O "acordo" não serve para unificar, nem para simplificar; nem sequer serve para os fins políticos internacionais que António Sartini e outros como ele pretendem.
Em entrevista publicada na sexta-feira, dia 13 de Junho, neste jornal, o director do Museu da Língua Portuguesa de São Paulo, António Sartini, declarou:
"Acho portanto muito justo que esta língua [portuguesa] se torne oficial nos organismos internacionais. É lógico que esse processo sempre gera descontentamentos [devido ao acordo ortográfico]. Mas para que ela seja oficial é preciso que seja coesa, pelo menos na sua forma culta, normativa. Ela não se tornou oficial até hoje porque há uma forma de escrever no Brasil, outra em Portugal... Para chegarmos a uma forma única, alguém tem de abrir mão de alguma coisa – e isso deixa as pessoas desconfortáveis".
Em virtude destas declarações, graves pelas responsabilidades linguísticas e pedagógicas de quem as proferiu, vimos chamar a atenção para os seguintes factos objectivos:
1. A língua inglesa possui mais do que uma forma de escrever, com diferenças sensíveis entre cada uma (por exemplo, entre a norma adoptada nos EUA e a adoptada no Reino Unido), e isso não a impede de ser a língua mais divulgada no mundo, língua oficial de quase todos os organismos internacionais.
2. O "acordo ortográfico" que António Sartini refere na entrevista, como está cientificamente comprovado, leva ao AUMENTO das divergências entre as ortografias de Brasil e Portugal. Antes do "acordo", escrevia-se recepção e detectar nos dois países. Depois do "acordo", nasceram novas palavras em Portugal, receção e detetar, criando uma divergência ortográfica onde existia convergência. Isto sucede em centenas de casos. Logo, o dito "acordo" não somente não contribui em nada para "chegarmos a uma forma única", como possui exactamente o efeito oposto.
3. Os organismos internacionais, ao contrário do que sugere António Sartini, não ficam a ganhar rigorosamente nada com o "acordo". Este não supera, nem sequer reduz, as divergências ortográficas antigas entre as variantes brasileira e portuguesa. Basta pensar na ONU e na OMS, por exemplo. Com ou sem este "acordo", continuará a ter de decidir-se entre República Checa (pt)/ República Tcheca (br), Islão (pt) / Islã (br), Madrid (pt)/ Madri (br), Moscovo (pt)/ Moscou (br), SIDA (pt)/ AIDS (br), etc. Qual a versão a escolher? Não há "forma única" possível na ortografia da língua portuguesa. O "acordo", precisamente onde o director do Museu da Língua Portuguesa Sartini afirma ser mais necessário, continua a ser um des-acordo.
4. As pessoas que se sentem "desconfortáveis" com o mesmo "acordo ortográfico" não se sentem assim por terem de "abrir mão de alguma coisa". É a verificação das falhas descomunais na sustentação linguística deste "acordo ortográfico", bem como a verificação dos efeitos desastrosos que o "acordo" está a provocar no ensino-aprendizagem, que tem levado à recusa deste por grande parte dos sectores mais ilustrados de Portugal e Brasil. O "acordo" tem criado as maiores confusões em crianças e adultos, tem levado a situações de perda absoluta de referenciais históricos, prosódicos e etimológicos da Língua, e nem sequer conseguiu criar correctores ortográficos para computador que sejam coerentes com ele e entre si. Maior desacordo do que aquele obtido com este "acordo" é difícil, senão impossível, de imaginar.
Noutro ponto da entrevista, António Sartini afirma que "essa reforma [ortográfica] vai oficializar alguma coisa que na prática já vinha existindo. Interessa-nos muito mais essa evolução natural, essa prática do que a cristalização trazida por uma reforma ou um acordo". Na verdade, o actual "acordo ortográfico" não reflecte qualquer evolução natural da língua. Ele foi antes orquestrado por um número muito reduzido de pessoas, em circunstâncias verdadeiramente penosas, para não dizer fraudulentas. Para informações sobre o processo levado a cabo no Brasil, recomendamos a audição da entrevista ao Prof. Sérgio de Carvalho Pachá, ex-lexicógrafo-chefe da Academia Brasileira de Letras e testemunha do processo, cuja ligação segue aqui: http://www.youtube.com/watch?v=-_wIluG3yRs
O "acordo" não serve para unificar, nem para simplificar; nem sequer serve para os fins políticos internacionais que António Sartini e outros como ele pretendem. Pelo contrário: acaba por ser prejudicial em todos esses aspectos. A conclusão só pode ser que o dito "acordo ortográfico" é um péssimo serviço criado aos países e às pessoas que falam e escrevem a língua portuguesa.
Encontro-a na Revista 2 do Público, de 8/6, escrita por Raquel Ribeiro, que se apresenta como professora de literatura moçambicana em Oxford, para iniciar a sua entrevista ao professor inglês, Thomas E. Earle, professor de Estudos Portugueses na mesma Universidade. Uma entrevista que desliza com simplicidade e entusiasmo, num prazer de realização para o professor excelente, de profundo encanto para o leitor, que o vai conhecendo – como estudante cá, como estudioso de uma literatura que a própria estrutura da língua portuguesa fez escolher, e a quem Portugal deve excelentes estudos sobre escritores portugueses renascentistas – tal como já devera a Carolina Michaelis de Vasconcelos, investigadora alemã da literatura portuguesa.
Entre as curiosidades de uma entrevista que subentende crítica, no confronto, negativo para nós, com os ingleses – no que concerne a pedagogias de ensino, a dimensão participativa dos estudantes, a políticas de Salazar, a critérios de ensino da nossa literatura, o que surpreendeu mais foi a sua escolha da língua portuguesa pela rebeldia relativamente ao latim, certamente que na simplificação consonântica (os ph reduzidos a f, por exemplo, entre tantas anomalias mesmo antes do novo AO), mas sobretudo a flexão verbal do infinitivo pessoal, inexistente nas outras línguas provenientes do latim. (No que se refere a flexão verbal, contudo, julgo que a língua inglesa superou todas as do sul, no seu desvio da língua latina, pela redução da flexão a uma ou duas formas em cada tempo verbal).
Quanto à metodologia de ensino da literatura portuguesa, eu também a vivi, na progressão da sua temporalidade, abarcando os vários séculos, os escritores sendo forçosamente truncados na dimensão de cada um. E todavia, quanto prazer foi sentido com esses retalhos literários, que implicavam conhecimentos e sensibilidades interpretativas, com alunos provenientes de camadas sociais e culturais diversas, que exigiam extenuante aplicação do professor! Um estudo centrado num escritor ou num século, apenas, limitaria o conhecimento de uma literatura que, na sua especificidade, contém valores de universalidade que nos enchem de orgulho, embora seja mundialmente pouco conhecida, o desmazelo na investigação cultural sendo igualmente uma das nossas especificidades, que tem a ver com sectores económicos e educativos, assentes como crosta no nosso encardimento social. Fernão Mendes Pinto também passava nesses estudos diacrónicos, um ou outro texto das suas extraordinárias aventuras, geralmente confinada à da introdução das espingardas no Japão, mas que poderíamos complementar com a leitura de trechos da colecção “Textos Literários” – “Peregrinação” (1963), com selecção, prefácio e notas de Rodrigues Lapa, ou, se quiséssemos ler a obra inteira, na edição Sá da Costa, prefaciada por António José Saraiva (1961). Uma nova edição do jornal EXPRESSO, com o apoio da EDP, sairia em 2004 em 9 livros ilustrados, dirigida por José António Saraiva, apoiada na edição de seu pai, António José Saraiva. (Outros patrocinadores houvesse, mesmo sem tanta excelência iconográfica, para outras obras preciosas do nosso espólio literário!).
Mas o que prevaleceu, nesta leitura, que me fez reviver momentos de grato prazer, foi a história recontada na excelente entrevista de Raquel Ribeiro, que me encheu de gratidão por um estudioso benemérito da língua e literatura portuguesas, que soube reconhecer tanto do bom que temos, apesar do muito que não temos.
«O BRITÂNICO QUE QUERIA LIBERTAR CAMÕES»
Durante anos, foi o aluno solitário de Português em Oxford. Depois, o único professor. Mas foi essa “solidão” que transformou Tom Earle num dos mais dedicados defensores dos Estudos Portugueses no Reino Unido, durante mais de 50 anos. A Revista 2 falou com ele e percebeu por que razão “infinitivo pessoal” é a declinação rebelde do britânico que se apaixonou pela língua portuguesa por causa da gramática.
Cheguei a Oxford pela primeira vez, em 2011, para leccionar Literatura Moçambicana, mas não fazia ideia sobre o que era um tutorial e como conduzir essa espécie de aula com apenas um ou dois alunos. Aconselharam-me a assistir a um sobre Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, com o experiente professor Thomas F. Earle, decano dos Estudos Portugueses no Reino Unido, especialista em Literatura Renascentista.
Ao receio de ser intrusa num momento quase íntimo entre professor e alunos, sentada, à parte, observando, tirando notas, seguiu-se o espanto, quase estupefacção, ouvindo aqueles miúdos de 19 anos entusiasmados com as viagens de Mendes Pinto, um texto do século XVI que eles leram na íntegra quando nós, em Portugal, lêramos apenas partes, das quais nem nos lembrávamos.
Esta nota pretende esclarecer o que há de especial num professor amado pelos seus colegas e alunos ao longo de 50 anos
dedicados ao estudo e ao ensino de cultura e literatura portuguesas em Oxford. Esse encantamento não existe apenas do lado de lá da aula — ele vem do professor, apaixonado pela língua e por Portugal.
Não surpreende, então, que Tom Earle, 67 anos, reformado desde 2013, afirme à Revista 2:
"Lamento dizê-lo, mas um professor que venha de Oxford e chegue a uma universidade portuguesa para dar aulas fica muito desapontado com a reacção dos estudantes: é que muito raramente fazem perguntas!” Essa é uma das diferenças no ensino lá e cá: “Em Portugal, há esta ideia de que o aluno é uma espécie de recipiente vazio onde o professor despeja informação. É economicamente mais barato. É muito fácil dar uma aula, os alunos tiram notas e depois repetem tudo no exame. A educação britânica não é assim: a intenção é saber retirar do aluno o que ele ou ela tem para dar.” Daí a importância do diálogo, de que o tutorial é exemplo: “O objectivo do professor é instigar uma resposta pessoal no aluno. O professor faz perguntas e o aluno responde. O professor tenta, contudo, fazer perguntas que estimulem o aluno a reagir de uma forma informada, original, mas sempre pessoal.”
Se hoje Oxford é uma universidade onde o estudo de Português está a crescer consideravelmente (como em todo o Reino Unido, aliás), não era assim quando Earle começou, em 1964. Foi um aprendiz isolado, único aluno durante todo o curso e, depois, o único professor, antes de o departamento crescer — nos últimos quatro anos, as turmas passaram de dez alunos para 17, como acontecerá no ano lectivo de 2014-2015, um número recorde.
Nos anos 1960, ter uma formação clássica significava estudar Latim e Grego, “não havia mais nada”. Earle estava “ansioso por estudar outra língua, mais moderna: o Espanhol podia ser um escape, mas naquela altura toda a gente via o Espanhol como uma língua que nenhuma pessoa inteligente deveria estudar”, ri. Um professor que estudara Francês e Português, precisamente em Oxford, aconselhou-o a aprender Português. “Hoje admito que foi uma escolha muito acertada e decisiva na minha carreira: nunca tive muita competição, porque não havia outros estudantes!” Português era uma língua que ninguém queria aprender.
Eu estava maravilhado com os portugueses: eles ousaram inventar um tempo verbal que não estava no Latim.” “Infinitivo pessoal” era “uma espécie de rebelião da língua; foi essa pequena rebeldia que me levou a estudar Português
Chegou a Portugal em 1964. “Foi extremamente interessante”, diz. O país, as pessoas, a comida, o clima? Nada disso: “Interessante de um ponto de vista gramatical”, explica, revelando-se um professor apaixonado pela sua “musa”, a língua portuguesa: “O meu treino em Latim e Grego era muito rigoroso, muito rígido. Era muito difícil imaginar línguas modernas que conseguissem sair da rigidez sintáctica e gramatical do Latim. Lembro-me de ficar totalmente surpreendido e fascinado por a língua portuguesa ter uma coisa que se chamava ‘infinitivo pessoal’.”
Revisão da matéria: infinitivo pessoal, forma inflexionada de um verbo no infinitivo. Forma-se a partir do próprio infinitivo, com a adição do sufixo. Exemplo: para eu fazer, para tu fazeres, para nós fazermos. “O Latim tinha este prestígio extraordinário durante muitos séculos. Não podia haver derivações extravagantes à língua e tudo o que já não fosse Latim seria uma derivação. Em Latim, o infinitivo não declina. Eu estava maravilhado com os portugueses: eles ousaram inventar um tempo verbal que não estava no Latim.” “Infinitivo pessoal” era “uma espécie de rebelião da língua; foi essa pequena rebeldia que me levou a estudar Português”.
O jovem Earle chegou a Lisboa, a um “lar universtiário só de rapazes”, na Rua Nova de São Mamede, ao Rato. “Aquela introdução a Portugal foi excelente, porque vinha de um colégio privado em Inglaterra, uma escola muito tradicional, muito institucionalizada. O lar não era muito diferente da escola, mas a atmosfera era muito melhor. Claro, eu quase não falava português, mas os rapazes eram simpáticos. E as refeições excelentes!”, conta. Esta era a grande diferença: “Estes jovens sentavam-se a horas concretas para o pequeno-almoço, almoço e jantar e conversavam” — o que não acontecia nos silenciosos e sóbrios colégios britânicos. “E bebíamos sempre vinho. Parece que na época o bastonário da Ordem dos Médicos tinha recomendado tomar 2dl de vinho tinto a cada refeição”, conta Earle, rindo. “As garrafas estavam sempre disponíveis, excepto ao pequeno-almoço.”
Diz que era “inocente e muito pouco politizado”, mas apercebeu-se, ao viajar por Espanha e Portugal, de como as ditaduras impunham um ambiente opressor nos dois países. A questão da Guerra Colonial foi a que mais o impressionou: “Muitos daqueles rapazes estavam à espera de ir para a tropa. Podiam terminar os estudos e fazer depois o serviço militar, mas já naquela altura me chocava que após uma licenciatura de cinco anos, aos 23 anos, eles ainda teriam de fazer mais quatro de tropa. Isso queria dizer que antes dos 30 não podiam ser adultos livres. Impressionou-me muito.”
Não se pense, contudo, que os tentáculos do Estado Novo não chegavam a Oxford. Começando a leccionar imediatamente após concluir o curso, Earle fazia, ao mesmo tempo, o doutoramento no King’s College, em Londres, a mais antiga Cátedra de Estudos Portugueses no Reino Unido (aberta desde 1919), sob orientação de Luís de Sousa Rebelo. E conhece Hélder Macedo, então aluno no King’s. Apesar de o ensino de Português em Oxford nunca ter sofrido interrupções desde os anos 1930, quando Earle começa a leccionar, em 1968, dá-se um conflito diplomático entre a universidade e o Estado português. Vários alunos portugueses em Oxford queixaram-se ao vice-chanceler de que os Leitores enviados pela Junta Nacional de Educação e Saúde não eram realmente professores de Português, “mas agentes da PIDE, que espiavam os portugueses que aqui estudavam”, explica Earle. “Esse problema nunca se pôs no King’s”, conta Hélder Macedo à Revista 2. Nos anos 1960, o director da cátedra do King’s, Charles Boxer, “disse que não queria Leitores de Portugal, precisamente por causa das interferências políticas. Só depois do 25 de Abril é que tivemos Leitores no King’s, havia vários candidatos e eu escolhia quem queria no departamento”, diz Macedo.
Para Oxford, vieram novos Leitores depois dos protestos e em 1969 chegou Manuel Lourenço, “um excelente Leitor, tão, mas tão longe de ser um agente pidesco”, pai do escritor e classicista Frederico Lourenço. Desde então, por Oxford (e também pelo King’s), passaram ilustres nomes da literatura portuguesa, como Maria Velho da Costa, José Cardoso Pires, Gastão Cruz, em Londres, ou Luís Miguel Nava, em Oxford. Numa edição especial da revista de poesia Relâmpago, dedicada aos dez anos da morte de Nava (em Bruxelas em 1995), lia-se, num testemunho do seu amigo Andrew Benson, sobre os tempos do poeta em Oxford: “O Luís Miguel nunca se adaptou muito bem à Inglaterra — o clima húmido de Oxford, a (naquele tempo) falta de cafés ou bares que fechassem tarde, os excêntricos costumes e os hábitos culinários britânicos, as singularidades da tradição de Oxford, os longos e escuros invernos, a política metida numa camisa de forças, o aparente conservadorismo puritano, que mascara uma suposta hipocrisia, as insondáveis e impronunciáveis subtilezas da língua inglesa.” Páginas adiante, uma foto de grupo: Gastão Cruz, Luís Miguel Nava, Maria Lúcia Lepecki e Tom Earle, numa visita especial de Eugénio de Andrade.
Havia uma certa solidão em Oxford, sempre ambivalente entre pertencer ou ser-se um outsider. Mas foi também essa “solidão” que fortaleceu Earle, primeiro como aluno, depois como professor. “Tive muito trabalho, mas que me deu um background incrível. Hoje a literatura portuguesa faz todo o sentido para mim”, explica. Teve de ler tudo, desde a fundação do país até “aos autores que estavam na moda nos anos 60 e 70”: os neo-realistas, Alves Redol, Carlos de Oliveira, Fernando Namora. Para um renascentista, entusiasmado com a poesia de Sá de Miranda (tema do seu doutoramento), tudo era novo. “Isto mostra bem como, por vezes, não podemos planear as nossas vidas: gostei de ir a Portugal, de aprender português, e confesso que gostei de ser a única pessoa a fazê-lo. De certa maneira, isso deu-me algum prestígio.”
Nos anos 1990, abriu em Oxford a primeira Cátedra de Estudos Portugueses, intitulada rei D. João II.O rei do Renascimento e a área de estudos de Earle é mera coincidência — hoje, o lugar é do professor Phillip Rothwell, especialista em Literatura Lusófona. “Andávamos atarefados, a tentar conseguir financiamento para os Estudos Portugueses”, conta Earle. Na altura, Fernando Abecassis, engenheiro que fizera o doutoramento em Oxford, “ajudou-nos a estabelecer contactos e arranjar mecenas”. Como não havia um significativo, “perguntei ao senhor engenheiro que nome é que ele queria para a cátedra”. Ele escolheu Rei D. João II, que era “o seu rei favorito”. “Foi por acaso: podia ter-se chamado Espírito Santo ou Stanley Ho, se eles tivessem doado dinheiro”, graceja Earle.
O mais jovem estudante de doutoramento de Earle é Simon Park, 25 anos.Ele está do “outro lado” do fio que une estes 50 anos: “Perguntaram-me na entrevista para Oxford por que queria estudar Português. E apercebi-me de que esta língua deveria ser uma espécie de tesouro porque, excepto de Saramago e de Paulo Coelho, nunca tinha ouvido falar de mais nenhum autor, não se encontravam autores portugueses nas livrarias britânicas”, conta Park. “Senti que deveria haver uma quantidade enorme de literatura que ainda ninguém tinha ‘descoberto’ ou lido.” É essa a premissa de Tom Earle no seu livro sobre a poesia de Sá de Miranda: como falar de um assunto sobre o qual ninguém sabe nada no Reino Unido, numa língua que quase ninguém estudou? Parece que, 50 anos depois, o mito da língua misteriosa ainda se mantém, ainda que as coisas hoje estejam a mudar.
A essa mudança também não é alheio o trabalho de Earle, incansável nos estudos renascentistas. José Cardoso Bernardes, professor da Universidade de Coimbra, começou por conhecer Earle, de quem hoje é amigo, “de livro”, a partir do trabalho sobre Sá de Miranda: “Li esse livro com muito agrado, sentindo-me atraído, desde logo, por algumas características preciosas: tratava-se de uma tese fundamentada e clara, permitindo-nos concordar ou discordar. Nem sempre é assim nos estudos literários”, diz Bernardes. A obra de Earle, continua, “impressiona, desde logo, pela quantidade” e depois pela variedade “das edições aos trabalhos de crítica e de história literária”. Mas impressiona também “pela imprevisibilidade ou pelo não alinhamento académico de alguns temas”, diz Bernardes, que destaca o inefável trabalho de editor de Earle: “Se não fosse ele, não teríamos ainda hoje uma edição fiável da obra de António Ferreira ou das Comédias de Sá de Miranda.”
O objectivo de Earle foi sempre fazer brilhar os poetas, “trazer a poesia à superfície”, para ser lida, desfrutada. Quando se trata de textos renascentistas, é importante o processo de organizar, não só de publicar os textos, mas fixá-los, “traduzi-los” de maneira a ser compreensível para o leitor contemporâneo.Em Portugal, essa tarefa é quase inglória, diz Earle, que publicou edições críticas de Damião de Góis ou António Ferreira: “O que precisamos é de antologias poéticas. O ideal era que cada autor tivesse várias edições, todas elas diferentes, para um mercado diferente.” Isto é: edições anotadas para estudantes, comentários críticos para académicos e de bolso, acessíveis ao leitor comum. “Há 50 anos, entrava-se numa livraria em Portugal e podiam-se comprar livros de Sá de Miranda, de Camões. Agora não.” Continua: “É deprimente. Em Portugal, muitos alunos lêem clássicos em fotocópias! Ou então compram a edição fac-similada de luxo da poesia de Sá de Miranda e andam com o tijolo pelas aulas em Coimbra.”
Algo de errado se passou com a literatura portuguesa, diz Earle. Claro, está a acontecer no mundo inteiro, as pessoas lêem cada vez menos, mas há “conquistas da Primeira República” em Portugal, “muitas continuadas pelo Estado Novo, como a fixação de um cânone literário que produzia para cada movimento literário um autor português seu equivalente”, que se estão a perder. A literatura “era vista como um tesouro nacional, e mesmo que o Estado Novo não tivesse de facto feito o melhor uso dele, pelo menos ele estava ali, disponível”. Hoje, o ensino de literatura no secundário está reduzido “a um número insignificante de escritores: uma peça de Gil Vicente — em Oxford, os alunos lêem mais de dez peças de Gil Vicente —, um bocadinho de Lusíadas, um sermão do Padre António Vieira, e no século XIX, Camilo e Eça”. Pouco mais.
A luta de Earle pela literatura portuguesa, diz Bernardes, “é muito positiva e esperançosa, bem mais positiva do que aquela que parece existir em alguns académicos portugueses”. Talvez por isso Earle revele “alguma dificuldade em compreender e aceitar que, num país que tem poucos filósofos, poucos músicos, poucos pintores mas muitos escritores, não se valorize mais a literatura quer no ensino quer na investigação”.
Será que em Portugal ainda vemos os poetas como mitos, longe de nós, humanos? Será quase um sacrilégio ler Sá de Miranda ou Camões numa edição de bolso, na cama ou na praia, como lemos um contemporâneo? Earle concorda: “Consideramos estes autores inacessíveis. Os Lusíadas, por exemplo, são um texto mágico, belíssimo, que serve apenas para exibir na sala com uma encadernação muito bonita, mas nunca para ser aberto.” Há, sim, uma espécie de “veneração e distância” na relação dos portugueses com os poetas. “Talvez porque, no mundo anglo-saxónico, a literatura seja valorizada por puro prazer estético, quase como um substituto da religião.” Em Portugal, não: “Shakespeare, por exemplo, é uma espécie de Bíblia, uma fonte de beleza e de verdade. Em Portugal, ainda se vê a literatura como contendo apenas informação cultural sobre o passado. Para muitos, não importa o que Camões escreveu porque não estão particularmente interessados nesse período.”
Há uns anos, num tutorial, Earle perguntava ao seu aluno: “Simon, gosta de Camões?” Simon não sabia responder. Sentia que Camões era interessante, mas o professor dizia-lhe, surpreendido, que não parecia gostar muito de Camões nem estar “muito apaixonado pelo assunto”. Simon ficou a pensar na pergunta e regressou meses depois para ler António Ferreira. “Algo em Ferreira me tocou, o que não aconteceu com Camões”, diz.
Se considerarmos que o Camões tem aquele extravasar de emoções, toda aquela paixão, talvez António Ferreira seja quase britânico, reservado, tímido, sempre bem comportado
No final do ano, Earle explicou o porquê da pergunta: “Simon, eu não entendia por que não gostava de Camões, mas agora percebo porque gosta mais de Ferreira. O Simon é mais um Ferreira-man, do que um Camões-man.” Surpreendido com aquela revelação sobre a sua identidade, Simon perguntou: “Como assim?” “Well”, disse Earle: “O Simon parece-me muito reservado e não muito em contacto com os seus sentimentos.” Simon matutou. E chegou a esta conclusão: “Se considerarmos que o Camões tem aquele extravasar de emoções, toda aquela paixão, talvez Ferreira seja quase britânico, reservado, tímido, sempre bem comportado, escreve boa poesia mas não é de modo nenhum selvagem ou rebelde.” Por isso, pergunta Simon: “Haverá um lado camoniano em Tom Earle?” Será Earle um Camões-man?
“Há qualquer coisa no Camões…”, ri-se Tom, tímido, quando lhe devolvemos a pergunta. Camões é melhor poeta do que Ferreira: “Ele consegue controlar aquela retórica confiante, extremamente difícil, a mesma retórica que as pessoas encontram no Shakespeare: não conseguimos parar de ler porque as palavras simplesmente voam.”
Talvez ainda não consigamos olhar para Camões como um homem. Daí que Earle diga que “pusemos Camões num rochedo, como Adamastor”. É preciso “libertar Camões”, ou seja, “libertar o leitor de Camões, para que ele leia naquele texto o que quiser. Nós transformámos o poeta no rochedo — ele pode ter sido o herói do Estado Novo ou, como alguns críticos apontam, um precursor de Marx. Mas ambas as coisas não se excluem. É preciso aceitar Camões pelo que ele é”.
“Tom é um personagem”, conclui Simon, rindo. Minutos antes, Earle passara de bicicleta e com a “pasta folclórica”, como os alunos de Coimbra apelidaram a sua pasta velha quase a desfazer-se, da qual o professor não se separa. “Só em Oxford é possível captar Tom Earle na plenitude dos seus atributos: a pasta, claro, mas também a bicicleta a que recorre todas as manhãs, mesmo quando tem de enfrentar intempéries. Apreciadas no seu conjunto, pasta e bicicleta, representam bem a honrada tenacidade do scholar de eleição”, conta Bernardes. Não esqueçamos o bule de chá com que sempre nos recebe num tutorial. “Tom é muito reservado”, diz Simon, “mas calculo que, como Camões, ele também deve ter um lado selvagem. Algo que o fazia saltar o portão do colégio, de noite, como quando era estudante em Oxford.”
Casa arrumada é assim: Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa Entrada de luz. Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um Cenário de novela. Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os Móveis, afofando as almofadas... Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo: Aqui tem vida... Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras E os enfeites brincam de trocar de lugar. Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições Fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha. Sofá sem mancha? Tapete sem fio puxado? Mesa sem marca de copo? Tá na cara que é casa sem festa. E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança. Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde. Tem gaveta de entulho, daquelas em que a gente guarda barbante, Passaporte e vela de aniversário, tudo junto... Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda. A que está sempre pronta prós amigos, filhos... Netos, prós vizinhos... E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca Ou namora a qualquer hora do dia. Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente. Arrume a sua casa todos os dias... Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo pra viver nela... E reconhecer nela o seu lugar.
Atonia do espírito cívico, perda do sentido do dever para com a colectividade, a cultura neo-individualista não deixa de inquietar os espíritos de todos os quadrantes.
Para onde caminham as nossas democracias, livres de qualquer «religião civil», de qualquer fé nos projectos colectivos?
Desenvolvimento da corrupção e da delinquência, inclinação sobre o «eu», selva de interesses, abstencionismo. Que laço pode unir sociedades privadas do sentimento individual de obrigação para com a globalidade social?
Todos estes riscos «entrópicos» são reais na condição de não se omitir que eles são inseparáveis do seu contrário, nunca tendo os princípios da nossa vida colectiva beneficiado de uma legitimidade tão grande. Se, por um lado, as democracias foram desestabilizadas pelos costumes pós-moralistas, elas são, de facto, cada vez menos contestadas no seu fundamento último, cada vez mais consensuais quanto ao valor do pluralismo democrático. Deixou de haver adesão ao espírito de entrega mas, ao mesmo tempo, as formas de violência política e social são recusadas e a organização pacífica da concorrência para o exercício do poder, é aceite por todos. O cinismo aumenta?
Quanto menos houver uma religião da política e da moral sacrificial, maior será a exigência de contra-poderes e de transparência, de pluralismo e de cuidado com os procedimentos, de profissionalismo e de negociação nas formas de regulação e de decisão administrativas.
Estamos perante o progresso de uma nova era democrática, já não assente na legitimidade única do sufrágio universal mas no constitucionalismo e no primado dos direitos do homem, na independência das instituições públicas em relação ao Estado, na lógica jurídica como princípio regulador da economia e da sociedade.
Eis outras tantas transformações institucionais que farão, sem dúvida, acelerar um pouco mais o desencanto do espaço público, recuar a oral das obrigações colectivas em benefício da defesa dos direitos mas que, ao mesmo tempo, deveriam assegurar o desenvolvimento de democracias mais modestas mas mais atentas ao direito, menos heróicas mas mais preocupadas com o pluralismo institucional, menos voluntaristas mas mais descentralizadas.
A apatia democrática vence, os valores republicanos não se mostram duradouros mas o espírito de paz civil é dominante, impõem-se novas formas de equilíbrio dos poderes e de ordenamento público, surgem novas exigências de justiça: as democracias do pós-dever ainda não disseram a sua última palavra.
A exigência de moralização do povo foi substituída pela exigência de moralização da acção pública; já não se acredita nas pedagogias do cidadão mas sim no Direito como via para a moralização da política; juízes e especialistas vieram substituir as homilias das obrigações morais e cívicas. Tínhamos o discurso encantatório da religião civil e política, dedicamo-nos a reforçar a eficácia específica do sistema jurídico; tínhamos a centralização do poder, temos o «cidadão jurista», o lobbying profissional, as arbitragens jurídicas dos conflitos de interesses.
Prevalência da Constituição, fragmentação das autoridades estatais, autonomia da acção pública em relação à esfera política; não são os regimes de ordem moral que celebram a hegemonia das obrigações colectivas sobre os direitos individuais mas sim o Estado de Direito e a promoção social da ideologia jurídica. É menos o regresso da moral do que o regresso do Direito; a escalada do poder do Direito como regulador das sociedades democráticas do pós-dever.
Gilles Lipovetsky
InO Crepúsculo do Dever, ed. D. QUIXOTE, 4ª edição, Maio de 2010, pág. 232 e seg.
A publicação do Testamento de Afonso II foi um reviver de emoções, pois houve anos em que um ou outro manual de estudo literário continha o documento de 1214, como primeiro escrito em língua portuguesa e foi possível transmiti-lo aos alunos, como curiosidade, nas sequências explicativas das origens do português. Por isso, foi com grande prazer que reli o documento a que agora acrescento o excerto de António Ferreira, da sua “Carta a Pedro de Andrade Caminha”, exortando este a só escrever em português. Realmente, António Ferreira foi o único poeta renascentista que só escreveu em português.
Excerto da Carta de António Ferreira a Pedro de Andrade Caminha:
Neste dia em que se celebram os 800 anos da Língua Portuguesa o Jornal de Angola associa-se à iniciativa de jornais de diversos países que publicam um texto sobre o futuro da nossa língua comum.
Os órgãos de comunicação social são instrumentos fundamentais de defesa da Língua Portuguesa e o Jornal de Angola tem feito um grande esforço para cumprir essa missão exaltante que é preservar um património cultural e vital que convive connosco pelo menos desde 1486, ano em que a armada de Diogo Cão subiu o rio Zaire até Matadi e iniciou relações oficiais com o Reino do Congo.
Quando os nossos antepassados tomaram contacto com a Língua Portuguesa ela era uma jovem de 272 anos. E foram os contactos com os diversos povos de África, Ásia, América e Oceânia que a que a mantiveram jovem, até aos dias de hoje. Angola dá um contributo especial a essa juventude perene, à sua renovação permanente, que a torna cada vez mais viva e especial.
Os primeiros vestígios do chamado “português tabeliónico” foram confirmados no galaico-português, veículo da mais bela e pura poesia trovadoresca, as Cantigas de Amigo. Desde então, a Língua Portuguesa ganhou personalidade própria e foi ferramenta fundamental de Bernardim, mestre Gil Vicente ou Camões, quando compôs aqueles que são dos mais belos poemas da Literatura Universal, na doce medida velha, para usarmos a feliz expressão do poeta, na definição da poesia que mergulhava as suas raízes nas cantigas de trovadores e jograis.
A maravilhosa aventura da Língua Portuguesa cruzou mares, subiu montanhas e soou nas “sete partidas”. O estádio supremo de uma cultura é o edifício da língua que lhe serve de veículo. O Português entrou há seis séculos em nossa casa e tornou-se membro da família. Ao chegar a África e logo a seguir à América (Brasil) e ao Oriente, encontrou o elixir da eterna juventude. É hoje falada por milhões de seres humanos em todo o mundo e adquiriu o perfume especial de cada povo que a fala e a adoptou como língua oficial.
Em Angola a Língua Portuguesa encontrou línguas africanas bem estruturadas mas ágrafas, na altura. Ao ser adoptada pelos nossos antepassados ganhou um ritmo diferente, sons melodiosos que a tornam única, bela e com uma amplitude extraordinária, mas igualmente mais complexa. Hoje o Português tem elementos das nossas línguas e um som que a torna única. O extraordinário neste convívio é que nunca os angolanos deixaram morrer as línguas africanas nem sequer as línguas falados por pequenas comunidades, de norte a sul do país.
Como a Língua Portuguesa nunca foi hegemónica, não matou as línguas africanas. Pelo contrário, ao longo de 528 anos, mais de cinco séculos, todas as línguas conviveram em harmonia e “contaminaram-se” mutuamente. E quando o Português foi adoptado por Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe como língua oficial, teve um papel importante na unidade nacional nestes países e não de conflitualidade.
O testamento do rei D. Afonso II (terceiro de Portugal) a suas irmãs, datado de 27 de Junho de 1214, marca o nascimento da Língua Portuguesa. São 800 anos de existência que exigem de todos os que falam português e dos países de língua oficial portuguesa especiais responsabilidades na sua defesa e preservação, o que seguramente não se consegue com o Acordo Ortográfico já ratificado por alguns países.
A adopção do Acordo Ortográfico por parte dos órgãos de informação portugueses causa-nos uma grande perplexidade, porque, ao mesmo tempo, ignoram a linguagem jornalística e as técnicas de construção da mensagem informativa. Quanto às técnicas de ancoragem, nem se fala, são pura e simplesmente ignoradas, numa olímpica falta de respeito pelos consumidores.
O Acordo Ortográfico é um instrumento para facilitar o comércio das palavras. Nada mais do que isso. Os órgãos de informação não são academias de linguistas e muito menos usam uma linguagem rebuscada. A nossa mensagem é directa, substantiva e afirmativa. Cabe nos nossos produtos a liberdade de captar certas formas de contar e expressões populares. Por vezes, esses materiais têm uma grande riqueza plástica. Mas a base de trabalho é sempre a Língua Portuguesa e disso não abdicamos, por muito popular que seja vender a ideia de que é preciso escrever nos jornais como se fala. Nunca desceremos ao nível de quem sabe pouco, tudo faremos para levar os nossos leitores ao nível dos que sabem mais.
Não passa pela cabeça de ninguém fazer um “acordo” para que os estilos próprios de cada povo sejam adoptados por todos os jornalistas de Língua Portuguesa.
A Língua Portuguesa tem de ser defendida pelos que a amam e conhecem profundamente. Sobretudo agora, que nos querem impingir um Acordo Ortográfico que pretende pôr os brasileiros a abdicar da sua doce medida, os portugueses da pátria de Pessoa, os angolanos das suas construções harmoniosas, os moçambicanos das laranjas de Inhambane, os cabo-verdianos da poesia crioula.
A Língua Portuguesa tem na sua diversidade a marca da eternidade. Quem hipotecar a sua língua ao difícil comércio das palavras tem de assumir essa responsabilidade perante todos os falantes de todas as latitudes. Nós rejeitamos o caminho de empobrecimento da nossa Língua Portuguesa.
Quanto mais não seja, em nome da unidade nacional.
A democracia é frágil. A razão é ela ter no coração algo muito diáfano e delicado, o respeito. Poucas coisas são mais ténues e preciosas do que o respeito. Por isso a democracia é tão frágil.
A evolução da cultura reforça o respeito em certos aspectos, mas enfraquece-o noutros. Há cem anos o desprezo pela democracia era aberto, acusando-a de decadente e propondo alternativas autocráticas como jovens e dinâmicas. O falhanço foi tal que hoje essa estratégia descarada é rara. Mas surgem agressões ocultas e enganadoras. Os maiores inimigos actuais da democracia dizem sempre apoiá-la. Três casos recentes mostram-no bem.
Nas últimas eleições europeias muita retórica, preocupada com o futuro da democracia comunitária, foi em si mesma antidemocrática. É muito mau que tantos se tenham alheado do voto, gerando abstenções recordes, e que muitos dos eleitos tenham opiniões altamente censuráveis. Mas democracia é aprender a respeitar a preferência do povo como ela é. Faz parte das regras básicas do regime que cada um é livre de se abster ou apoiar partidos radicais. Não é admissível eleger forças antidemocráticas, que negariam o sistema. Só que, por muito que nos incomode, estes novos eleitos são nacionalistas, extremistas de direita ou esquerda, mas não se opõem às regras do jogo. Devemos respeitá-los e lutar lealmente para que a sua vitória não se repita.
A principal ameaça contra o coração da democracia vem, hoje como sempre, das ideologias totalitárias. Essas aparecem nos casos mais inesperados. Os seus defensores raramente são doidos ou malvados, mas pessoas convencidas da sua razão e incapazes de aceitar alternativas. É sempre em nome do bem que se implanta um despotismo. Outro caso mostra a facilidade da queda na tentação totalitária em nome do respeito.
Hoje a questão dos direitos dos homossexuais é formulada numa tese que se pretende única, absoluta e indiscutível, agredindo-se violentamente quem se atreva a não a aplaudir. O caso é curioso por constituir evidente negação dos valores essenciais da democracia e respeito em nome da democracia e respeito. Com o elemento cómico de constituir a tese oposta à que a mesma democracia defendia há pouco tempo.
A violência é patente, como no recente caso de Brendan Eich, um dos maiores génios informáticos da actualidade. O criador da linguagem JavaScript e co-fundador em 1998 do projecto Mozilla, assumiu em 24 de Março o lugar de administrador da Mozilla Corporation. Foi então alvo de um gigantesco ataque que o forçou à demissão a 3 de Abril. Qual o seu crime nefando? Ter em 2008 contribuído com mil dólares para a campanha da California Proposition 8, iniciativa a favor da excelência do casamento heterossexual. Não foi na Coreia do Norte ou Zimbabwe, mas nos EUA. A fúria advém do repúdio pela alegada falta de respeito, considerando violação dos direitos humanos a recusa da igualdade no casamento.
Mas tal inclui uma óbvia confusão lógica.
Discriminação é de gente, não de acções. Uma lei racista é infame porque rejeita pessoas pelo que são, não pelo que fazem. Nazis e apartheid oprimiam judeus e negros na sua identidade. Também a homofobia, grave crime de discriminação, deve ser condenada e combatida.
Mas criticar práticas não é discriminação. Ninguém é preso por ser ladrão mas por ser apanhado a roubar. A lei não condena inclinações, mas práticas pedófilas. Debates à volta da atribuição da nacionalidade portuguesa a imigrantes ou do título de engenheiro a agentes técnicos não implicam marginalização. A sociedade considerava criminosos actos homossexuais e pedófilos; hoje acha uns bons e outros maus. Em causa estão actos, não pessoas. A recusa do casamento de pessoas do mesmo sexo não implica desrespeito por ninguém, como não é discriminatório rejeitar incesto ou poligamia. Discussões sobre a definição do casamento devem ser livres numa democracia e nada têm que ver com direitos.
O terceiro caso é mais próximo. Escrever este texto hoje implica um risco evidente.
Guilhermina Suggia, a grande violoncelista que encheu Pablo Casals, seu marido, de inveja por não ter tanto sucesso artístico como ela, nasceu no Porto em 27 de Junho de 1885 e faleceu na mesma cidade em 30 de Julho de 1950. Viveu 65 anos e faria hoje 129 anos se essa fosse uma idade comum.
A particularidade da efeméride é que ela fez 60 anos no dia em que eu nasci e eu fiz 50 anos no dia em que o meu amigo Tomás Bernardo nasceu e que hoje faz 19 anos.
Dá a impressão que o tempo foi elástico entre a célebre violoncelista e este promissor jovem estudante de engenharia, meu companheiro de equitações.
Mas não, o tempo não é elástico, o que varia é o modo e nós somos apenas historicamente coniventes no andamento da nossa Nação. Dignifiquemo-la.