No caso Sócrates, todos (ou quase todos) tentam separar com uma linha divisória imaginária o que se inscreve na esfera do Direito e o que é claramente do foro da Política, quiçá numa emulação bíblica aparolada do "A César o que é de César, a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21).
Atendendo a tratar-se de quem se trata, a linha de fronteira é, por razões óbvias, muito ténue, fluida e trémula. Houve já um primeiro julgamento político nas eleições, sem dúvida alguma, mas, para além do julgamento judicial, que seguirá certamente o seu curso normal, há um segundo julgamento político que, quer se queira quer não, está, neste momento, a ser feito pelo cidadãos deste país e que ficará também para a história. As coisas são assim mesmo e não podemos fugir a elas. Além disso, todos vociferam e esbracejam, mas o certo é que vivemos num mundo mediático a que não podemos escapar, com ou sem aspectos circenses, com ou sem "fugas" a pretensos segredos de Justiça, com ou sem alegadas infâmias. Vivemos no século XXI numa era de mediatização global. Os políticos devem preparar-se para estas situações, senão não serão seguramente políticos, ou seja: poderão ser julgados pelos tribunais, mas sê-lo-ão também, principalmente – e sempre –, julgados na praça pública “with a little help from the media".
Antes das eleições ou destes juízos de última hora, com a emoção à flor da pele, independentemente dos nossos estados de alma: revoltados, resignados, contristados, exultantes ou revanchistas, recordo que António Barreto fez um juízo político muito severo em pleno socratismo, num artigo de opinião no Público, de Janeiro de 2008 que passo a citar:
"Não sei se Sócrates é fascista. Não me parece, mas, sinceramente, não sei. De qualquer modo, o importante não está aí. O que ele não suporta é a independência dos outros, das pessoas, das organizações, das empresas ou das instituições. Não tolera ser contrariado, nem admite que se pense de modo diferente daquele que organizou com as suas poderosas agências de intoxicação a que chama de comunicação. No seu ideal de vida, todos seriam submetidos ao Regime Disciplinar da Função Pública revisto e reforçado pelo seu Governo. O primeiro-ministro José Sócrates é a mais séria ameaça contra a liberdade, contra a autonomia das iniciativas privadas e contra a independência pessoal que Portugal conheceu nas últimas três décadas. Temos de reconhecer: tão inquietante quanto esta tendência insaciável para o despotismo e a concentração de poder é a falta de reacção dos cidadãos. A passividade de tanta gente. Será anestesia? Resignação? Acordo? Só se for medo…"
Não posso deixar de subscrever e de saudar a clarividência de Barreto que emitiu um juízo político claro sobre o político Sócrates, que jamais voltará às luzes da ribalta.
Para finalizar e no meio do “barulho" das luzes convém ler e meditar o que escreveu José Gomes Ferreira no Expresso on-line de hoje (28NOV14). Bom e, já agora, um pequeno exercício, a fazer crédito no que é publicado, tentem separar, se para tal forem capazes, a acção política dos actos puramente mafiosos e tirem as conclusões que quiserem.
Totalmente confiante nos trabalhos preparatórios da viagem por quem disso se encarregou durante vários meses - a Graça, (minha mulher) e o nosso amigo Pepe - e muito atarefado até ao momento de pôr o pé no estribo para a viagem, defrontei-me com a realidade num estado de grande inocência. Mais exactamente, de grande ignorância sobre o que me esperava.
Dizia para com os meus botões que o Vietname seria, depois de Cuba e da China, o terceiro país comunista que me preparava para visitar e foi com algumas ténebras que no aeroporto de Bangkok vi, já posto o Sol, chegar o avião da «Vietnam Airlines» pintado de cores plúmbeas, preparando-se para nos «engolir» levando-nos para lá da remanescente «cortina de ferro». Cenário plúmbeo desenhado por mentes tenebrosas, restava-me a confiança ilimitada nos organizadores da viagem que, também eles, não quereriam meter-se em sarilhos. E seriam as agências de viagens assim tão loucas que enviassem vítimas inocentes para cenários de holocausto? Não haveria de ser nada de cuidado, era o meu cansaço de infindas horas de voo de Lisboa ao Dubai e a Bangkok a imaginar coisas feias.
Chegada a hora, bradou o alto-falante uns guinchos em falsete que fui obrigado a reconhecer como voz humana dizendo o que era fácil de adivinhar, que embarcássemos. E lá fomos nós quais dóceis rezes direitas ao açougue...
Afinal, o avião era um Airbus A321 quase novo com interior sem excesso de austeridade e de classe única à boa maneira comunista. Sentado na última fila, restou-me a esperança de ser o último a baixar aos calabouços na minha óbvia qualidade de perigoso capitalista imperialista; a minha mulher seria das penúltimas pois estava na fila à minha frente. Calhou-me no banco ao lado uma rapariga-mulher-menina-senhora de idade e estatuto indefinidos que tanto poderia ser a Embaixadora vietnamita junto da Corte do Sião que regressava a Hanói para consultas políticas como uma «artista» do cluster turístico mais conhecido da Tailândia que regressava a casa para consultas urológicas. Mas também poderia ser uma simples e honrada mãe de família que fora a Bangkok visitar a sogra por ali emigrada assim como poderia ser qualquer outra coisa que a imaginação nos permita. Na certeza, porém, de que a pobrezinha estava apavorada e disso eu não tive quaisquer dúvidas. Tentando descontrair-lhe a mente, vá de meter conversa e eis que me responde com mímica internacional de como quem diz – Não percebo nada do que estás para aí a dizer. Respondi-lhe do mesmo modo dizendo que a queria ver com o sorriso pendurado nas orelhas e não com lágrimas. Sorriu em agradecimento mas não foi capaz de continuar a tentar ser simpática pois teve que se agarrar de imediato ao saco-vomitório. Durante a viagem de Bangkok a Hanói (menos de duas horas de voo) tive que ir pedir mais dois desses sacos para a pobrezinha se servir. Obviamente, o jantar que lhe foi servido ficou intacto e eu fui comer o meu para junto da tripulação para que ela não fosse obrigada a assistir. «Estrada» lisa, voo sem história, aterragem normal, saímos do avião e já na manga fui então presenteado por um sorriso lindíssimo de despedida da minha efémera vizinha na última fila da formatura no caminho para o açougue.
De onde vem a expressão "pagar luvas", agora – infelizmente – muito em uso aqui neste canto da Europa e não só. Aliás, o correcto seria dizer "oferecer luvas" e vamos ver porquê. Quem levanta a ponta do véu é um súbdito de Sua Majestade britânica que deambulou por este mundo entre 1633 e 1703. Refiro-me a Samuel Pepys (leia pips).
Pepys ficaria para a história como o memorialista mais cândido de todas as épocas.
A sua franqueza despudorada levou-o a descrever tanto cenas íntimas da sua vida conjugal (e extra conjugal), como os pretextos de que se servia para cobrar por favores prestados e chegou ao ponto de registar actos de cobardia pessoal. Que mais se pode pedir. Tal franqueza provavelmente ficou-se a dever ao facto de ter escrito numa estenografia pessoal que lhe permitia registar rapidamente, em linguagem descuidada, despida de pontuação, mas dotada de elevado grau de vivacidade, o que ia observando no amplo circulo social a que tinha acesso, onde se incluía a Corte de Carlos II, marido de Catarina de Bragança (a quem Pepys faz várias referências).
Ao todo, Pepys compôs 54 cadernos, com entradas diárias, sem falha, que viria a legar à Universidade de Cambridge com a condição de esta zelar pela integridade da obra. Se bem que para a sensibilidade inglesa nada seja mais fascinante do que um código a decifrar, mesmo assim, os estudantes de Cambridge levaram mais de um século para conseguirem ler a mensagem que Pepys lhes legara. A primeira edição incompleta do Diário é de 1825 e a primeira completa só saiu da tipografia em 1893.
A entrada do Diário de 2 de Fevereiro de 1664, três meses depois de Pepys ter tomado assento na Junta Governativa de Tânger (onde se concediam ou recusavam licenças para comércio e navegação com aquela Praça, presente do rei de Portugal ao seu genro) reza o seguinte (tradução minha):
"Depois voltámos à Bolsa e daí seguimos para a Sun Tavern com o Sir W. Warren e com ele discorremos demoradamente e dele recebi bom conselho e boas sugestões. E, entre outras coisas, ele deu-me um par de luvas para a minha mulher, embrulhadas num papel, que me pediu para não abrir mas que senti duro. Disse-lhe que a minha mulher haveria de lhe agradecer e voltamos à nossa conversa.
Quando cheguei a casa, meu Deus, com eu estava ansioso que minha mulher saísse da sala sem que eu lhe pedisse, afim de ver o que estava no embrulho, o que, por fim, aconteceu. Um par de luvas brancas para ela, com 40 moedas de ouro fino dentro: e tanto alegrou o meu coração que não consegui comer nada ao jantar pelo prazer de pensar como Deus nos abençoa cada dia mais – e mais ainda fará à medida que eu consiga aumentar as minhas responsabilidades e os meus propósitos. Fiquei embaraçado sem saber se deveria ou não participar a minha mulher. Embora com custo, preferi nada dizer não fosse ela julgar que eu já estou em melhor condição para ganhar dinheiro do que na realidade ainda estou "