Meu Caro Amigo Henrique Salles da Fonseca, 1 - A culpa é toda tua. É verdade. É mesmo. Xicuembo. Que gostei muito de ler e, lendo, meditando. No percurso rico e longo de muitos de nós. Que alguns, poucos, querem rasgar. Ainda agora, o ilustre vereador Fernandes da Câmara Municipal de Lisboa pretende arrasar (sim, arrasar), os jardins onde estejam os símbolos do nosso passado africano. O ilustre vereador não compreende que o passado, seja ele qual for, é para respeitar e estudar. Até para que outros erros não sejam cometidos. Mais uma vez.
A Ucrânia, o Iraque, a Líbia e a Síria, são ali ao virar da esquina. Ninguém reflete, nem estuda nada.
2 - E neste Agosto que hoje termina e porque a casa já merecia nova pintura, fiquei na minha área de influência geográfica, lendo. E muito. Assim voltei aos dois "calhamaços" do Doutor José Freire Antunes, Guerra de África(volumes I e II), com dezenas de depoimentos dos muitos "players" que a fizeram. São mais de mil páginas. Mas que se visitam e revisitam num instante, até para compreender o muito do que aconteceu em África.
3 - Depois, um livro de que gostei imenso, As Maçãs Azuis - GOA 1947-1961. Escrito pela Dra. Edila Gaitonde, ilustre açoriana que na década de 40 veio para o Continente onde tirou o Conservatório. E nos encontros e desencontros da vida, casa com o goês (hindu) Dr. Pundlik Gaitonde, médico-cirurgião formado pela Escola Médica de Pangim e pela Faculdade de Medicina de Lisboa. E que no dia a seguir ao seu casamento (muito contrariado pela família do Dr. Gaitonde, porque era a família que escolhia a noiva, já que eram brâmanes), foram à prisão de Peniche (1948) para confraternizar com vários elementos goeses que aí estavam presos pois queriam a independência para Goa. E todos perderam. Eles porque não tiveram a dita e nós porque fomos "corridos".
4 - E a expressão "corridos" não é minha, é do Embaixador Doutor Marcello Mathias. Que além de Embaixador em Paris, também foi Ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar e seu grande Amigo e Confidente. Salazar, um dia e no meio de uma conversa, pergunta como arranjar uma saída para o caso da Índia Portuguesa. Marcello Mathias responde: com um Referendo. E em que a pergunta seria "seor os goeses queriam estar com Portugal, ou se ficar com a Índia". Salazar ouve e questiona: e se a resposta é a do nosso afastamento?. Marcello Mathias responde: faremos como na praça de Mazagão desfilando os corpos militares portugueses com as bandeiras ondulando aos ventos. É preferível isto, do que sermos corridos, disse para finalizar o Embaixador. Salazar calou-se e nunca mais voltou a este assunto com o Doutor Marcello Mathias.
5 - Preocupações (muitas). As presidenciais estão também ao virar da esquina. Não voto em "fujões". Sejam eles da "gauche" ou da "droite". Feitios. Mas lembrei-me (e não devo ser o único) do Dr. Silva Peneda, do Conselho da Concertação Social. Acho que é pessoa equilibrada, e dialogando com facilidade com o Patronato e com o Sindicalismo. Será missão impossível? Ou tem possibilidades de andar?
Outras preocupações? Também as tenho. Mas não são para agora.
E já agora: o Alferes Ricciardi que esteve em Nampula connosco, é este do BESI ou é apenas um outro membro da família Espírito Santo?
Do que eu me lembro. Mas agora ando como o outro: estou com péssima memória. Não é que me lembro de tudo? Ou quase tudo. A pedir compreensão para texto tão longo. Forte abraço, José Augusto Fonseca
Há por aí quem diga que os bons portugueses emigram e que por cá só ficam os que não prestam.
Então, ocorre-me perguntar por que se emigra. Porque não se tem um modo de vida cá dentro que corresponda às expectativas.
E por que é que as expectativas excedem as condições internas e só se adaptam lá fora? Uma das razões é porque cá dentro estamos atulhados de licenciados em cursos que não servem para nada e lá fora esses licenciados em «gato por lebre» não se importam de lavar pratos ou desentupir esgotos enquanto cá dentro exigem o sábio estatuto de «Dr», «Mestre» ou até mesmo de «Doutor»; outra das razões é porque estamos atulhados de trolhas e esses faltam lá fora. E mais razões há...
E nós, os que cá ficámos, podemos ser considerados em várias categorias:
Os que encontrámos um modo de vida correspondente às nossas expectativas;
Os herdados e mandantes;
Os que andaram por fora e voltaram;
Os estrangeiros que tomaram Portugal como país de acolhimento;
Os inaptos, os gatunos e outros «artistas» que tais...
Ah! Já me ia esquecendo dos políticos que o leitor arrumará na categoria que melhor considerar aplicável, com excepção da dos estrangeiros, claro.
Portanto, antes de chegarmos aos últimos da tabela, os que mais denigrem o nome de Portugal, temos todos os anteriores e, dentre eles, muitos de grande valimento e seriedade.
É claro que a emigração poderia ser menor se se escolhesse a instrução em função das reais necessidades do mercado nacional de trabalho e se o empreendedorismo fosse mais incentivado em substituição do tradicional objectivo de «fazer funcionários».
Dos que andaram por fora e regressaram, muitos já vêm aposentados o mesmo acontecendo com tantos estrangeiros que escolheram Portugal para gozarem a reforma sem as agruras climáticas típicas dos seus países.
Mas o mais importante que nos cumpre reconhecer é que Portugal é a «casa natural» de TODOS os que falam português e, portanto, pode e deve ser um refúgio de toda a lusofonia. Venham todos pois o dia da plurinacionalidade lusófona chegará.
Logo, os que cá estamos não somos os maus porque os bons emigraram. Não, nós somos bons, maus e assim-assim. Ou não fôramos uma sociedade humana e não de espíritos divinos irrepreensíveis.
Sim, bem sabemos que vagueia por aí um ou outro pecadilho… Mas daí a dizer que isto é tudo uma choldra, vai uma galáxia de distância.
Lembro-me desta definição que me ficou da linguística, dos meus tempos de Coimbra, a respeito da etimologia de “prosa”: um discurso que segue direito, que vem do latim “prorsus”, contrariamente ao que se passa com “versus” - o étimo de verso - um discurso que retorna, que volta atrás (nos ritmos, nas rimas, nas aliterações, nas múltiplas repetições…).
Vem isto a propósito do livro – “A Casa Quieta” de Rodrigo Guedes de Carvalho, romance de estrutura circular, que se inicia, após os versos de NOVEMBRO (1º capítulo) de homenagem primeira evocativa - «…e foi quando o teu sorriso» - com a incompreensão enlouquecida do vazio deixado – no narrador inicial – Salvador - pela morte da mulher – Mariana – no 2º capítulo – OUTUBRO – estrutura que acaba em DEZEMBRO 2005, com a homenagem em verso, de saudade da sua Gioconda de “sorriso intransponível” que
Me faz o caminho só na tua direcção
Onde parece saber que esperas
Serena
Gioconda
Que vamos durar sem mesmo sabermos
Dadas as mãos as mãos dadas
Intransponíveis
Serão duas aos olhose são tudo o que temos
E são tudo
Entretanto, a perspectiva temporal – em espiral decrescente, relativamente à data da morte – ano 2005 da I Parte – abrangendo os meses anteriores, até Janeiro; em perspectiva mensal crescente nas partes restantes – II Parte, 1985 (JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO); III Parte, 1995 (Abril, Maio); IV, 2005 (JUNHO; JULHO; SETEMBRO; OUTUBRO; NOVEMBRO; DEZEMBRO), juntamente com os diferentes registos de atitudes, de personagens, de focalizações internas, - a do narrador principal, (Salvador), em evidência, a mistura de discursos, de diálogos e emoções, no jeito que Saramago introduzira com tanto vigor, em que os caracteres e os sentimentos de rejeição ou interesse e amizades se vão desenhando à medida dos momentos, momentos familiares, mais antigos, mais próximos, o clímax surgindo no desmaio da mulher nas escadas, na sarabanda dos telefonemas para Salvador, num momento de conferência de trabalho, juntamente com o aviso telefónico da recaída do irmão de Salvador, António, louco, que o frio pai nunca escutara, mas a quem apoiara financeiramente, e as interrogações e a psicanálise escondendo-se por todo um chorrilho de discursos, muitas vezes desarticulados e repetitivos, numa ânsia de originalidade verdadeiramente infernal, a que não falta o sentido de crítica social.
Uma história de vida, uma história de amor, Orfeu tangendo – inutilmente - na incompreensão desvairada do destino humano.
Um livro em prosa, um livro em verso, seguindo ora a direito, ora contorcendo-se, no clamor do sofrimento e da recordação, indiferente ao convencionalismo da ordem discursiva, no atropelo e desconexão do mundo íntimo, no atropelo e abandono, a espaços, da sintaxe e da pontuação, compensados noutros momentos por grande elegância de pensamento e expressão.
Por analogia de tema – o sofrimento de amor no homem, causado pelo abandono da mulher- por morte ou fuga –“A Casa Quieta” de Guedes de Carvalho, trouxe-me à memória o livro “Silêncio em Outubro” do dinamarquês Jens Christian Grøndahl, este tão simples, tão verdadeiro, tão expressivo das coisas banais da vida, como um extracto bancário, no caso de uma partida de fuga sem aviso, possibilitando o reconhecimento do percurso inicial da fugitiva. Transcrevo o primeiro parágrafo, que nos descreve algures de Lisboa, pelo narrador, e se referencia a partida de Astrid, com pretensa calma daquele, a que se segue o auto retrato que o desalento ditou. Com profunda agudeza, sem rebuscamentos que contrariariam a sinceridade da sua dor, uma elegância natural num discurso atento ao pormenor pinturesco e auto-análise psicológica de um saber reflectido, que se funda no absurdo da condição humana, condenada ao desconhecimento integral da mesma:
A Astrid na amurada, de costas para a cidade. O vento levanta-lhe o cabelo castanho como uma bandeira esfiapada. Está de óculos escuros e sorri. Há uma afinidade perfeita entre a cidade e o branco dos dentes dela nesta fotografia que tirei há sete anos, pela tarde, num dos pequenos cacilheiros do Tejo. Só à distância se percebe porque se chama “cidade branca” a Lisboa, quando as cores se misturam e as fachadas de azulejo se fundem em reflexos do sol; a luz baixa incide horizontalmente nas casas ao longe, que se erguem atrás umas das outras sobre o Terreiro do Paço, nas colinas do Bairro Alto e de Alfama, no outro lado do rio. Há um mês que partiu. Ainda não tive notícias dela. A única pista é o extracto do banco, que acusa os movimentos da nossa conta comum. Alugou um carro em Paris e usou o MasterCard na rota de Bordéus, San Sebastian, Santiago de Compostela, Porto e Coimbra. A mesma rota que seguimos naquele Outono. Levantou uma grande soma em Lisboa a dezassete de Outubro, e deixou de usar o cartão. Não sei por onde pára. Nem posso saber. Tenho quarenta e quatro anos, e nunca soube tão pouco. Quanto mais velho fico, menos sei. Quando era novo, julgava que a sabedoria cresceria com o tempo, dilatando-se constantemente como o universo, e que a parte crescente de certezas rejeitaria o correspondente montante reduzido das incertezas. Era de facto muito optimista. O tempo fez-me admitir que sei aproximadamente o mesmo, ou menos ainda do que sabia, sem as mesmas certezas de então. A minha dita experiência não é sinónima de qualquer sabedoria. É mais, como direi, uma espécie de caixa de ressonância, dentro da qual o pouco que sei soa oco e a pouco. Um crescente vazio à volta do meu pouco saber, quais sementes secas dentro de uma cabaça. A minha experiência é uma experiência de ignorância e do seu poço sem fundo; nunca saberei quanto me falta saber e quanto se deve apenas àquilo em que acreditei.
Mais monárquico que o Rei, o meu amigo António Teixeira Homem empresta-me com frequência livros da sua biblioteca.
Desta vez emprestou-me as “Memórias do Sexto Marquês de Lavradio” numa edição [Edições Ática] de Maio de 1947.
Uma perfeita maravilha em que nos vemos metidos na História contada por quem desempenhou o cargo de Secretário Particular do Rei D. Manuel II enquanto no trono e, depois, no exílio.
Competia-lhe levar a despacho toda a correspondência dirigida ao Rei com excepção das cartas dos Ministros pois que lhe estava vedado (a ele, o Secretário Particular) qualquer envolvimento na política mas o Rei acabava sempre por lhe pedir opiniões sobre essa área tão sensível.
D. José Maria do Espírito Santo de Almeida Correia de Sá, sexto Marquês de Lavradio
É com veneração que o Autor, oficial da Marinha, se refere a D. Carlos e ao Príncipe Real D. Luís Filipe com quem conviveu muito, não só pelo facto de ter honra de Parente mas sobretudo por ter pertencido à guarnição do «Yaght Amélia».
Eis o género de subtilezas com que nos ambientes estilizados se tecem lealdades e, sobretudo, amizades.
Uma cárie bem evidente ou a falta de um dente dão um ar horrível a qualquer pessoa. A saúde oral pode ter uma influência muito grande na boa disposição e, em contraponto, uma boca com problemas não faz ninguém feliz.
Em boa hora Portugal se encheu de dentistas e os portugueses deixaram de ter motivos para se desleixarem com a beleza do sorriso. É pelo radioso sorriso estampado na cara de toda gente que se vê como os portugueses andam satisfeitos.
No que me diz respeito, tenho a informar que herdei maus dentes e que desde muito novo cirando pelos dentistas.
Estava eu certa vez a preparar uma reunião profissional muito importante para o dia seguinte quando um dente da frente – daqueles que já tinha visto muito melhores dias e pedia recauchutagem há muito tempo – não resiste a uma dentada mais voluntariosa e se parte por completo. E na véspera de uma reunião com gente que não me conhecia de lado nenhum, ali estava eu com um buraco negro a denunciar desmazelo bocal.
E vá de procurar quem de imediato me repusesse o aspecto. Encontrado, lá fui ao consultório e, como é habitual, pediram-me a identificação com nome, morada, telefones e profissão. E logo ali na recepção me começa a empregada a encher de salamaleques com “Senhor Doutor para a direita e Senhor Doutor para a esquerda” e eu a achar que aquilo trazia água no bico. Quando entrei para o gabinete do médico logo ele me manda expor a mazela e eis que profere uma frase que me tem saído cara: - Oh Senhor Doutor. O Senhor tem que investir na sua boca!
O fulano começa a trabalhar e eu sem perguntar o que ele estava a fazer pois tinha-lhe encomendado um serviço – a reposição do aspecto ex-ante quebra do dente – e entendi que estava a ser executado o conveniente. Só que a certo momento senti qualquer coisa que não era habitual e eis que dou comigo sem os quatro dentes de cima, ali bem ao meio da entrada. Não gostei, não entrei em pânico mas mostrei o meu evidente desagrado. Perguntei-lhe o que estava a fazer e ele teve o desplante de dizer que me estava a tratar do aspecto. Que eu concordara com a necessidade de investir na minha boca.
Mas é claro, eu tinha-me esquecido de que “quem cala consente” e, estando eu de boca aberta e sem proferir palavra, tive o meu silêncio como aprovação do projectado investimento. Só que o projecto era dele e não meu...
Zangado, ameacei processá-lo judicialmente e o fulano vá de me resolver o meu problema do dia seguinte colando uns dentes postiços na caverna que me abrira. Só que naquela época eu ainda fumava e tossi quando cheguei ao passeio da rua. É claro que logo ali me saltaram os dentes para a calçada. Dei meia-volta para ele mos colar de novo e lá voltei para a rua com o maior cuidado para seguir tudo em conveniência até ao dia seguinte.
Passada a reunião comigo a falar sem grande exuberância para ter a certeza de que a dentadura não saltava para a plateia, fui acumulando mau feitio contra o tal dentista “investidor”. Já sem pressas, encontrei outro que me tirou os moldes e me preveniu que teria que andar com os provisórios postos pelo “investidor” durante alguns dias para cicatrização completa da caverna mas que depois ia ficar com uma solução definitiva.
Assim foi a normalidade retomando conta da minha vida mas o mau feitio entretanto criado não se desvaneceu rapidamente.
No dia seguinte ia eu de carro quando um táxi apitou a trás de mim num cruzamento. Perguntado o que queria, o taxista apitou novamente a querer desafiar-me e não hesitei: parei o carro à frente do táxi, saí de trás do volante e fui direito a ele para lhe fazer e acontecer quando... me saltaram os dentes para o meio da rua. Ah que situação mais infeliz! Senti-me nu na praça pública.
Apanhei a dentadura do meio da estrada e meti-me no carro sem mais tugir. Entrada de leão, saída de sendeiro.
O taxista ainda hoje se deve rir daquele desdentado que fez figura de parvo na via pública, mesmo em frente do portão da residência oficial do Primeiro Ministro de Portugal.
Ele aí vem. Ligeiro, agitado, caprichoso, vão. Sem densidade e sem espessura. Sem raízes e sem passado. Nasceu hoje. Produto de uma sociedade sem pai e sem mãe, de uma sociedade espantosamente tumultuária e espantosamente célere no seu curso declivoso, o destino desse homem parece flutuar num momento e num momento sumir-se. Apareceu e desapareceu, embora a sua existência venha a ter mais de oitenta anos.
O homem-espuma sucede ao homem-máquina, ao homo mechanicus, de que fala Lewis Mumford. O homo mechanicus é um conquistador por natureza. Nenhum Alexandre, nenhum César, nenhum Tamerlão possui semelhante império. Nem de longe, na terra, no ar e no mar, esse império vastíssimo tende a alargar-se a tudo, a transformar tudo, a dominar tudo e absolutamente tudo. O homo mechanicus é o homem da ruptura. Da ruptura do equilíbrio entre ele e o seu meio (natural); entre ele e o outro (ou os outros); entre ele e ele; angústia, ansiedade, insatisfação, inquietude contínua, morbidez subjectiva, difícil, por vezes, de ser verificada clinicamente, mentalmente excessivo – irrompe mesmo nas próprias disciplinas científicas – sentimento de solidão até aos ossos. O homo mechanicus é o homo cyclopicus, género abarcando as três espécies que os mitógrafos gregos descrevem. À semelhança dos Ciclopes, ele sofre de gigantismo, à semelhança dos Ciclopes, ele tem uma só vista na testa, muito grande, muito fixa e muito profundamente cavada que só lhe permite ver num sentido – de frente – cortando-lhe todas as restantes perspectiva; à semelhança dos Ciclopes, ele possui, no prolongamento, mediato ou imediato do próprio corpo, um poder, uma força e uma energia que excedem tudo aquilo que a fantasia mais fecunda e mais ousada pôde imaginar ao longo de milénios da história humana.
[Salva-o o Homo Misericors, verdadeiro hino à misericórdia que é uma] constelação formada pela ternura, a bondade, a paciência, o respeito, a servicialidade, a compaixão, a reconciliação, a longaminidade, a indulgência – não demissiva da exigência – a atenção ao outro, nas suas dimensões do outro, a vontade de o aceitar, de o compreender, de o escutar ou, porventura mesmo, de o ajudar a libertar-se, de ir ao seu encontro, sobretudo se a sua situação é dolorosa, complicada e difícil.
A misericórdia não é sinónimo nem de pietismo privatista, nem de sentimento romântico, efusivo de mares de lágrimas sem sentido e sem motivo, nem paternalismo, materialismo e fraternalismo platónico ou platonizante. [A misericórdia] é um olhar que vivifica e não mata, salva e não condena, ergue e não deprime. É um impulso para agir sem cumplicidade e para reunir sem massificar. É uma vontade de sair de si,, da prisão do próprio ‘eu’, para transformar o mundo e se transformar a si mesmo em permanente e incansável reciprocidade.
É pela misericórdia que se salvam as relações de pessoa a pessoa, sobretudo quando essas relações, por este ou por aquele motivo, têm de ser longas, complexas, triturantes: no parentesco, na vizinhança, na situação profissional, no mais largo espaço social. É pela misericórdia que os grupos não se funcionalizam, não se homogeneizam e não se dissolvem. É pela misericórdia que a política não degenera em maquiavelismo de príncipe, individual ou colectivo. É pela misericórdia que inveteradas inimizades cessam, convertendo-se, porventura, no seu contrário. É pela misericórdia que diuturnos ressentimentos abrandam, lívidas invejas desaparecem, passos vacilantes se tornam firmes. É pela misericórdia que se abre o coração ao estrangeiro, se olha o insólito sem animosidade, como princípio, se encaram hábitos alheios e alheios sistemas de referência, sem atitudes condenatórias e sem julgamentos sumários. É pela misericórdia que se realiza a melhor apreensão e compreensão do mundo e da vida: a apreensão e compreensão dos místicos. (…)
A misericórdia é a grande via de acesso à transcendência.
Manuel Antunes, SJ
In «Cristianismo e solidariedade: a utopia da misericórdia», José Eduardo Franco, BROTÉRIA, Julho de 2014, pág. 45 e seg.