Vem de longe, talvez da poetisa Sapho, o costume de envolver o retrato das figuras femininas, quer na literatura, quer na pintura, com imagens do belo, retiradas das flores, dos astros, das pedras e metais preciosos, das cores, das manifestações do tempo – a neve em paralelo expressivo hiperbolizante. As próprias cantigas do amor trovadoresco - convencionalmente traduzindo a coita de amor que invariavelmente trespassava o coração do poeta por motivo do distanciamento da “senhor”, aristocrática dama “de bom semelhar” ou “parecer” e bom “prez” e “falar”, que com a sua indiferença o faz ensandecer ou mesmo desejar a morte - embora raramente a retratem nos seus traços físicos, estes surgem aqui ou ali, como no refrão da cantiga de João de Guilhade (“Amigos, non poss’eu negar / a gram coita…”: “Os olhos verdes que eu ui / me fazen or’andar assi”), na de Ruy Paez (“Par Deus, ay dona Leonor,”) a comparação hiperbólica “Com’antr’ as pedras bom rubi, / sodes entre quantas eu ui”. Mais frequente é a metáfora encarecedora “lume destes olhos meus”. Também o lai da Leonoreta, que “Amadis de Gaula” transcreve dos Cancioneiros, utiliza a “roseta” e “toda a flor” para descrever Leonor: “Leonoreta / fin roseta / bela sobre toda fror”, que a Internet tão explicitamente nos mostra (e bem assim a “Crestomatia Arcaica” do Dr. José Joaquim Nunes que sigo.
No Renascimento e séculos seguintes tais paralelos ilustrativos da beleza feminina se multiplicam, até mesmo para as figuras populares, como a do vilancete camoniano “Descalça vai para a fonte”, glosado ao modo maneirista por Rodrigues Lobo – e no século XX, de modo extremamente visualista e dinâmico por Gedeão, no “Poema da auto-estrada” –“Voando vai para a praia / Leonor pela estrada preta. / Vai na brasa, de lambreta”.
Mas o maneirismo retórico todo ele se apura já, no Renascimento, no retrato convencional da mulher amada:
De quantas graças tinha, a Natureza
Fez um belo e riquíssimo tesouro,
E com rubis e rosas, neve e ouro,
Formou sublime e angélica beleza.
Pôs na boca os rubis, e na pureza
Do belo rosto as rosas, por quem mouro;
No cabelo o valor do metal louro;
No peito a neve em que a alma tenho acesa.
Mas nos olhos mostrou quanto podia,
E fez deles um sol, onde se apura
A luz mais clara que a do claro dia.
Enfim, Senhora, em vossa compostura
Ela a apurar chegou quanto sabia
De ouro, rosas, rubis, neve e luz pura.
Tal preciosismo renascentista será levado, no Barroco, a uma orgia retórica de um rebuscamento angustiado, seguindo um percurso em suspense, de paralelismos antitéticos, no soneto “À morte de F.” de Francisco Vasconcelos do Cancioneiro “A Fénix Renascida”: a figura feminina – hiperbolizada em “jasmim”, aurora”, “fonte” “rosa”, não como metáforas simples mas prolongadas por outros sintagmas buscando efeitos requintados de superação daquelas – será identificada gradualmente, segundo a temática do efémero da vida:
Esse jasmim que arminhos desacata,
Essa aurora que nácares aviva,
Essa fonte que aljôfares deriva,
Essa rosa que púrpuras desata; …
Mas é sobre a transfiguração visionária da realidade, no poema “Num bairro Moderno”, de Cesário Verde, pela recriação de uma figura humana a partir dos vegetais que a rapariguinha vendedeira de hortaliças transporta, o motivo desta divagação pela poesia e o retrato metaforizado da beleza feminina de paralelo com as graças da natureza primaveril ou brilhante.
Em Cesário não se trata de realçar a beleza feminina, já que a vendedeira de hortaliças é descrita, com ternura e simpatia, na sua fealdade e debilidade, ao poisar a sua giga de peso contrastivamente brutal:
E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.
E eu, apesar do sol, examinei-a;
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguedelhada, feia
E pendurando os seus bracinhos brancos.
Uma travagem no percurso deambulatório do poeta pela cidade colorida, o “retalho de horta aglomerada” lembrando repentinamente uma “visão de artista” de extraordinário impacto:
Subitamente – que visão de artista!
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!
E no meio dos dados sensoriais de aromas, cores, sons, surge o quadro, talvez inspirado nos das Quatro Estações do pintor seiscentista Giuseppe Arcimboldo. Mas, diferentemente do propósito maneirista do pintor italiano, é de expressão naturalista e simultaneamente simbólica e a tender para o surrealismo, a transfiguração cesariana, destinada não só a assinalar o contraste entre a monstruosidade caricatural das hortaliças e o aspecto frágil da vendedeira, e simultaneamente a destacar a força produtiva da terra-mãe - igualmente simbolizada na força moral da rapariguinha do povo - “duma desgraça alegre que me incita” - que o convida, com uma franqueza natural, a ajudá-la a erguer a pesada giga:
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injectados.
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos – ossos nus da cor do leite,
E os cachos de uvas – os rosários de olhos.
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como d’alguém que tudo aquilo jante
Surge um melão, que me lembrou um ventre.
E como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.
Uma irmanação feita de solidariedade, de admiração pela valentia, despojada de rancor, da gente habituada ao trabalho (Cf. “Ela canta, pobre ceifeira” de Pessoa), mas também de um sentimento de revolta social, constante em Cesário:
E pitoresca e audaz na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.
E como as grossas pernas dum gigante,
Sem, tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.
Não se trata, pois, de um descritivo erótico como nos versos de Silva Tavares e musicados por Alves Coelho e cantados por Lina de Moel (“Dia da Espiga”) que igualmente encontramos na Internet:
«Maria! São teus olhos azeitonas
Cachopa! São teus lábios quais cerejas
E teus seios cachos de uvas que abandonas
À vindima desta boca que os deseja.»
Hoje, que a poesia não conhece travão no imaginário para se afirmar com originalidade, com maior ou menor profusão de discursos ínvios, e com um erotismo sem preconceito, o discurso preciso, geométrico, de Cesário poderá parecer demasiado prolixo, na transparência de um pensamento rigoroso e claro. Mas a técnica impressionista, por vezes pontilhista, da anotação breve e múltipla, é de inegável sugestividade e beleza, os motivos poéticos, juntamente com o sentido crítico, o tornaram um escritor de vanguarda. O poema citado o demonstra.
Entretantos artifícios semânticos e formais, em que não são menos expressivos o plano fónico e a variada arquitectura versificatória, que tornaram a poesia de Cesário pioneira de modernidade, inspiradora de grandes poetas posteriores, dois versos, como exemplo, de “O Sentimento de um Ocidental”: “E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes, / Amareladamente os cães parecem lobos” que, quer na sequência progressiva da adjectivação descritiva (o adjectivo final “errantes” pontuando o aspecto psicológico, demarcando-se da sucessão dos de carácter físico), quer na hipálage do advérbio formando um traço impressionista de cor, ou a comparação hiperbólica final, traduzem uma estranha pintura de fome canina e de sensibilidade à sua miséria, num perfeito nexo entre a objectividade – a alteridade, o mundo dos outros – e a subjectividade, funcionando na estreita comunhão dos seus “quadros revoltados”,
Uma pequena homenagem a um poeta da modernidade, um pequeno vasculhar em poetas anteriores – em Silva Tavares igualmente - que marcaram tão fortemente a literatura portuguesa. Para mim, o encantamento de o reviver.
País de dimensões continentais, o Brasil herdou de Portugal uma conformação geopolítica que se manteve quase intacta até os dias atuais. Porém, há um estado, o Acre, que foi conquistado, comprado e anexado ao território nacional em 1903 pela ousadia de um gaúcho, de São Gabriel, José Plácido de Castro.
Reclamadas pelos bolivianos, que as detinham legalmente, as terras acreanas, entretanto, foram exploradas e ocupadas pelos brasileiros realmente desde 1877. Os seringalistas, senhores todo-poderosos daquelas bandas, empregavam principalmente nordestinos fugidos das secas, atraídos pelo rico comércio do látex e da castanha. Na tentativa do domínio do espaço, os bolivianos fundaram Puerto Alonso, para estabelecer taxas aduaneiras e tirar vantagens sobre os extractivistas brasileiros acostumados a uma actuação livre.
A aparente indiferença do governo brasileiro (Campos Sales), que reconhecia a soberania da Bolívia, a rebeldia dos brasileiros em se manter na região, e a incapacidade do governo boliviano em integrar efectivamente à sua jurisdição o território acreano, fez com que a Bolívia resolvesse assinar um contrato de arrendamento do Acre com os Estados Unidos da América, através do poderoso BOLIVIAN SYNDICATE OF NEW YORK CITY IN NORTH AMERICA (de capital anglo-americano), dando a este amplos poderes de exploração do território, já ocupado pelos seringalistas e seringueiros brasileiros, e também o direito de manter uma força militar e uma pequena esquadra para o controle dos rios. Para o acreano, agora, era mais que entregar para o estrangeiro o produto do seu suado trabalho, era também, sob o seu ponto de vista, um risco à soberania brasileira no espaço amazónico. Não hesitaram, os civis teriam que se transformar em soldados, e o comandante devia ser um homem aguerrido, líder, patriota, com conhecimento militar, que concordasse em lutar contra o exército boliviano, que já estava em paragens acreanas. Lembraram-se do sulista José Plácido de Castro, que no Alto do Juruá trabalhava como topógrafo para ganhar a vida, depois que abandonara o Exército por motivos de incompatibilidade de ideias e ideais. Após várias tentativas, convenceram-no. Ele teria o que pedira: autonomia única de comando naquela arriscada empresa, aparentemente ignorada pelo Governo. Contaria com o apoio dos seringalistas e seringueiros, armas e munição patrocinadas pelo dinheiro da borracha. O mais difícil seria fazer daqueles homens sem brios patrióticos, preocupados apenas com a sobrevivência, soldados fiéis até as ultimas consequências.
A floresta, abafada, cerrada, que como uma cortina verde não deixava enxergar mais que uns míseros 15 metros à frente, o calor húmido, sufocante, as árvores gigantescas inspirando alucinações e terror à noite, os insectos, as temidas víboras e feras, as febres tropicais e palustres, os sons do vento por entre as folhas, os igarapés, o repentino silêncio, o rumor das águas barrentas dos rios, bordados pela densa vegetação que tudo escondia, as pequenas e rústicas cabanas perdidas na mata, seriam os melhores aliados dos brasileiros, conhecedores da região. Os portos fluviais, os postos fiscais, vilarejos e seringais, seriam o palco das bélicas acções. A surpresa, o ataque relâmpago, o ambiente quente, não davam ao inimigo tempo e animo para efectiva reacção. As vitórias se acumulavam até que o Exercito boliviano foi accionado e numa desproporção marcante de gente, conseguiu arrasar o grupo de Plácido de Castro, por uns tempos. Na batalha, uma cabocla ao ver seu companheiro ser morto pelos soldados, desesperada empunha uma arma, e atira contra os inimigos, ferindo o Comandante da tropa, que impressionado com a valentia da mulher, ao vê-la ameaçada pelos seus comandados, diz: “Mujeres asi no se mata”.
A derrota parecia ser inevitável, porém a adesão por onde os revoltosos passavam aumentava, levantava o moral dos homens, dava esperança de uma definitiva vitória. Outros simpatizantes se juntaram ao grupo, entre eles o nordestino Alexandrino, apelidado o Matador, que já nas hostes guerrilheiras foi repreendido pelo comandante Plácido de Castro, ao incitar a deserção.
A coluna, agora fortalecida, ajudada pela surpresa, pelo sol escaldante, e pelo corte da fonte de água, assaltou a tropa sedeada no Porto Acre (Puerto Alonso). Depois de dias de cruenta luta, o exército boliviano finalmente se rendeu. Levantou-se a bandeira do Acre, independente (Fevereiro 1903).
Bandeira do Estado do Acre
Mas para não haver uma guerra civil, Plácido de Castro cedeu ao Brasil, e anexa o Acre ao território nacional. A intervenção política do Barão do Rio Branco, promove finalmente a pacificação da região com o Tratado de Petrópolis (17 de Novembro de 1903), onde o Brasil compra o Acre e indemniza a Bolívia com dois milhões de libras esterlinas, com a construção de uma estrada de ferro (Madeira-Mamoré) para escoar os produtos bolivianos, e com a cessão de algumas áreas territoriais de Mato Grosso.
Em Agosto de 1908, no Acre, numa trilha de perto do seringal de Benfica, uma mulher cruza-lhe o caminho e pede para que ele mude de rumo, sem mais nada dizer. Ignorando o pedido, José Plácido de Castro continua seu trajecto, até que perto de uma grande árvore, sofre uma emboscada. Cai atingido mortalmente por dois tiros. Era o bando do vingativo Alexandrino, que foge adentrando a mata. No seringal perto, num casebre, dois dias depois, febril, a 11 de Agosto de 1908, expira o líder da revolta acreana, aquele que deu o Acre ao Brasil, vítima do homem que ele convidou para lutar ao seu lado na conquista dessa região amazónica.
Maria Eduarda Fagundes
Uberaba, 5 de Março de 2012
Fontes:
Wikipédia
Enciclopédia: Delta Universal
A conquista do Acre e a Revolução Acreana (Ademar Romano)
Plagiando Teixeira de Pascoaes:” A aldeia do passado já não existe; mas vive em mim. Tenho-a intacta, cá dentro, onde se fixam todas as formas transitórias, reproduzidas numa substância espiritual.”
Talvez como a mesmo Pascoaes disse: ”o que caracterizava o povo português e o identificava como único, era a saudade.”
Saudade... de Benguela!
PRIMEIROS RECONHECIMENTOS
Os antigos diziam que o reino de Angola confinava pelo sul com o País dos Cafres, e consideravam a região para o sul do Cuanza, até ao Golfo das Vacas, como pertencendo ainda a Angola, havendo alguns, como o nosso Duarte Lopes, que estendiam os seus limites ainda mais além, até ao Cabo Negro (1).
Não se compreende muito bem em que se baseavam para esta asserção, mas deviam talvez fundamentá-la, não no papel político do Ngola, querendo dizer que a sua autoridade de Rei se estendia por todo esse vasto território, mas porque da mesma família da Ginga, e dos outros jagas que viviam na região a que chamávamos Angola e considerávamos um reino, eram aqueles que se tinham estabelecido além Cuanza, como os Quembo, Songò, Holo, Quioco, Biênos e ainda os do Humbe (2), afora várias pequenas guerrilhas que se não tinham grupado e viviam independentes, pela costa na foz dos rios, e pelo interior, formando, no conjunto, o país de Benguela, que uns queriam que tivesse o seu limite norte no rio Cuanza, outros no da Longa e o sul no Cabo Negro (3).
De uma carta de 1766
Pela tradição entre os indígenas, parece ponto assente que um jaga Quingurí desavindo-se com a família na Lunda, abalou com os seus partidários na direcção de Quimbundo, passando as nascentes do Cuanza e seguindo para o norte pela sua margem esquerda, foi acampar no Libolo, onde depois de algum tempo de permanência, resolveu passar o Cuanza e procurar o Governador Geral a quem se apresentou e ofereceu os seus serviços. Estes foram aceites, fixando-se-lhe a residência na Lucamba, sítio que ficou assim chamado por as sementes que deram ao Quinguri, e ele lançou à terra, nada terem produzido, por não prestarem.
Governava então Angola D. Manuel Pereira Forjaz e devia ser ele o governador D. Manuel que a tradição indígena diz que recebeu o Quinguri, não só porque foi a partir de então, que os jagas antigos inimigos nas guerras de Paulo Dias, passaram a ser os nossos auxiliares, como foi durante o seu governo, que o valente Baltasar Rebelo de Aragão se propôs fazer a viagem ao Monomotapa, ou talvez a travessia da África, para o que, certamente, muito deveria ter concorrido as informações do Quinguri, junto a outras que já então se tinha do interior, por muitos dos nossos o terem percorrido, quer seguindo o curso do Cuanza, quer desembarcando em algum ponto da costa e internando-se para negociarem.
Como já ficou referido, a costa de Angola para o sul do Cuanza, já antes da ocupação de Luanda era explorada pelos portugueses, pois, em 1546 já iam ao rio da Longa no reino de Benguela resgatar cobre, e Paulo Dias de Novais, em 1586-87, mandou Lopes Peixoto ocupar Benguela a Velha, certamente com o fim de aí desenvolver o resgate com os indígenas, tendo sido infeliz, como sabemos. Depois desta data e durante alguns anos, nos documentos que se tem encontrado, em nenhum há referências às relações que se deveriam ter estabelecido por todo o litoral para o sul, com os indígenas, e, contudo, não resta dúvida que existiam, porque, em 1600 ou 1601, o Governador João Furtado de Mendonça foi ao sul, à Baía das Vacas ou Baía da Torre, com sessenta homens, para negociar com os indígenas, o que não teria feito, se não tivesse informações do resultado de expedições anteriores; que o animaram a tentar um resgate em maior escala (4).
Da tripulação, como já se disse, fez parte um inglês Andrew Battell e por ele sabemos que foi de bom rendimento essa viagem, trocando-se contas de vidro por vacas e carneiros (5), “bigger than our English sheep” e por “madeira chamada Cacongo que se assemelhava ao pau Brasil”. A quantidade de gado era tal, que em dezassete dias tinham adquirido quinhentas cabeças e o Governador, em mais de dez dias, carregou três navios. As contas de vidro com que se fazia o negócio eram azues e de uma polegada de comprimento, e o gentio dava uma vaca por quinze contas.
Citando, apenas por curiosidade, a informação de Andrew Batell de que os indígenas “they are beastly in their livingy for they have men in womens apparel, whom they keep among their wives”, registamos a sua observação de que as serras que encontrou no seu percurso, constituíam uma cordilheira que vinha desde as montanhas de Cambambe, que tinham minério de cobre em grande quantidade, que os indígenas não trabalhavam senão na parte que precisavam para obter os seus adornos, que para as mulheres consistiam em colares no pescoço e pulseiras nos braços e pernas.
Battell tornou a participar de outras viagens de negócio pela costa e, de uma delas, o mestre da embarcação vendo um grande arraial indígena nas margens do rio Cuvo, desejoso de averiguar o que era, aproximou-se e soube que se tratava de um acampamento de jagas. Entrando em relações, desembarcou com o Battell e os portugueses que levava, fazendo largo negócio, enchendo o navio de escravos, que compraram a real, quando em Luanda se não obtinham por menos de doze mil réis (6).
Battell como se vê, não ia só, nem teve outros ingleses a acompanhá-lo, pois que os não cita, mas sim portugueses, alguns mulatos, segundo diz, e de concluir será também que não sendo negociante e apenas um degredado e estrangeiro, não teria o capital necessário para manter à sua custa uma armação e trabalhava por conta de qualquer português. A viagem não era, pois, de sua iniciativa, mas um facto corrente, de há muitos anos já entre portugueses.
Da descrição que faz, averigua-se que estiveram, ele e os portugueses,durante cinco meses com o jaga auxiliando-o nas suas guerras e fazendo negócio, e tendo o navio fundeado em Benguela Velha, fizeram três viagens a Luanda para levar a carga que tinham resgatado. Quando regressaram pela quarta vez, não encontraram o acampamento do jaga mas foram ter, ele sempre com os portugueses e nunca só, com o soba Mofarigosat, nome bastante estropiado e de impossível identificação, que os não quis deixar sair, mas os portugueses conseguiram demovê-lo deixando-o a ele, Battell, por ser inglês, como refém.
Fugindo da embala deste soba, foi para Dala Cachibo, onde encontrou de novo o jaga da viagem anterior, com quem andou bastantes meses, até que, depois de muitas marchas, foi parar ao nosso conhecido soba Langere, próximo de Cambambe.
Verifica-se de tudo o que fica referido que a costa pelo menos até Benguela, e o interior, quando mais não fosse, na parte do Amboim, Seles e o curso do rio Cuvo, eram percorridos pelos nossos comerciantes para o seu negócio, não sendo de admirar que chegassem ao Bailundo e Bié.
Como se sabe, também por tradição indígena, o território desde o Bié até além do Humbe, talvez ao Cuanhama, constituiu o importante sobado do Humbi-Inéné (7), que aliado dos Ngolas, tinha decidido prestar a estes auxílio contra nós (8), o que não conseguiu levar a efeito, por a isso se opor o seu vassalo, soba do Bié. O que levaria este a tomar essa atitude? Não seriam as relações que mantinha com os portugueses que frequentavam a sua embala, fazendo negócio, que o impediram de auxiliar o Ngola? Que outro motivo poderia haver a não ser este?
Nenhum. Foram, sem contestação possível, as relações com os portugueses que impediram não só o auxílio a prestar ao Ngola, como determinaram a rebelião do soba do Bié e a sua independência do Humbi-Inêné. E, possivelmente, foram eles que mais tarde encaminharam o Quinguri, na sua passagem pelo Bié, a apresentar-se em Cambambe, pedindo para ser recebido pelo Governador Geral a-fim-de lhe fixar local para residir.
Muito embora não tenhamos notícia de qualquer outro porto para o sul de Benguela, frequentado pelos nossos comerciantes, é contudo certo que o Cabo Negro nos aparece em mais de um documento, como um ponto conhecido, tudo indicando que as nossas tentativas ou buscas de novos resgates ou explorações, teriam talvez atingido as suas proximidades.
Havia então necessidade de conhecer muito detalhadamente toda a costa da África, quer ocidental, quer oriental, pelo que foi mandado executar um reconhecimento geral, encarregando o da costa ocidental a Belchior Rodrigues, pelo regimento de 4 de Janeiro de 1613, que para esse fim se lhe deu (9), e do qual se verifica que, embora se mandasse efectuar do Cabo de Boa Esperança, ou do mais perto dele que pudesse ser, para Angola, navegando de dia e surgindo de noite, a parte que verdadeiramente interessava era a da Cafraria, até o Cabo Negro. Recomendava-se que se examinasse com o maior cuidado todos os surgidoros, as braças dos seus fundos, a qualidade deles, as fontes e ribeiros em que se podia fazer aguada, desenhando-as com diligência e fazendo os cálculos das suas situações, para o que se mandava empregar as novas agulhas de Luís da Fonseca Coutinho e as tábuas de João Baptista Lavanha, que também foi na expedição (10), donde podemos concluir que do Cabo Negro para o norte já havia notícias mais detalhadas da costa, e, possivelmente, os seus portos tivessem sido desenhados, como se pedia para os do Cabo de Boa Esperança até ao Cabo Negro.
Vê-se do exposto que, quer a costa desde o sul da foz o Cuanza ao Cabo Negro, quer o interior, principalmente na parte da bacia do mesmo rio, eram já bastante percorridos pelos nossos comerciantes em fins do século XVI e começo do século XVII.
Os jagas que se espalharam pelo interior e com quem os nossos se relacionaram, arranjavam nas suas incursões escravos e gado que lhes vendiam. Estas boas relações nem sempre garantiam um bom e leal acolhimento, e podemos calcular as dificuldades que seria necessário remover para realizar naquela época uma viagem pelo interior e, mais do que as dificuldades removidas à força de tenacidade, o que essas viagens representavam de energia, de audácia, de confiança em si próprios, da parte dos que a elas se afoitavam.
“Jagas” – “Relação do Reino do Congo, de Pigafetta
E tudo isto era o sonho de uma riqueza! Iam para o cobre e para o gado de Benguela, mas todos eles tinham o sentido fixo na prata de Cambambe, naquela serra enorme toda de prata a reluzir, de que o Cafuxe e o Ngola não deixavam que nos aproximássemos!
O cobre de Benguela era um desvio, era para entreter. Não podendo ir a Cambambe, andávamos à roda, sempre atentos à espera de uma aberta.
Mas tínhamos que lá ir, e agora era já a Corte de Madrid interessada no negócio, pois fora governar Angola João Rodrigues Coutinho, levando os mais extraordinários poderes e recursos de tropas para efectuar a conquista de Cambambe.
Desta vez seria certo. Os padres jesuítas também iam, pois gostavam muito do Governador João Coutinho que era muito bom e cujas virtudes e artes nós já conhecemos. A sua fama espalhara-se por toda a parte e quando até do Congo vinha gente para se alistar nas tropas, fiada nos benefícios que lhes prometiam, o Governador Coutinho morreu, estando tudo preparado para a guerra. Os jesuítas que tinham tomado um interesse especial no assunto, fizeram recair a escolha do substituto em Manuel Cerveira Pereira, seu afeiçoado.
Manuel Cerveira Pereira – Fundador de Benguela
Fez-se a guerra e Cambambe conquistou-se, mas a prata, como já vimos, por mais escavações que se fizessem na serra, não apareceu. Manuel Cerveira Pereira, o realizador da proeza parecia sucumbido, mas não era para o seu espírito deixar-se possuir do desânimo; não havia prata, era certo, mas a culpa não era dele, pois nunca o afirmara. E, entretanto, tendo ouvido a um ou outro sertanejo, referirem-se à quantidade de manilhas de cobre que usavam as pretas de Benguela nos braços e nas pernas, passou a garantir, como se ele próprio lá tivesse ido ver e já o tivesse explorado, que havia muito cobre em um ponto determinado e que só ele conhecia.
Ao mesmo tempo, chegou a Luanda o Governador efectivo D. Manuel Pereira Forjaz, e um dos seus primeiros actos foi mandar Manuel Cerveira Pereira preso para Lisboa e a Corte que resolvesse sobre as acusações que lhe eram feitas.
(1) Dapper, Description de l’Afrique pág. 361.
(2) Henrique de Carvalho, “O jagado de Cassange e Expedição portuguesa ao Muatiânvua”; Capelo e Ivens, “De Angola á contra-costa” e “De Benguela ás terras de Iacca”.
(3) É muito possível que pelo facto da donataria de Paulo Dias se estender além Cuanza até Benguela Velha, se acostumassem a incluir toda a região no reino de Angola.
Cabo Negro: a norte da foz do Rio Cutato, cerca de 35 milhas – náuticas – a sul de Namibe.
(4) Tem-se feito muita confusão com a Baía da Torre e a Baía das Vacas. Lopes de Lima (Ensaios, livro 3.°, parte 2a, nota (i) a pág. 29), criticando a Relação da Conquista de Benguela, diz que a Baía da Torre está a treze léguas ao sul daquela onde foi fundada a cidade de Benguela e que o autor da Relação, sendo mais guerreiro que geógrafo, errou neste ponto. Assim, para Lopes de Lima, a Baía da Torre seria a de S. Francisco. Luciano Cordeiro (Benguela e o seu sertão nota a págs. 8 e 9) não vendo motivos para se pôr em dúvida a ciência do autor da Relação, cita a opinião de Pimentel, que arruma a Baía da Torre na mesma latitude, com pequena diferença de minutos, em que está Benguela e a da Castilho, que encontrando um erro de 22' para menos, nas latitudes observadas por Pimentel, supõe que a Baía da Torre é a actual dos Elefantes. Andrew Battell, cujas aventuras foram pela primeira vez publicadas por Samuel Purchas em 1613, e portanto antes de escrita a Relação, diz-nos que depois de terem estado numa baía que estava a 12°, foram para a Baia das Vacas, que é a que os portugueses chamam Baía da Torre, “becanse it that a rock like a tower” e aí, »we rode on the noríh side of the rock in a sandy bay» que deve ser a actual de Benguela, parecendo assim que a das Vacas ou da Torre era a do sul da «rock like a íower», talvez a de S. Francisco. Anexos, doc. n.° 24, referido.
Nota:- Com a denominação de “Vacas” só resta hoje (2012) a ponta que separa a Caota da Baía Azul. Mas tudo leva a crer que a mencionada Baía das Vacas seria a Baía Azul, muito mais abrigada que qualquer outra.
(5) É bom frizar que a primeira referência que se encontra a vacas e carneiros é nesta viagem a Benguela. Battell que percorreu o Congo e toda a Angola, só em Benguela refere a existência de carneiros, que achou melhores ou pelo menos tão bons como os ingleses. Dapper quando descreve o reino de Benguela regista a informação de que as vacas eram também tão boas ou melhores que as francesas. Não se conhecendo comparação alguma feita por português dos carneiros e das vacas de Benguela com as do seu país, talvez se possa concluir que o motivo era por não os poderem comparar, visto serem oriundos de Portugal, possivelmente levados ainda antes de Paulo Dias, quando os colonos de S. Tomé iniciaram as suas explorações pela costa para o sul do Zaire.
(6) Ravenstein, Adventures cit., § III.
(7) Capelo e Ivens, “De Angola à Contra-Costa, tomo I, pág. 214.
(8) Seria talvez no tempo do Ngola Kiluanji Kia Ndambi, que Ravenstein nos diz que foi um grande guerreiro e levou as suas incursões pelo Cuanza muito próximo do mar, deixando assinalado com uma insandeira o ponto aonde chegou.
(9) Biblioteca da Ajuda, cod. 5t-VIII-2ï, fí. i55 a i58 e 160/1—“Regimento de q. ha de usar Belchior Roiz que V. Mag.e hora manda ao descobrimento da terra da Cafraria» e «Regimento q. parece se deve guardar no descobrira e descri cão da costa, do cabo Negro té o de boa esperança”.
(10) No cód. acima referido, a fls. 63 e 64 e 78 a 89, encontra-se o regimento e instruções para o uso das agulhas, que mostravam o verdadeiro merediano em qualquer paragem sem nenhuma diferença de nordestear e norestear como te agora fizerão todas as outras...
In “ANGOLA - APONTAMENTOS SOBRE A OCUPAÇÃO E INÍCIO DO ESTABELECIMENTO DOS PORTUGUESES NO CONGO, ANGOLA E BENGUELA” – Extaídos de documentos históricos. Coligidos por Alfredo de Albuquerque Felner. Coimbra. Imprensa da Universidade. 1933
Nos anos 1960, Portugal era um país pacato e trabalhador, poupado e prudente, que se sacrificava generosamente, labutando dia e noite para cumprir os deveres.
Frequentemente emigrava e procurava vida melhor noutras terras. E os patrões, franceses ou alemães, suíços ou americanos, gostavam dele, por ser pacato e trabalhador, poupado e prudente. Havia quem abusasse da sua dedicação, e ele sabia-o. Sentia-se enganado, mas apesar disso trabalhava com afinco.
Um dia, Portugal recebeu uma boa notícia da terra. Aqueles que abusavam dele tinham sido afastados. A opressão acabara e ele podia regressar, para viver rico e feliz na sua própria casa. E Portugal voltou, porque já não seria preciso ser pacato e trabalhador, poupado e prudente. Era um país democrático, livre, independente. A nova geração iria viver como os patrões franceses e alemães. E Portugal gastou. Criou autarquias e dinamização cultural, comprou frigoríficos e televisões, fez planeamento económico, exigiu escolas e hospitais.
Só que a euforia da liberdade política criou um problema de endividamento.
Quatro anos após regressar, Portugal estava falido, com o FMI à porta, exigindo pagamento. O choque foi grande. Portugal compreendeu que, afinal, não era como os patrões europeus. Estava tão desgraçado como os mexicanos, os argentinos, os gregos e outros países da dívida. O buraco era enorme. Não havia solução.
Foi então que Portugal se lembrou de seus pais, pacatos e trabalhadores, poupados e prudentes. E perante a austeridade do FMI, Portugal esforçou-se, apertou o cinto, labutou, amealhou e pagou as dívidas. Os países credores não acreditavam que fosse possível a recuperação, enquanto os dirigentes e políticos bramavam contra a nova ditadura do dinheiro e exigiam direitos. Mas Portugal não quis ouvir e, uns anos depois, tinha a casa em ordem. Foi espantoso!
Os europeus, admirados, gostaram de Portugal, por ser pacato e trabalhador, poupado e prudente. Quando o viram de novo com as contas certas e a vida organizada, aumentaram-lhe o ordenado, ofereceram-lhe sociedade. Portugal entrou na CEE. Jantou com os antigos patrões, de igual para igual. Passou a ser europeu.
Até que um dia Portugal recebeu uma boa notícia. Os seus esforços tinham sido recompensados e ele fora admitido na moeda única. A partir de agora iria partilhar não apenas instituições e directivas, mas taxas de juro e crédito. Era finalmente um parceiro a sério, considerado mesmo igual. Pertencia ao clube, não apenas político, mas financeiro. Podia viver rico e feliz na sua terra.
E Portugal achou que já não seria preciso ser pacato e trabalhador, poupado e prudente. A nova geração iria viver como os parceiros franceses e alemães porque, graças ao euro, pedia dinheiro emprestado nos mesmos bancos e aos mesmos preços. Casaria até a filha com o filho deles. Era um país desenvolvido, capitalista, globalizado. E Portugal gastou. Construiu auto-estradas, fez parques industriais, exigiu computadores para todos os alunos e novas carreiras médicas.
Só que a euforia da liberdade financeira criou um problema de endividamento.
Dez anos depois de entrar no euro, Portugal estava falido, com a troika à porta, exigindo pagamento. O choque foi grande. Portugal compreendeu que, afinal, não era como os países ricos. Estava tão desgraçado como irlandeses, gregos, argentinos e outros países da dívida. O buraco era enorme. Não havia solução.
Então Portugal lembrou-se de seus pais e avós, pacatos e trabalhadores, poupados e prudentes. A nova geração voltou a velhos hábitos. Agora, perante a austeridade da troika, Portugal esforça-se, aperta o cinto, labuta, poupa e paga as dívidas. Os credores não acreditam que seja possível a recuperação, enquanto os dirigentes bramam contra a ditadura do dinheiro e exigem direitos. Mas Portugal não quer ouvir. Labuta, amealha, emigra e procura vida melhor noutras terras. E os patrões, franceses ou alemães, suíços ou americanos, gostam dele por ser pacato e trabalhador, poupado e prudente. Parece um filme!
É com Oliveira Martins e o estado actual da Nação, com breves investidas nos textos daquele para melhor acentuação das semelhanças entre passado e presente, e idêntico sentido crítico com que ambos os historiadores envolvem a respectiva contemporaneidade, que Vasco Pulido Valente inicia o seu artigo do Público, de 20 de Setembro “Nada de espantar”:«Joaquim Pedro Oliveira Martins foi o homem que melhor percebeu o Portugal da segunda metade do século XIX.”
Com efeito, ambos os historiadores parecem irmanados numa comum arte narrativa de historiar os factos da sua contemporaneidade, tendente a uma percepção objectiva da realidade, mas não isenta de zargunchadas críticas, resultantes de idêntica análise polifacetada de um país que endemicamente descambou em situações economicamente catastróficas:
Os políticos falam hoje constantemente de “erros do passado” mas sem nunca explicarem de que “erros” se trata e sem nunca dizerem com alguma clareza o que espera o país. Com outro carácter e coragem, Oliveira Martins escreveu, em 1894, que a “nação” “se encontrava” perante uma pergunta “vital” : “Há ou não há recursos bastantes, intelectuais, morais, sobretudo económicos, para subsistir como povo autónomo dentro das estreitas fronteiras portuguesas.” Como se chegou aqui em 1894 e como se chegou aqui em 2013? Num artigo breve e claro, Oliveira Martins tenta responder. E a resposta só surpreenderá o pior analfabeto em circulação.
Em 1851, no começo da maior expansão do capitalismo na Europa, as potências financeiras do tempo (a Inglaterra e a França) voltaram a ver em Portugal uma boa oportunidade “a explorar” e as bolsas, “passando a esponja do esquecimento” sobre as “bancarrotas” anteriores, “abriram os seus cofres”. Em 40 anos, o nosso “Tesouro Público (…) conseguiu obter por empréstimo uma soma aproximadamente de 90 milhões esterlinos efectivos, em bom ouro”. O resultado acabou por um “cenário” “que dava a Portugal a aparência de um país rico”, “coalhado” de caminhos-de-ferro e também de estradas, com dois portos modernos, Lisboa e Leixões. E os governos iam garantindo a paz doméstica com o “comunismo burocrático”, que vinha substituir o antigo “comunismo monacal”: o Estado contratou “muitos milhares de funcionários, mais ou menos opiparamente prebendados”, “a legião nova dos beneficiados de obras públicas e centenas de concessionários”, que rapidamente enriqueceram.
Infelizmente não se podia viver “salariando a ociosidade” e “suprindo a escassez do trabalho interno com subsídios oficiais”, à custa do dinheiro de fora. Portugal não se aguentaria, se continuasse a depender de “recursos estranhos ou anormais”, e não do “fruto” da sua produção e economia. Isto “não era segredo para ninguém mediocremente instruído”. E não se deve considerar o fontismo um erro, como não se deve considerar a política da II República um erro ou uma série de erros. Nos dois casos a “fortuna enganadora” do país serviu a ambição e o interesse da elite que tomou conta do regime e de uma classe média ignorante, cretinizada pelos partidos. E quem se espantar que se espante primeiro de si.
O mergulhar, pela pena de Pulido Valente, em excertos de Oliveira Martins, leva-me a transcrever ainda, (por me parecer pertinente de actualidade e de “relativa” utilidade), de “Explicações”, antepostas à 2ª edição de «Portugal Contemporâneo» (1883), de Oliveira Martins, o penúltimo parágrafo crítico e moralizador, (se é que este último adjectivo não provoca antes o riso superior dos que o aboliram da sua prática, pelo preconceito, tão banalizado já, da “relativização” dos conceitos:
As necessidades urgentes de Portugal são maiores e mais complexas (do que as preconizadas pelos que, “educados ainda no radicalismo, pensavam que o seu ofício consistia em pregar moral e em decretar reformas radicais”). Liberdade há suficiente, demais até: ninguém pensa hoje em dia em atacar esses direitos do indivíduo que andam erradamente nas Constituições, quando o seu verdadeiro lugar seria o código civil; mas urge reformar num sentido prático os sofismas que, sob o nome de “liberdades”, corrompem até à medula o corpo desta sociedade. Urge moralizar a administração e extirpar o parasitismo que nos rói. Urge pôr um ponto de ordem no desvairado rumo das finanças, no regime iníquo e absurdo do imposto. Urge suster na queda, ou amparar na nascença, a navegação e as indústrias para os nossos filhos não serem forçados, à míngua de ocupações, a pedir por esmola um emprego. Urge povoar um território meio deserto e plantar gente nas brenhas que por toda a parte mancham o País. Urge acabar com a agiotagem que, alimentando um Tesouro mendigo, nos conduz rápido à ruína. Urge, numa palavra, moralizar uma política desvairada, levantar uma autoridade abatida; e levantá-la não pela força, mas pelo respeito devido ao saber e ao carácter; urge restaurar as forças económicas de uma nação adormecida e o vigor moral de um povo atormentado.
Mas o nosso mal é como tumor maligno ramificado no território, de pequena gente saracoteante e palradora. Aponto o exemplo de populações de freguesias destruindo urnas de voto ou boicotando as eleições por motivo da agregação da sua a outras freguesias e o mulherio guinchando razões de vaidades feridas, sem ter em conta as necessidades pecuniárias de reformas administrativas. E aponto, é claro, as vaidades regurgitantes dos partidos que ganharam aos do Governo, que palram e palram também sem terem em conta as contas, por hábito velho de parasitismo. Não diferem do mulherio.
As urgências pedidas por Oliveira Martins não são exequíveis, que o nosso mal é endémico. E recuado.