deparei com o Rei de Espanha, com a Rainha e com a Infanta Dona Pilar, irmã do Rei, espreitando os mesmos cavalos. Discretamente, afastei-me e segui em silêncio respeitando o anonimato de que a Família Real Espanhola estava a gozar.
De outra vez, estava eu no «Van Gogo», então a mais famosa “boite” de Cascais, a dançar com uma namorada e constatei que sou muito mais baixo que o Rei de Espanha que ali mesmo dançava com a Rainha.
Muito antes disto, no ringue de patinagem do Cruzeiro (no Monte Estoril), o meu primo Tomás chocou com outro rapazola e deu-lhe uma bofetada, ao que o outro respondeu por igual. À noite, ao jantar, a minha tia contou a cena identificando o outro chocante, o então Príncipe das Astúrias, futuro Rei de Espanha. E o meu tio[1], com o humor que lhe era característico, avisou o meu primo de que nunca mais haveria de ser autorizado a ir a Espanha. É claro que tudo não passou duma rapaziada inconsequente.
Sim, D. Juan Carlos estava (está e estará sempre que puder e quiser) em Cascais como qualquer um de nós. Com uma diferença: ele sempre foi um Senhor; nós, nem todos.
Ele bebeu água da Barragem do Rio da Mula; nós também.
Sim, foi destas coisas que me lembrei no dia em que D. Juan Carlos abdicou.
Os cães são bichos simpáticos, dedicados ao dono, toda a gente sabe disso, inteligentes também, lê-se nos livros, vê-se nos filmes, contam-se exemplos.
A minha Zepa foi um exemplo, numa inter-relação de carinho que a fazia pôr-se no sítio onde os meus pés iam estar. Foi o que aconteceu um dia em que eu estava a pôr roupa a secar, no estendal do quintal e tive que lhe dizer, em voz branda, sem nenhuma inflexão mais forte, Zepinha, estás-me a estorvar, sem pensar que ela me entendesse. Mas a Zepa deu meia volta imediata, embora eu nem a tivesse mandado embora, só lhe disse sem nenhuma inflexão especial que me estava a estorvar e foi pôr-se noutro lugar, à sombra de um banco de jardim, velho como a casa de mais de cinquenta anos.
Percebi a frase que ouvi muitas vezes sobre a inteligência dos cães “Só lhes falta falar!”, pois na verdade parece que percebem as falas, sobretudo se deles se fala, mas eu nem me debrucei para lhe falar, à Zepa, estava a pendurar uma peça de roupa, de braços erguidos para o arame, mais preocupada com a gestão do meu tempo.
Pouco tempo depois, a Zepa morreu, doze ou treze anos de vida livre e várias ninhadas. Andavam a fazer uma piscina na casa atrás de nossa e o estrondo das escavadoras fez a Zepa fugir, já arrastando-se, vivendo os seus últimos dias, que julgávamos ainda distantes do fim. Dessa primeira vez, consegui encontrá-la debaixo duma cadeira de uma esplanada onde ela ia connosco, faltei a uma aula, levei-a de volta a casa, deixei-a ali fechada. Mas no dia seguinte, a Zepa desapareceu de novo, com a carga de dinamite daquele dia que a assustou. Foram inúteis as buscas, dizem que os cães vão morrer longe da casa onde foram amados e comprovei-o com a Zepa, na sua delicadeza discreta.
Não assim com o Nick seu filho, que morreu anos depois, a escutar os meus soluços agarrada a ele.
Sempre jurei que não queria bichos em casa, para não sofrer as suas dores e as suas mortes, mas afinal a Zepa, que me foi largada um dia, às três da manhã, por uma cadela a quem dávamos de comer, foi o início de gerações de cães e de martírios, até para os distribuir. Mais tarde apareceram os gatos também, de uma gata vadia, e os meus filhos contam da dedicação do Rosso, a substituir a gata, sua esposa, no aconchego dos filhos.
Histórias perdidas no tempo, guardadas na moldura que lhes contém o retrato – a Zepa, o Nick novo, o Rosso, o Nick velho, fiéis amigos, companheiros de folguedos dos meus filhos.
Vem isto a propósito do Fox, que para o mês que vem passa o seu décimo quarto aniversário. Foi um cão com as vacinas todas enquanto na infância, pertencente então ao meu filho Luís, muito responsável na altura, mas que o despachou para os pais assim que o Bruno nasceu. Não teve mais vacinas, mas foi ao veterinário sempre que precisou. A trela que trouxe só serviu nos primeiros tempos, quando ia com o meu marido comprar o jornal. Mas a experiência de vida tornou-o hábil a livrar-se dos carros, foi um cão livre de trela, tal como os anteriores. Adaptou-se bem a este apartamento e de manhã põe-se em riste para ir lá fora, ladrando lá no rés-do-chão quando quer entrar. Um cão esperto, com bastante mimo e dores nas pernas que se vão mitigando com os comprimidos próprios. Ainda se entretém com as e os camaradas do seu prazer, embora comedidamente, e o resultado disso é que se esgota e por uns tempos come menos, o que me aflige, naturalmente. Assim aconteceu há dias, diante do prato com frango e arroz que não se dispunha a comer. Como o meu marido deixou em cima da mesa o courato restante de um pedaço de presunto que a minha filha lhe trouxera das suas férias no Norte, resolvi acrescentar esse courato ao arroz não com favas mas com frango e cebola e alho, que acrescento ao granulado vitaminado, atirando-o para o prato.
À noite, estava eu a passar a louça para a máquina por água, quando olhei para o prato do Fox. Estava totalmente limpo, e fiquei satisfeita, naturalmente. Mas aos meus pés encontrei o courato, ali largado e admirei-me, pois eu tinha-o posto no prato do Fox. Fiquei intrigada e voltei-me para trás, talvez para o chamar e lhe fazer uma festa por ter comido tudo, menos o courato, é claro, que, aliás, eu não pensara que comesse. O Fox estava estendido sobre o respeitável ventre, as duas patas para a frente, e olhava-me com um ar humano, que nunca lhe vira – um olhar simultaneamente de desprezo, de dor, de orgulho ofendido, de profunda frustração, se não indignação, por lhe ter posto courato no prato. E não é que me senti envergonhada pela minha acção jamais praticada antes, de misturar courato de porco na comida do Fox? Quando me voltei novamente, nem sei se para lhe pedir desculpa, o Fox desaparecera. Dera-me a lição merecida com o seu ar de reprovação e voltara altivamente para o seu tapete.
Já contei esta história várias vezes, sempre na estranheza e no riso: eu nunca vira um ar tão enevoado e humano no meu Fox, Hoje contei à minha irmã e o Fox escutava, prostrado, mas de olho vivo, a compreender.