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A bem da Nação

INDOCHINA – 17

 

 

De nós os quatro, o meu amigo Pepe teve um problema cardíaco de que felizmente recuperou plenamente, as duas Senhoras têm problemas de coluna (a Graça foi operada há cerca de 6 meses e ainda está convalescente) e eu, que sempre incho nos climas quentes, tinha 16 kgs a mais do que deveria ter para me sentir confortável. Para além do que não andava de bicicleta há mais de 50 anos. Então, a visita ao delta do Mékong seria feita com duas bicicletas, dois riquexós e a moto do guia. Sim, como se tivéssemos 20 ou 30 anos de idade. Acho curiosa esta maneira de as agências de viagens programarem as visitas sem se cuidarem de saber se os percursos a nado são compatíveis com quem não sabe nadar, se os percursos a cavalo podem ser feitos por quem tenha asma dos fenos, se o alpinismo serve a quem tenha atracção do abismo. Felizmente, monto a cavalo diariamente. Mas a dinâmica ciclista é completamente diferente da equestre e eu tive que me adaptar num ápice sob pena de estragar a «festa» ao grupo. E lá fomos de bicicleta e riquexó para um percurso de 7 kms por ciclovias empoleiradas em diques ou no meio de agricultura frondosa e trânsito a condizer com região muito povoada.

 

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 A Amélia e o Pepe, algures no delta do Mékong

Almoçámos muito bem em casa duma avó que deve ter sido uma grande Senhora na região, uma casa magnífica que já viu melhores dias, uma família enorme que dispersou entre Saigão e Itália, uma sobrevivente da guerra contra os franceses, da guerra contra os americanos e do regime que foi comunista durante algum tempo. A guerra contra os chineses não chegou ali. Mas a Senhora fez um acordo com algumas agências de viagens e lá se vai mantendo de pé, ela própria e a casa.

 

Região ubérrima, não dá para imaginar o que terá sido a vida dos soldados americanos num cenário destes em que um vietcong se poderia esconder por trás de qualquer arbusto à distância de um braço não muito estendido. E com o povoamento tão disperso mas, mesmo assim, tão próximo, era passar de quintal em quintal por caminhos que naquela época deviam ser lodaçais horríveis mas hoje são todos cimentados e de passeio muito agradável – até para um septuagenário que não montava uma bicicleta há mais de 50 anos.

 

E dali rumámos a Saigão onde chegámos duas horas depois por uma auto-estrada sem Via Verde (porquê, Brisa nossa?) muito movimentada que ali começava para acabar para lá de Hanói na fronteira com a China.

 

Estafados, voltámos ao hotel em que alguns anos antes se hospedara Bill Clinton e jantámos de novo no restaurante «Nossa» em homenagem à música do brasileiro Michel Teló https://www.youtube.com/watch?v=hcm55lU9knw que para nós não deixa de ser um português com sotaque.

 

E pronto, creio que os leitores também já estão fartos destas minhas crónicas e por aqui me fico.

 

Feliz Natal e que 2015 confirme as esperanças que todos sempre depositamos no futuro.

 

FIM

 

Lisboa, 21 de Dezembro de 2014

 

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Henrique Salles da Fonseca

(à porta da limousine)

INDOCHINA – 16

 

 

Visto de longe, o «Javardão» fez-me lembrar um aglomerado de barracas mas ao aproximar-me mudei de ideias e até o achei bem simpático; por dentro tem charme e os camarotes são muito confortáveis; o Pessoal é inexcedível. Come-se bem a bordo, o que pode ser testemunhado pela minha «proeminência barrigal» em várias das fotos que publico. Mas chegado a Lisboa já comecei a desinchar e estou de novo quase normal.

 

Navegávamos e fundeávamos todos os dias e assim fomos aos «saltinhos» Mékong abaixo... Visitámos aldeias ribeirinhas onde pudemos testemunhar o tipo de existência que levam os cambojanos rurais e demos por nós a comparar os nossos conceitos com os deles, nomeadamente o de miséria. Sim, nós consideramos que eles vivem na miséria porque não têm saneamento básico nem água canalizada mas têm casa, terras de cultivo, vacas para o trabalho e para o leite (não para carne!), peixe, árvores de frutos variadíssimos, escola para os filhos. Em Portugal, os nossos rurais viviam assim ou pior até há 50 anos. E a escola é boa? Talvez seja por ela não ser assim tão boa que há umas ONG’s espalhadas um pouco por toda a parte que visitámos ensinando inglês e matemática às crianças mais desfavorecidas cujos pais não possam pagar as aulas extraordinárias que ministram os professores primários mal pagos pelo Estado. E ensinam-lhes também a ter orgulho na sua própria cultura, a khmer.

 

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E fomos navegando até chegarmos à fronteira fluvial com o Vietname onde o Senhor Santola nos chama – só a nós, portugueses – para nos dizer que há um «pequeno» problema com os nossos Vistos.

- Como assim?

- Os Senhores tinham um Visto para entrarem por Hanói mas depois saíram por Saigão e agora precisam de novo Visto para reentrarem no Vietname.

- E ninguém viu isso no controle de passaportes e só agora é que nos dizem?

- Pois, houve um erro no controlo. Mas eu vou agora durante a noite a Phnom Penh para amanhã de manhã obter os Vistos na Embaixada vietnamita e volto de seguida para tudo se resolver.

- Muito bem, se essa é a solução, faça-se como diz.

E lá foi o Senhor Santola de carro até Phnom Penh que, afinal, era só a 40 kms e – viemos a saber mais tarde – onde ele mora habitualmente tendo lá casa e família pelo que o «sacrifício» não seria assim tão grande como pensámos no momento.

Na manhã seguinte interromperam-nos o pequeno-almoço dizendo que tínhamos que ir de imediato ao posto fronteiriço assinar uns papéis e que voltávamos logo de seguida com tudo resolvido. Que o barquito nos esperava. Deixámos o pequeno-almoço por comer e lá fomos... Quando íamos a meio do percurso vimos o barco levantar ferro e zarpar rio a baixo deixando mesmo de o ver quando curvou ali a seguir por um meandro. E o «voltar logo de seguida» deixou de fazer sentido pois não teríamos barco para voltar a lado nenhum. Chegados a terra fomos recebidos por um vietnamita todo ele «sorrisos e mesuras» que nos informou que o Senhor Santola já vinha a caminho com os Vistos e não tardava nada. E esse «nada» de tempo foram três horas de expectativa sem barco, sem Santola e sem Vistos. Entretanto, lá fomos dizendo ao «sorrisos e finuras» que considerávamos que o Comandante nos abandonara e abandono de passageiros é um grande sarilho no Direito Marítimo. A ver se não teríamos que participar do Comandante. Então, se o «sorrisos e mesuras» já era naturalmente amarelado, ficou de repente completamente amarelo, sem uma pinga de sangue. E logo nos pediu para sermos «friendlies» com eles. Sim, sim... Mas logo se agarrou ao telefone e por certo que o Comandante terá ficado elucidado sobre a hipótese da nossa participação por abandono.

 

E lá chegou o Santola ao fim de três horas com os Vistos, furioso com o Comandante. O «sorrisos e mesuras» arranjou então um jeep de luxo que nos transportou numa viagem alucinante a 60 kms à hora mas parecendo que íamos a 180 ao longo da margem até encontrarmos o barco. Quando subimos a bordo fomos recebidos com uma salva de palmas pelos outros passageiros e mandámos recado ao Comandante que não nos aparecesse à frente pelos tempos mais próximos, o que ele cumpriu até ao final do dia seguinte.

 

No dia seguinte houve uma festa organizada pela equipagem e por acaso a primeira fila foi destinada aos quatro portugueses. Por que seria? O Comandante apareceu mas nós trocámos-lhe as voltas e não o cumprimentámos.

 

Dali fomos sempre aos saltinhos até ao porto de amarração do «Jayavarman» no delta do Mékong e chegou a hora de desembarcar, ou seja, a das gorjetas ao pessoal.

 

Nós teríamos um programa diferente dos outros passageiros que se meteram em autocarros e desapareceram enquanto nós tínhamos um novo guia que nos esperava com uma carrinha de super luxo, preta e doirada, estilo limousine, que fez o espanto da equipagem desde os marinheiros e pessoal de hotelaria até ao Comandante, todos alinhados em acenos de despedida. Comovente! Mas nesse momento o Comandante deve ter recebido algum telefonema e foi para trás duma grua para ouvir melhor o que lhe estariam a dizer lá do outro lado. Não vi se estava amarelado ou completamente amarelo.

 

No último momento, o Senhor Santola aproximou-se da porta da nossa carrinha preta e doirada e disse: – Once again you make the difference.

 

A todos acenámos e todos, bem agorjetados, nos acenaram numa despedida emotiva. Menos o Comandante, claro. E nós, a salvo, decidimos não participar dele e quisemos que ele tenha muitos meninos pela barriga das pernas. Não sabemos o que alguém lhe disse ao telefone mas uma coisa sabemos: aquele tipo é um autêntico javardão.

 

(continua)

 

Lisboa, 20 de Dezembro de 2014

 

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Henrique Salles da Fonseca

(no Mékong)

A QUEDA DO MURO DE BERLIM – O FIM DE UM SUSTO

 

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A Divisão da Europa e do Mundo passava, há 25 anos, pelo Meio da Alemanha

O dia 9 de Novembro, é aquele dia em que se celebra o 25° aniversário da queda do Muro de Berlim, o dia em que a liberdade arrebentou com as portas e desceu à rua.

Até àquela data já tinha fugido do éden socialista, cerca de 5 milhões de “ossis” (alemães de leste). O Politburo constatava que, por dia, fugiam de Berlim Leste de 300 a 500 pessoas e toda a Alemanha de Leste se encontrava em efervescência tal como acontecia já noutros países do bloco soviético; por isso decidiu simplificar a saída e a entrada no país.

A notícia prematura da administração (Politburo) de que no dia seguinte haveria liberdade de circulação levou o povo a acorrer em massa, já no dia 9, às fronteiras.

Ateado o fogo da coragem à multidão, esta deixou a alegria saltar em cima do muro e destruir, por algum tempo, a "cortina de ferro" entre capitalismo e socialismo. Apenas a porta de Brandeburgo se manteve algum tempo encerrada, devido ao titubear das instâncias socialistas, que por fim deixaram vingar a razão, não intervindo naquele acto da força popular. Os soldados controladores do muro abandonaram os seus postos, ao ver tal formigueiro de pessoas e trabis (auto típico da Alemanha de Leste) a querer passar para o lado ocidental do muro. Deste modo, os alemães tiveram a sorte de fazerem uma revolução sem tiros nem mortes. Posteriormente o funcionário superior do Politburo (Schabowski) que, por descuido, deu início à enxurrada da liberdade, declarou-se envergonhado do sistema socialista confessando: “fizemos quase tudo mal” naquele “sistema incapaz de vida”.

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 Trabant

Era o início do fim da ditadura socialista da Alemanha de Leste. A vontade de liberdade não se deixou dominar por mais tempo; o estado injusto com espionagem em todos os sectores laborais e sociais, com o terror policial, a perversão da justiça e a idiotice económica aproximava-se do fim.

Aquela monstruosidade do muro erguida nos olhos do mundo desde 1961 caía agora devido à força da enxurrada da liberdade represada durante 28 anos. Começava para os cidadãos do socialismo real uma nova vida pondo-se a corar ao sol da liberdade a mancha da vergonha. Inicia-se aqui uma nova página da História para a Alemanha e para a Europa. Acaba-se com um mundo bipolar e com a guerra-fria, conseguindo-se a reunificação da Alemanha a 3 de Outubro de 1990.

Os cidadãos ao saltarem o muro do medo conseguem fazer milagres aplainando os muros para a felicidade poder deslizar.

Tive a dita de festejar juntamente com os alemães o dia da libertação. Um misto de alegria, agradecimento e humildade se juntavam nos ares. Neste momento não tínhamos nacionalidade, cor nem raça, éramos universais. Neste dia as pessoas mesmo desconhecidas aplaudiam e choravam, abraçando-se na rua. Como é belo e consolador quando o sol deixa de ser arrebanhado por mãos escuras e pode descer à rua. Se a massa do povo soubesse a força que tem, não haveria político algum que lhe resistisse e continuasse a servir-se e a servir interesses anónimos e escuros, à sua custa.

O nove de Novembro é uma data marcada pelo destino alemão. Em 1918 deu-se a abdicação do imperador e proclamação da República; a 9.11 de 1923 falha miseravelmente o golpe de Hitler contra a Democracia; a 9.11 de 1938 deu-se a miserável “Noite dos Cristais”, o pogrom contra os judeus em que os nazistas incendeiam sinagogas e se deu a pilhagem das lojas judaicas - com este dia inicia-se a perseguição sistemática dos judeus; finalmente, a 9.11 de 1989 dá-se o passo para a união e liberdade depois da abertura incontrolada do muro.

O sacrifício que se paga pela liberdade deve ser proporcional à vitória e à perda! A liberdade e a justiça justificam o máximo de esforço e sacrifício.

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António da Cunha Duarte Justo

INDOCHINA – 15

 

 

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Disseram-me que o hotel de quase luxo em que ficámos em Siem Reap é propriedade do Presidente da Câmara da cidade. Perguntei então se ele é Presidente da Câmara porque é dono do hotel ou se é dono do hotel porque é Presidente da Câmara. Fingiram que não perceberam e disseram que ele tem vindo a inaugurar mais hotéis. Conclui eu que ele é dono do hotel porque é Presidente da Câmara e auto-licencia as suas iniciativas hoteleiras. De certeza que não é membro de nenhum dos Partidos que pertençam à Oposição ao Governo de Hun Sen. E porque é membro do Partido do Governo, é Presidente da Câmara e porque chefia a cidade, é dono daquele hotel. E dos outros que referiram...

 

Sim, o «negócio» cambojano é só para os amigos do khmer vermelho arrependido que protege alguns antigos camaradas de luta mas entrega outros a julgamento. Há que mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma. Sim, nessa casta cambojana são todos iguais mas uns são mais iguais do que outros. Ou seja, o Camboja não é uma democracia mas sim uma nepocracia. Mais do que despótico, o regime é nepótico e as eleições uma farsa pegada.

 

Mas o hotel é bom e para um hóspede cansado isso é o mais importante.

 

O nosso guia por dois dias era farmacêutico formado em Cuba e por isso era fluente em espanhol. Como a Amélia é farmacêutica (mas formada em Lisboa), logo perguntou pela farmácia dele. E a resposta não se fez esperar: - Yo alquilo el nombre. Arrenda o nome para que oficialmente a farmácia tenha um responsável técnico mas não põe lá os pés e faz de guia turístico. Não ficou esclarecido se lá vai uma vez por mês para receber a renda, se esta lhe é paga anualmente ou se lhe fazem uma transferência bancária. Também se pode dar o caso de lhe pagarem em galinhas ou pílulas para a gota ou panarícios de que algum parente padeça. Só mentiras. Restou-me a convicção de que no Camboja tudo passa por soluções estranhas. Pudera! Depois de terem tido exemplos como os de Sihanouk e Pol Pot, quem perde tempo com a verdade?

 

Depois do predomínio do espanhol durante a viagem pelo Vietname e durante estes dois primeiros dias no Camboja, eis-nos a entrar no mundo do cruzeiro pelo Mékong em que a língua seria o inglês.

 

Nomes estranhos, o do Director do cruzeiro a quem passámos de imediato a chamar o Senhor Santola e o de um outro funcionário que por duas ou três vezes teve que dizer como se chamava para que eu o fixasse como Slot Machine ou Truman Capote. O que diriam eles dos nossos nomes?

 

O ponto de encontro para os preparativos em terra foi num hotel também de 5 estrelas de construção recente mas a imitar a arquitectura tropical do início do séc. XX. Lindíssimo, mais valem as fotos do que as conversas...

 

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C-Hotel Vitória, Siem Reap 1.JPG

 

Entregues os passaportes para os controles fundamentais, lá nos metemos em autocarros a caminho do «Javardão». Éramos uma centena de pândegos e deu logo para saber que havia um casal de velhotes australianos, que o Tarass Bulba e a mulher eram neo-zelandeses, que os alemães eram gays, os americanos eram altos e os suíços civilizadíssimos. Mas ao fim da tarde já deu para perceber que também havia um paralelipipédico casal mahori em que ela parecia um ele, uns casais alemães straight, uns americanos nem altos nem baixos, enfim, todos mortais e simpáticos.

 

(continua)

 

Lisboa, 20 de Dezembro de 2014

 

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Henrique Salles da Fonseca

UM LIVRO DE 2014

 

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Um livro forte. Um livro evasivo, em suspense, que ora vai desvendando, ora vai recapitulando, entremeado de pensamentos filosóficos a apoiar o narrado acerca das várias heroínas duma história de mulheres e de homens instalados numa aldeia distante do mundo citadino. Um momento fulcral – uma borrasca infernal provocando cheias com destruição e morte, significando, num enredo quase se diria policial, o mistério de um nascimento e simultaneamente a criação de um mito de santidade de uma dessas figuras femininas – Isabel ou Luzia de Siracusa - criado propositadamente por uma mulher frustrada, vingativa e de conceito antiquado sobre a honra na mulher – Adelaide, mãe daquela. Uma leprosaria extinta, onde permanecem duas mulheres deformadas, caras e corpos destruídos, mas com o seu papel nesse nascimento que só mais tarde se decifrará, embora seja focado logo no começo da acção, como notícia trazida por Leta Mirita, e retomado aqui e ali, na progressão ou recuo da efabulação. Uma aldeia onde se passam as circunstâncias mais ou menos tenebrosas, mais ou menos burlescas de uma acção descrita com extrema perícia e riqueza estilística e de pensamento, de um escritor que se afirma como uma promessa no horizonte das letras pátrias, que mesmo José Pacheco Pereira lerá sem repulsa, ele que troca toda a modernidade literária pela leitura dos clássicos. Com o tempo, este poderá sê-lo também. «Terra de Milagres», assim se chama este primeiro romance de João Felgar, nascido em Moçambique em 1970, 44 anos de uma vida plena de estudo, de trabalho numa carreira de juiz, de viagens e que, finalmente, se fixa em França com a família, no propósito de escrever romances.

Um pensamento filosófico, de sátira ligeira mas contumaz, onde se destaca a figura da costureira Júlia, mulher que aprendeu a ler sozinha mas que tudo leu e cuja frase inicial do Prólogo, muitos anos antes do começo da acção, destaca, em leit-motiv ameaçador, todo um enredo de dor, nos casamentos frustrados das suas filhas, Leta Mirita e Adelaide (esta, sobrinha e enteada), tal como fora o seu próprio casamento, imposto, de casar com o marido da irmã morta, para tomar conta da filha desta. Quando o marido lhe morre nos braços, sabe, por denúncia febril deste, que o homem que ela amara apenas amara a irmã, e docilmente submeteu-se ao marido, guardando, para sempre, a acidez de visão sobre a sacrificada condição feminina. Eis a introdução no Prólogo:

 

- A fertilidade das mulheres é um caminho de sangue e dor – disse Júlia com uma fileira de alfinetes na boca. – Enquanto os rapazes jogam futebol e andam aos ninhos, estamos nós tolhidas com as dores da história sem sabermos bem para que serve aquilo. A perda da virgindade é paga com as dores de uma punição, de preferência no dia mais bonito da nossa vida. E, por fim, a maternidade. Em que damos uivos de lobas, com dores de se ver lume. Tudo isto sempre com sangue pelo meio.

 

27 mais capítulos se seguirão de sequências e retomas, o tempo esvaído do seu valor, o ontem e o hoje aparecendo na amálgama de eventos próximos ou distantes, o casamento de Leta Mirita, finalizado com o adultério do marido, apesar das tentativas desta de lhe preparar pratos saborosos e de se alindar, com novo vestuário e pintura dos cabelos. Quanto a Adelaide, sempre mais rígida, o casamento constituiu uma experiência de tortura longos anos vivida no silêncio e no ódio amedrontado, com um sanguinário devorador de fêmeas, de larga crónica de sadismo escondido pela família do próprio, que assim que pôde o casou com grande alarde de pompa e esbanjamento de dinheiro, fórmula que também Adelaide aplicou para chantagear o sogro, calando em troca o vilipêndio e o sofrimento infligido pelo homem, belo de aspecto, carrasco de sentimentos. Os seis filhos homens que inicialmente teve, criou-os Adelaide com a função de matarem o pai e para isso educando-os sem carinho e só exigência selvática de espiarem pessoas, perseguirem animais e matarem-nos. Uma outra filha teve que, tal como ela o fora quando casou, foi violada e seviciada, com marcas corporais como as que ela própria escondia. Intentou matar o marido mas este informou-a de que tinham sido os irmãos a violar a irmã, e o medo do marido, que só abrandava durante as suas gravidezes propositadas, para se afastar dele, que sentia então nojo da mulher, passou a senti-lo igualmente dos filhos. Tratou a filha noite e dia com desvelo, curando-lhe as feridas, alimentando-a, encerrando-a no quarto, escondida do mundo. Tendo-a destinado para santa, quando soube da gravidez da filha, em farsa engendrada com a inteligência do pânico, ela própria exigiu que o marido a usasse à sua maneira, para engravidar paralelamente, e assim criar os dois bebés como seus, espalhando pela aldeia que ia ter um par de gémeos o que todos louvaram, rica e respeitada como era. E ao fim do tempo, mãe e filha passaram uma odisseia extraordinária, tendo ela o seu filho na leprosaria e após isso, conduzindo a filha ao hospital, dizendo-lhe que não identificasse o seu verdadeiro nome, nessa noite de chuva e inundações, que lhe matou os seis filhos varões e o marido, e em que Luzia de Siracusa, amamentou os dois bebés, aparecendo sobre as águas do rio e cometendo mais dois outros milagres, quatro de uma assentada. Assim se criou o mito da santidade, através da mentira, para salvar a honra da filha, santidade repelida pelo bispo, uma santa que outros milagres cometeria, na sua urna de cristal, a sua figura doce apenas sorrindo, as suas transmissões ditadas pela mãe Laidinha, através das Seguidoras.

Outras figuras perpassam, as Seguidoras fanáticas e subservientes, Gualter, rapaz chegado de África e com jeitos amaricados mas sabendo fazer-se estimar. E os dados sobre o 25 de Abril, com informações de alguma ironia, e uma Adelaide, após a morte da filha, contando finalmente à mãe, que o adivinhara, e à irmã - de quem se tinha afastado, no seu viver de terror e altivez abastada - a sua vida de maldição e horror, o mito que ela própria criara de santidade da filha, para não denunciar a sua verdade de miséria. O bispo será informado, e acabam os dois tomando chá num café, esquecidas as desavenças, o bispo aceitando finalmente a santidade de Luzia de Siracusa, e lembrando ele próprio o revestimento da capelinha dedicada à santa, com os vestidos de noiva que Leta Mirita fabricava, a televisão especulando sobre o caso e trazendo à aldeia peregrinos do mundo inteiro, contando outros milagres de curas por intercessão de Luzia de Siracusa.

E o Epílogo terminará, numa estrutura circular que denuncia o contraste entre o que se sonha e o que se vive, com o retorno a um tempo passado de fé na vida e no amor, que os romances de Max du Veuzit e outros autores da biblioteca das raparigas, das estantes da velha Júlia, que os contestara sempre, contribuíam para intensificar:

Dando um último toque no véu, voltou-se para o espelho e viu ao seu lado a mais bela noiva que alguma vez vestira.

-Vou ser feliz, mãe?

Baixando-se sobre a saia rodada do imponente vestido, Júlia procurou junto à bainha um alinhavo que só ela via, evitando assim que os seus olhos dessem a resposta à questão, falando mais do que deviam, como era seu costume.» Lille, 18 de Junho de 2013

 

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Berta Brás

INDOCHINA – 14

 

 

Os organizadores da viagem – a Graça e o nosso amigo Pepe – já me tinham falado do barco em que haveríamos de fazer o cruzeiro pelo Mékong abaixo dando-lhe o nome de «Javardão», o que eu sabia não corresponder minimamente à verdade mas... nunca fiando nestas azougadas gentes que ao pequeno-almoço comem sopa, massas alimentícias e ervas exóticas sem cheiros. Então, o barco chama-se «Jayavarman» e fui procurar saber porquê.

 

Encurtando razões (quem quiser saber mais que vá à Wikipédia por exemplo em http://pt.wikipedia.org/wiki/Jayavarman_VII), o que interessa é saber que o VII Imperador Khmer com esse nome viveu numa época sensivelmente contemporânea à fundação de Portugal e que foi ele que fez construir o monumental conjunto arquitectónico conhecido pelo nome de Angkor Wat, o que significa “Convento da cidade”, em que Wat é o convento e Angkor a cidade. Comparando então com a nossa História, imagine-se a antiguidade da civilização khmer quando este já era o sétimo Imperador com aquele nome, fora os que o antecederam com outros nomes.

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O frade capuchinho português António da Madalena – nascido em local e datas desconhecidos e morrendo em naufrágio ao largo da costa do Natal, actual África do Sul, em 1589 – foi o primeiro ocidental a visitar Angkor onde chegou em 1586. Pouco antes de morrer, relatou a Diogo do Couto a sua viagem e descoberta da cidade em cuja reconstrução tentou ajudar mas o projecto não teve êxito fazendo-o desistir e regressar a Portugal.

 

Eis o «peso» da nossa História que transportei durante a visita. Para aliviar o fardo, montei a cavalo e deambulei por ali... Exactamente como poderá ter feito Frei António da Madalena se não levou à risca a humildade monacal. A mim, não me cabem tais coibições para ganhar o Céu.

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Mais um local onde Portugal marcou presença.

 

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E sabem que mais? Tudo me fez lembrar as monumentais construções astecas. Ter-se-ão eles conhecido uns aos outros?

 

O meu amigo Keith Xavier de Herédia, português de origem goesa, residente em Bombaim, sabendo da minha viagem, mandou-me um documento precioso que aqui deixo para quem queira saber mais sobre as relações bilaterais Portugal-Camboja:

http://ki-media.blogspot.in/2008/12/history-of-cambodian-portuguese.html

 

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Entretanto, depois de várias visitas, eis-nos a caminho do «Jayavarman», o barco, para navegarmos ao longo do lago Tonlé Sap (para saber mais ver por exemplo em http://en.wikipedia.org/wiki/Tonl%C3%A9_Sap) que se liga por canal natural ao Mékong e que tem a característica sui generis de correr nos dois sentidos conforme a época do ano: na seca corre de norte para sul; na monção, com as cheias do grande rio, corre de sul para norte.

 

Como se vê, as originalidades cambojanas não são, portanto, apenas ao pequeno-almoço.

 

Mas há mais...

 

(continua)

 

Lisboa, 19 de Dezembro de 2014

 

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Henrique Salles da Fonseca

(no deck superior do «Jayavarman, ao vento no lago Tonlé Sap)

VIRAGENS DE HISTÓRIAS

 

Enviou-me o meu filho João um email sobre as mulheres afegãs dos anos 50 e sessenta , tempos da nossa ditadura, mulheres idênticas às ocidentais, com cursos superiores, bonitas e bem vestidas, com vestidos originais da moda afegã, mulheres que conviviam naturalmente com os homens afegãos. Mulheres actualmente de burca, mulheres e raparigas que deixaram de poder estudar, a guerra tudo devastou. E o mundo permite, o mundo não ajuda. Pelo contrário, a intervenção do mundo, tanta vez por interesse próprio, parece que provoca reacções de maior destruição, com os ódios acirrando-se por conta de uma religião islâmica que parece impor, provindos de um profeta, princípios de diferente interpretação, mas que se pretende fazer alastrar pelo mundo democraticamente receptivo. Também já em tempos me enviaram fotos de contrastes entre os tempos de outrora, numa universidade do Egipto, e os tempos de agora, de raparigas afastadas dos companheiros, em pose rígida e sem alegria, imposições de idênticas forças islâmicas. Lembro, desses anos sessenta ou anteriores, um casal famoso, o Xá da Pérsia e uma bela mulher de olhos verdes, Soraya, que teve de abdicar do marido e do trono por ser infértil, tendo-lhe sucedido Farah Diba, que trouxe filhos ao Xá. Eram ambas belas, o caso da imperatriz Soraya, longamente apontado na imprensa pela sua dor e beleza, o Xá com o seu ar de boa pessoa triste, desenvolvia o seu Irão num clima de modernização e riqueza, gerando, pelos vistos, oposições fortes no povo e seus orientadores de opinião. A verdade é que o Xá foi deposto, substituído por um Ayatollah Khomeini, de cara feroz que impôs novas regras. E mais guerras houve em que um estadista americano usou falsos pretextos divulgados como verdadeiros para despachar o presidente iraquiano Saddam Hussein. Uma jovem heroína paquistanesa recente quer que a difusão das luzes do conhecimento escolar seja propícia a todas as crianças do mundo e com isso obteve um prémio Nobel da Paz, depois de ter sido baleada por um representante da Al Qaeda. Entretanto, um povo judaico, que tanto sofreu numa guerra anterior, pela sordidez de um mentecapto facínora, vai singrando altivamente, com a inteligência de todos invejada. Histórias de interesses e fanatismos, que indignam as pessoas pacíficas que amam a vida e não entendem o requinte teatral dos assassinos jihadistas, estoirando com a vida dos sírios e de gente do ocidente em panorâmica de espectacular monstruosidade que corre o mundo..

Por cá, as nossas misérias de banqueiros falidos salvaguardando despudoradamente, na voz impassível e monocórdica e esperteza de rato, as fortunas e as reputações da própria família e as suas, numa atitude devotamente moral, sem referir os lesados que tinham depositado as suas fortunas no tal banco de reputação reconhecida. E muitos mais acusados de falcatruas abundam, não parando de crescer voluptuosamente, sempre em presunção de inocência.

E no meio de tanta sujeira, um artigo de Vasco Pulido Valente, mostrando a irrelevância do dia da Restauração, como dia sem dimensão na nossa história, que nos libertou de uma governação estrangeira, durante a qual perdemos terras e valores que necessariamente nos tornou mais empobrecidos. Não creio que Pulido Valente não acredite no patriotismo do povo português. Haverá os que afirmam desdenhosamente que a sua pátria é o mundo inteiro, aldeia global das suas passeatas ou das suas leituras de intelectuais superiores. Os cidadãos portugueses, na sua maioria, amam a sua terra, o seu país, a sua bandeira. Como qualquer outro povo. Mas, por uma questão de política de boa vizinhança, talvez seja melhor ignorar, em termos formais, esse dia. O povo, provocador por conta de chefes, deslizará pelas avenidas, tocando marcialmente e clamando contra a extinção do feriado. Sempre seria mais um, para o merecido descanso.

Leiamos Vasco Pulido Valente (Público,7/12)

Feriados

A conspiração do “1 de Dezembro”, como sempre apropriadamente lhe chamaram, foi um movimento de uma pequena parte da grande nobreza indígena para pôr no trono o duque de Bragança, de resto um potentado da península que a Espanha temia por razões dinásticas. A altura era favorável: o conde-duque de Olivares tinha pedido a Portugal algum dinheiro e uns tantos soldados, na Catalunha as coisas não corriam bem para Madrid e havia em Portugal um descontentamento difuso. Mas ninguém se lembrou de ver naquilo o renascimento da Pátria; pelo menos, durante mais de 15 anos. A “guerra da independência” consolidou os Braganças, sem ter nunca criado uma verdadeira “identidade nacional”. A importância que hoje o PS e o CDS resolveram dar ao episódio não se compreende.

Durante a Monarquia Constitucional o feriado que sobre todos comemorava o regime era o “24 de Julho” de 1833, dia em que as tropas do duque da Terceira atravessaram o Tejo e tomaram Lisboa a D. Miguel. Na segunda metade do século, ninguém se lembrava do “1 de Dezembro” e os críticos do regime de Ramalho Ortigão aos republicanos desprezavam e ridicularizavam a “Sociedade 1º de Dezembro” (que não sei se ainda existe), como centro de propaganda da corte e dos Braganças. Só os criados se metiam nessa fantasia, que o grosso do país letrado não levava a sério. Os republicanos, logicamente, não continuaram os festejos da dinastia (agora no exílio) e os monárquicos para se poupar a maçadas também não. O próprio Salazar, embora restaurasse o feriado, nunca fez um alarido à volta do caso e deixou a “Sociedade” agonizar no Rossio com a maior indiferença.

A República escolheu para seu feriado o “5 de Outubro”, que o terrorismo do regime não permitia que fosse uma data nacional. E a Ditadura inventou o “10 de Junho”, sem raízes, nem conotações políticas desagradáveis, para se tornar dona e senhora do maior símbolo da “Raça e do Império”. O bom povo nunca espontaneamente participou nesta aberração. O “25 de Abril” adoptou o “25 de Abril” para celebrar a vitória do MFA, e não tocou na série de feriados já estabelecidos; ou nos feriados da Igreja; ou sequer nos santinhos regionais, que muitas vezes se juntam e continuam por semanas. Claro que a trapalhada vigente precisava de uma reforma radical. Mas com certeza que não merece no meio da miséria de Portugal uma única palavra.

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Berta Brás

INDOCHINA – 13

 

 

Se 13 é o dia das aparições de Nossa Senhora em Fátima, não vejo razões para que a superstição ultrapasse a benesse com que todos pudemos ser por Ela iluminados. E esta iluminação ofusca certamente qualquer pesadelo que nos assoberbe. Eis a razão por que escolho esta oportunidade para referir o grande pesadelo cambojano, Pol Pot.

 

Quem visita o Camboja não pode ignorar essa chaga da Humanidade, carniceiro só equiparável a Hitler, Staline ou Mao Tsé Tung provocando danos tremendos na Nação cambojana que só no longo prazo poderão ser devidamente sarados.

 

Dele me lembrei ao pisar solo cambojano e a não entender o porquê duma burocracia a raiar o ridículo na passagem da fronteira no aeroporto de Siem Reap. Terão os cambojanos medo da própria sombra? É que, para além de preenchermos um formulário relativo ao Visto turístico (que poderia perfeitamente ter-nos sido entregue durante o voo para não estarmos a perder tempo na aerogare), tivemos que entregar os passaportes num guichet, ver o dito documento passar de mão em mão ao longo duma dúzia de funcionários alinhados por trás de um balcão onde viam, reviam e carimbavam a documentação para que no final dessa fila burocrática nos alinhássemos (mais ou menos ao molho) para que um último fileiro nos entregasse o documento devidamente visto, revisto e carimbado. E se não estivéssemos na primeira linha, lá se punha o cambojano aos gritos a chamar pelo nome do candidato à entrada no seu recatado país. E que pronúncia... Já visitei muitos países e nunca tinha deparado com tal aparato. Não é normal que depois disto tudo ainda tivéssemos que passar por mais um guichet em tudo igual aos dos outros países mostrando o passaporte e a cara para, então e só então, passarmos a fronteira. Repito: não é normal. Mas reconheço que não deve ser fácil ter-se sido governado por gente tão especial como Sihanouk e Pol Pot. Os traumas perduram.

 

O assassino Pol Pot era isso mesmo: um assassino.

 

Já vimos como ele nasceu politicamente ora por revolta contra ora pela mão do Rei Sihanouk ficando conhecido pelas piores razões, precisamente como o mandante do «genocídio cambojano». Entre 1975 e 1979 foram chacinadas cerca de 2 milhões de pessoas — algo como 25% da população cambojana naquela época — incluindo membros do Governo anterior (o de Lon Nol), funcionários públicos, militares, policias, professores, religiosos cristãos e muçulmanos e sobretudo todos aqueles que tivessem formação superior, nível de estudos que ele próprio não conseguira concluir. Com a quebra das produções agrícolas, estima-se em mais um milhão de vítimas pela fome.

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 O «trabalho» de Pol Pot

 

Em fuga na selva por pressão das forças invasoras vietnamitas, foi capturado por um dissidente do Khmer Vermelho mas em 16 de Abril de 1998 foi encontrado morto quando estava prestes a ser entregue a julgamento por um tribunal cambojano com assistência internacional patrocinada pela ONU.

Seguiu-se durante 10 anos um Governo de inspiração vietnamita composto por dissidentes cambojanos de formação comunista pró-russa mas em Outubro de 1991 a ONU passou a tutelar o processo político.

Hun Sen, o actual Primeiro Ministro, é um khmer vermelho arrependido que tem deixado ir a julgamento os seus antigos correligionários não arrependidos e está sucessivamente no cargo em resultado de eleições «livres» praticando uma politica de mercado inspirada no bem comum desde que este coincida com o seu e com o da sua «entourrage». E como ele é mestre a proteger o seu «negócio»!

E a minha pergunta é: - Como se poderá sair de um tal atoleiro político?

A minha resposta: - Depois de um longo período em que os cambojanos terão que continuar a lamber as feridas e a aturar os «donos daquele negócio» que se instalaram no poder. A menos que alguém por lá se inspire em Évora...

Lisboa, 18 de Dezembro de 2014

Henrique em Angjor Wat.JPG

Henrique Salles da Fonseca

(à entrada de Angkor Wat)

O RENASCER DE UMA (quase) LENDA

 

Devia, o calendário, marcar qualquer coisa como 1967 ou 8.

Um pequeno veleiro, o “ARGUS”, um yawl de carangueja, cheio de carácter, com um comprimento de 25’ 6” – 7,77 metros, 2,44 m. de boca e 1,10 m. de calado, com quilha fixa, foi mandado construir em Luanda pelo Ten. Cor. Jacinto Medina director da DTA, a antiga companhia aérea de Angola, e lançado à água em 1952.

Passeava-se orgulhoso por aquelas águas e ao vê-lo navegar levava-nos, ao tempo de meninos, a pensar nos piratas, nas ilhas do Caribe e dos mares do Sul, a sonhar!

Quando soube que iria ser vendido o meu coração deu um pulo: “o meu barco”! E foi.

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Um dia, um muito querido primo, como irmão, na altura comandante do navio “Vera Cruz”, José de Azeredo e Vasconcelos, na sua passagem em Luanda, foi, com o orgulhoso proprietário do veleiro, dar a sua “opinião”! Gostou. Mostrei-lhe os planos do barco, e pediu que lhos emprestasse.

Algum tempo depois, em mais outra passagem por Luanda, chamou-me a bordo – onde normalmente eu já ia para ou simplesmente bebermos um copo ou jantar – o navio quase vazio depois de ter despejado mais uns milhares de militares para a guerra colonial, porque tinha um presente-surpresa para mim!

O carpinteiro de bordo, um homem habilíssimo, tinha feito uma maqueta do “ARGUS”, com uma precisão e um carinho, admiráveis.

Montou o barco, à escala de 1/10, precisos, como se estivesse a construir um autêntico veleiro de mar. Vejam como fez o lançamento da quilha e cavernas:

 

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Ao ver aquela pequena maravilha fiquei sem palavras (com a autorização do comandante, claro, dei um dinheirinho ao artista – nem tenho ideia quanto terá sido!) e quando regressei a casa levava nos braços, com o cuidado de quem carrega um recém-nascido, aquela jóia linda, com dois beliches com colchões (!) na cabine, um pequeno abat jour na mesa, com uma lâmpada que se acendia, um luxo.

 

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Já lá vão mais de quarenta e cinco anos! Quase sempre esteve em lugar de destaque na nossa sala.

Mas a vida foi peregrina. Entretanto tive que ir para Moçambique três anos e meio, regresso a Angola, mais um ano, foge – foge mesmo – para o Brasil – primeiro no interior do Estado do Rio, depois São Paulo, a seguir uma estadia em Portugal, e finalmente estabilizado (?) no Rio de Janeiro desde 1995.

O “ARGUS”, muito frágil, sempre navegou nessas viagens, embalado, e como é de calcular foi sofrendo um trauma aqui, outro além, peças frágeis, como o cimo dos mastros, bujarrona e outras, deixou de caber na casa onde hoje vivemos e foi dado a um dos filhos.

Pouco dado à náutica e sem muito espaço para colocar a belezura, foi jogado numa caixa, num canto e o tempo se encarregou que o preservar-estragar.

Velas rasgadas, dois rombos no casco, brandais cortados para se poderem retirar os mastros, todos os “cabos” – escostas, adriças, carregadeiras, etc. – num bolo tão emaranhado que levou dois dias para separar, um monte de outros problemas, e etc.!

Faltavam ainda uma série de pequenas peças, algumas ínfimas, e tudo teve que ser refeito.

Foram quase três semanas de trabalho, dois pares de óculos, um em cima do outro, face à pistosguice do “restaurador”, e finalmente o “ARGUS” está pronto para novo lançamento... não à água mas à exposição.

Agora já está com os cabos arrumados no convés como mandam os velhos e bons marinheiros:

 

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O Nr. 29 do Club Naval de Luanda, irá qualquer dia lançar ferro, definitivamente, na sede deste clube, descansar na terra onde navegou imponente, e esperamos que viva ainda muitos e muitos anos. Está prometido, consta do meu testamento – verbal, que não tenho escrito –e oportunamente fará a última viagem, “triunfal”, para Angola.

Por enquanto fica um tempo aqui em casa, entre um quadro brasileiro e outro angolano, para eu olhando para ele gozar, enquanto deixo os sonhos me levarem para o tempo em que cruzávamos aquelas lindas águas da Baía de Luanda e do Mussulo, os filhos pequenos a adorarem os passeios, muitos amigos também, enfim parte da vida que o “ARGUS” guarda, não só para mim como para os primeiros donos.

E continua a envergar, no topo do mastro principal a flâmula do C.N.L.!

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Rio de Janeiro, 10-Dez-14

Francisco Gomes de Amorim

Francisco Gomes de Amorim

À PROCURA DO PAI NO UNIVERSO

 

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A Nave espacial Philae com a Sonda Rosetta “acometa” depois de dez Anos

 

A 13.10.2014 a nave Philae acometou, depois de dez anos de viagem, em Tschuri. O cometa desloca-se a grande velocidade, a uma distância de 5000 milhões de km da Terra.

O objectivo do projecto espacial é analisar a composição do núcleo do cometa, a temperatura, e a natureza do seu solo, para, deste modo, se conseguir informações sobre a origem do sistema solar.

A nave de desembarque Philae (1), como o nome indica, revela o esforço por decifrar o texto do universo, numa tentativa de descobrir a origem do cosmo e da vida.

Como pode a técnica do homem (brinquedo dele), por meio dela, descobrir Deus no seu brinquedo que é o Universo?

O projecto é arrojado; é como tentar encontrar o Espírito divino, no provisório do tempo (no corpo morto de Cristo). A intenção é útil e o projecto também, porque, para lá das diferentes velocidades a que andam as inteligências humanas, o facto reúne-nos a todos no encruzamento do espaço e do tempo, naquele entremeio/intervalo, onde começa o nevoeiro interstelar feito de mistério. Aqui, para lá de constelações e opiniões, encontramo-nos todos no início da mesma viagem.

Na experiência do universo, tal como na da ressurreição, o tempo pára, a vida flui, só se ouvindo o ecoar do divino por todo o universo - um eco no coração do Homem a repetir-se na eterna pergunta: Pai, onde estás?

Na repetição desse eco outros ecos se ouvem no receio de uma resposta órfã vinda da técnica para filhos órfãos, na sombra da vida… Os cientistas permanecem presos em campos magnéticos, em distâncias e em conjecturas que partem de um pressuposto próprio. De facto um deus que se pudesse atingir não seria Deus. O que está por trás de tudo isto e tudo puxa e ordena, não lhes interessa. Cada um, cada criatura encontra o que pretende, parece também isto ser uma lei da natureza. O homem moderno corre o perigo de se dissipar no útil e factual perdendo a capacidade de sentir o pulsar de um poder superior na natureza.

Entre Deus e a sua obra corre o fluido do nada calado, a deixar espaço para perguntas a que o acaso ajuda mas não responde. Onde se encontra o eterno tecelão, que, da sua fantasia, fia a vida com os fios duma ordem misteriosa e perturbadora, de tal modo ordenada que se perde a meta e o sentido?

O desamparo do Homem, na procura do Pai (das origens), gira na órbita entre dúvida e convicção. A decifração da vida precisa não só da luz fria da razão mas também do calor da fé. Doutro modo a vida gelaria ou seria reduzida a um pesadelo num palco obscuro que em vão tentaria coar o brilho do Sol.

Neste mundo tudo gira na procura de uma meta! No emaranhado dos movimentos, a fé gera asas que o ateu não tem. A viagem da sonda Rosetta, materializa a fé da ciência na procura dos sinais da vida, tal como a viagem da fé, na procura do sentido do sentido, tenta dar sentido ao sonho que a vida é.

Todos, no mesmo espaço, viajamos em diferentes velocidades e órbitas mas num sentido comum de um céu estrelado com as energias das leis da física, da moral e da razão, tudo alinhado no seguimento das pegadas do mistério no universo. Todos nós, indivíduos e culturas, estamos na nave Philae.

Cada época, cada cultura, cada pessoa tem o seu centro de gravidade – o seu Sol - em torno do qual giram sentimentos e pensamentos que determinam uma acção própria no decorrer do mesmo empreendimento de desenvolvimento e descoberta.

Philae perdeu as forças, esvaziou as baterias depois de dois dias. Resta-lhe esperar pela luz do Sol que lhe carregará as baterias para seguir a viagem da esperança.

Procuramos nos testemunhos da órbita do tempo o que se encontra fora dessa órbita. A procura é para o homem o que é para a sonda a velocidade da nave.

Na vivenda do mundo

A nave Philae

Com coragem vai

Em busca do Segredo

Na Sala de Parto

À procura do Pai!

 

António Justo.jpg

António da Cunha Duarte Justo

(1)  Pedra de Roseta é um fragmento, em três línguas, descoberto em 1799 no Egipto e que, juntamente com a descoberta de um outro fragmento, na ilha Philae, possibilitou a decifração dos hieróglifos egípcios.

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