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A bem da Nação

A HOSTIL TOLERÂNCIA

 

 

Portugal tem um grave problema educativo. Tem-no há décadas. Todos o diagnosticam, todos sabem a solução e ninguém resolve. Um livro recente ajuda a perceber as razões do paradoxo.

 

Os pais queixam-se e os professores são crescentemente severos na denúncia dos erros educativos. Aos alunos ninguém pergunta, mas também acham que a coisa vai mal. Com a eventual excepção do ministro do momento, todos dizem que a educação está péssima. E até ele estará de acordo, logo que saia, como todos os antecessores e possíveis sucessores.

Uma simples inspecção da estrutura explica a causa: o sistema educativo português segue o modelo estalinista. Aliás é, com Cuba e Coreia do Norte, uma das poucas realidades sociais ainda nesse curioso sistema de duvidosa memória. O Ministério da Educação, descuidando as funções normais desse departamento num estado democrático, assume-se como "gosplan", controlando centralmente estrutura, evolução, gestão e operação dos actos escolares. Assim explodem custos, multiplicam-se desperdícios e pululam professores desocupados. Pior, consciente do problema educativo, o Ministério reage com sucessivas reformas e revisões, introduzindo uma nota original de "revolução permanente" trotskista.

É verdade que, apesar de hegemónico, o mecanismo não é totalitário. Um conjunto de acossadas escolas particulares permanece teimosamente ao lado da esmagadora mole pública. Mas a sua existência é sempre precária, ameaçada, incerta. Em particular nestes anos o ensino privado sofre mais um ataque devastador, que muitos consideram fatal. O mais curioso é que isto não varia com a linha política, pois permanece com qualquer orientação do executivo.
O governo Sócrates foi especialmente agressivo contra a liberdade de ensino, por razões ideológicas, enquanto o governo Passos usa alegadas razões financeiras. O que constitui uma rematada mentira, porque fica muito mais caro ao Orçamento de Estado ter um aluno no sector público que no privado com apoio. Os cortes nos contratos de associação são suicidas para o Orçamento.

Num tempo que apregoa a liberdade como valor supremo, de que a liberdade educativa é parte central, num tempo de concorrência, abertura e globalização, num tempo de privatizações, até forçadas e apressadas, como se explica a tendência estatizante na educação nacional, que repetidamente provou a sua ineficácia? A razão é muito mais profunda que a flutuação governativa e até geracional.

A verdadeira origem vem do traço paternalista da cultura portuguesa, que sempre gosta de sentir a mão protectora do Estado. Até para poder dizer mal dela. Em Portugal nunca houve, nem pode haver, pensamento liberal. Há críticos e defensores do Governo, mas da extrema-esquerda à extrema-direita toda a gente só fala do Estado. Esta atitude de fundo manifesta-se depois nas opções particulares.

 

Os pais querem saber que o Estado paga, mesmo quando o único dinheiro vem dos nossos impostos e é mal gasto. Os professores querem ser funcionários públicos, mesmo que detestem o patrão-Estado. O Ministério quer aumentar ao máximo as suas competências, mesmo sabendo que ficará com culpas de que é inocente.

Isto está patente no livro do professor Jorge Cotovio O Ensino Privado nas Décadas de 50, 60 e 70 do Século XX. O Contributo das Escolas Católicas (Gráfica de Coimbra 2, 2012). A obra monumental, além de exaustiva investigação das fontes documentais, estatísticas e legislativas, inclui 30 preciosas entrevistas a protagonistas, alguns já falecidos. Lendo esta fascinante história compreende-se a questão educativa portuguesa, não apenas nessa época e tipo de escola, mas em geral.

Os trinta anos do período em análise são atravessados por dois regimes com diversos 'Estados' e variadas políticas governamentais. Apesar deste mosaico, e no tocante ao ensino privado e temário conexo, a atitude do Poder manifesta um denominador comum que se pode traduzir pela palavra 'tolerância' (p. 379). Assim não admira que Portugal tenha há décadas um grave problema educativo.

 

 JOÃO CÉSAR DAS NEVES

 

DN 2012-09-24

 

TOMÁS DA FONSECA - Antologia

 

 “RELIGIÃO, REPÚBLICA, EDUCAÇÃO" 

 

 

 

Dos netos, o mais novo, andava eu ainda pela mão dos sábios e já os outros, quase em bando airado, caminhavam pela vida fora...

 

Hoje, se todos vivessem, seríamos praticamente da mesma peara mas naquelas idades bastavam poucos anos para uns serem adolescentes e outros apenas crianças. Eis como pude reter uma imagem do nosso Avô que os meus irmãos e primos viram de modos diferentes.

 

E é por certo essa imagem que se espera que eu hoje aqui traga, a do homem de família, não o homem público magnificamente retratado no prefácio desta preciosa antologia.

 

Como todos podem imaginar, leio sempre o que se aproxima de mim que refira o meu Avô e posso testemunhar que este prefácio foi, de tudo o que sobre ele até hoje li, o que mais me agradou (pese embora escrito em conformidade com os interesses comerciais do crioulo brasileiro).

 

O meu Avô foi uma das pessoas mais eruditas que alguma vez conheci e foi uma das pessoas mais amáveis que alguma vez conheci. Mas também foi de certeza a pessoa mais erudita e amável que alguma vez conheci. Sempre todos soubemos que chegar junto dele era de certeza motivo para ouvirmos uma palavra serena, amável, amiga. Todos gostávamos do seu convívio e era frequente encontrar um pretexto qualquer para promover o sorriso e ter a bondade como instrumento normal da vida. E quando um de nós dizia um disparate qualquer, logo ele acorria com uma risota e com a explicação bem-humorada da expressão correcta.

 

Certa vez, com toda a família à mesa, perguntei-lhe o que queria dizer aquele «palavrão» que ele tinha dito no “Café Juiz de Fora” ao Dr. Afonso[1] e tentei reproduzir o que saiu quase incompreensível. Ia-se engasgando de riso com o disparate que eu disse e os meus irmãos e primos pensaram que eu tinha ensandecido com palavra tão esquisita. E foi com toda a gente ainda a rir que logo explicou o significado de «correligionário».

 

Esta bonomia também se traduzia no aviso que transmitia à minha Avó quando à porta lhe tocava alguém que ele não conhecia e se apresentava com certa marcialidade: - Oh Tilde faz a mala! Mandava entrar os «cavalheiros» e esperava que a minha Avó (que se chamava Clotilde e a que ele carinhosamente chamava Tilde) trouxesse a mala para ele levar para uma estadia no «hotel» que gratuitamente a PIDE lhe disponibilizava.

 

Assim era o meu Avô e isso não consta dos Tratados que sobre ele julgam tudo dizer.

 

Mas esses Tratados dizem coisas muito verdadeiras e em nada contradizem as histórias de família. Quem não o conheceu pessoalmente pode às vezes imaginá-lo um ferrabrás mas pode ficar tranquilo pois não era nada disso. Contudo, a docilidade pessoal nunca o impediu de publicamente ser assertivo e mesmo contundente.

 

Só que uma coisa eram as ideias e outra, muito diferente, as pessoas.

 

Certa vez foi procurado aqui em Mortágua por um Padre holandês e logo tratou de o receber com a cordialidade que lhe era natural. O Sacerdote estava interessado em conhecer a colecção de Bíblias que o meu Avô tinha na sua vastíssima biblioteca mas não conseguiam entender-se facilmente. O meu Avô não falava uma palavra de holandês, o Padre não falava uma de português, o meu Avô estava com o inglês muito emperrado e o francês do Padre estaria em igual estado. Ultrapassados os preliminares por gestos e grunhidos, concluíram que a única língua que dominavam em comum era o latim. E eis que se deliciaram numa longa conversa em latim a que se seguiu uma refeição em que a minha Avó participou mais laconicamente que o habitual.

 

Mas não vos quero maçar mais com histórias de família; apenas quis transmitir a realidade pessoal do Tomás da Fonseca que conheci, o meu Avô.

 

*  *  *

 

Foi recentemente, quando menos esperava, lendo Rob Riemen no seu livro “Nobreza de espírito” (Bizâncio, 2011), que dei por mim a constatar ser precisamente esse o grande legado que o meu Avô me deixara. Não os bens materiais mas sim o conceito ético e político essencial, a nobreza de espírito, ou seja, a realização da verdadeira liberdade que consiste na busca permanente da verdade e do bem, na encarnação da dignidade humana.

 

E convenhamos que não pode haver democracia nem sequer mundo livre sem este alicerce moral. A verdadeira liberdade é aquela que permite seguir na busca do padrão absoluto pelo qual o nível da dignidade humana deve ser medido.

 

Eis o grande ideal que dele herdei.

 

Mas há mais...

 

Quem preza a civilização e a vida intelectual olha para a história do século XX (no qual Tomás da Fonseca desenvolveu a sua grande actividade) com verdadeira perplexidade. Quase diria, com estupefacção. Quantos eruditos – académicos, artistas e cientistas – puseram de lado a vida civilizada optando pelo triunfo da mentira, da ditadura, da violência? Quantos deles colocaram as suas potencialidades às ordens do terror? O rol é incontável.

 

Mas também, quantos os que se recusaram a abandonar a integridade e por isso morreram às mãos dos algozes? Eis outro rol interminável que nos deixa atónitos… E olhando em redor, o que vemos? Vemos exércitos de eruditos que consideram mais importante alcançar a resposta política final do que dizer a verdade e pensar sem preconceitos.

 

Foi depois da guerra de 1939-45 que Hannah Arendt concluiu que a crise só se transforma em drama quando lhe respondemos com preconceitos. E estes mais não são do que as ideias politicamente formatadas. Em vez de recorrerem à liberdade, recorrem às «cartilhas». Ironicamente, fazem-no em nome da liberdade que, desse modo, não praticam nem sequer, afinal, admitem.

 

A traição de parte significativa da intelectualidade está na razão directa da falta de capacidade para assumpção das responsabilidades intelectuais. É para esses mais cómodo responderem às questões com soluções politicamente formatadas do que assumirem a integridade que deles seria legítimo esperar. Não passam daquilo a que Thomas Mann ironicamente apelidava de «literatos da Civilização», os que sabem tudo relativamente ao que os outros pensam, mas pouco ou nada acrescentam da sua própria autoria. Para estes, a felicidade não é uma questão metafísica mas sim e apenas um problema político.

 

Logicamente, arriscam-se a propor soluções baseadas em ideias geradas em contextos completamente diferentes dos que estão na circunstância em observação. É que, se existe algum lugar onde a submissão reina, é seguramente entre os intelectuais politizados. E para cúmulo da ironia, bradam as receitas encartilhadas à mistura com VIVAS à liberdade.

 

E porquê tanta traição à nobreza de espírito? Sedução do poder, influência, inchaço por ser ouvido e quiçá admirado. Numa palavra, vaidade.

 

O significado de conceitos imortais como o do bem, do mal, da compaixão, da sabedoria, da justiça, da virtude, raramente é aflorado porque a linguagem actual preza sobretudo os factos que se analisam em função de objectivos que visam o progresso material. Assim, em nome da liberdade, se mata a nobreza de espírito e se abandona a procura da verdade.

 

Tomás da Fonseca padeceu um bocado à mão dos algozes mas não deixou de apregoar o que considerava ser a verdade e nunca prescindiu da liberdade, por muito que intelectualmente o quisessem agrilhoar. Como ele próprio proclamou em Outubro de 1902 e incansavelmente praticou até ao fim dos seus dias, «procuraremos lançar em cada consciência o gérmen santíssimo do dever para que a árvore do Bem floresça em cada coração. Em vez de infernos sulfurosos, cantaremos a terra gloriosa (...) onde temos a vida e onde temos a morte, na marcha universal dos seres, na evolução dos mundos, de que nós, animais de iniciativa e de protesto, somos ainda e sempre a molécula inteligente e viva» (pág. 51 da obra hoje apresentada).

 

Enfim, passados todos estes anos que dele apenas me lembro, sou levado a resumir em três palavras a Ética que me legou: eu, tu, ele. «O que é que eu devo fazer a teu favor sem o prejudicar a ele, esse terceiro que eventualmente nem conheço?». E se pusermos a questão no plural – nós, vós, eles – e nos perguntarmos «o que é que nós podemos fazer por vós sem os prejudicarmos a eles, esses terceiros que não estão presentes», então chegamos a outro conceito igualmente agnóstico e alheio às vicissitudes resultantes da ira divina, o Sentido de Estado.

 

Aí está: Tomás da Fonseca era um espírito nobre que espalhava as suas próprias ideias, não as encartilhadas que lhe quisessem impor.

 

Eis o meu Tomás da Fonseca.

 

E passados todos estes anos, que ganhámos com as pelejas por ele travadas?

 

Seguindo a ordem por que a presente antologia coloca os grandes temas, reconheçamos que desapareceu por completo a quase hierocracia que se vivia em Portugal nos anos da sua juventude e que as matérias da Fé estão hoje muito correctamente colocadas na esfera da intimidade de cada cidadão; a República é actualmente um Regime em que todos somos iguais perante a Lei, em que ninguém vê a liberdade condicionada pelas ideias políticas que professa, em que todos nos empenhamos diariamente no aperfeiçoamento do civismo, em que somos representados por quem elegemos directamente e não por ungidos ou manipuladores de fuzis. E, finalmente, a questão da educação: lembremo-nos de que em 1910 a taxa de analfabetismo rondava os 90% da população adulta, que em 1974 ela ainda era de 25% e que o recenseamento de 2011 ainda nos revelou uns miseráveis 9%.

 

Não fora este analfabetismo adulto perfeitamente terceiro-mundista e poderíamos dizer que Tomás da Fonseca era um pleno vencedor das causas difíceis por que lutou.

 

Fica a pergunta: faltará outro século para alcançarmos finalmente a vitória que no seu traçado de vida falta cumprir?

 

Uma sugestão final que endereço especialmente a quem se apresta a ler esta antologia: meditem bem na frase de Cesário Verde citada na página 192 cuja verdade me parece plenamente actual [A imprensa vale um desdém solene].

 

E a quem acredite nos valores da ética, da liberdade e da dignidade humana, convido a que continuemos a obra que Tomás da Fonseca nos legou.

 

Obrigado pela atenção.

 

Mortágua, 28 de Setembro de 2012

 

 Henrique Salles da Fonseca

 

 

                       



[1] - Pai do Dr. Bráulio Afonso (Presidente da Câmara Municipal de Mortágua após 1974)

QUANDO AS AMIGAS CONVERSAM...

CANDIDE - só faltava a Purificação

 

Hoje a dona do café veio perguntar-nos radiante, julgo que pelo prestígio que, no seu foro íntimo, o seu café passaria a ter, após a auspiciosa presença que tomou a sua bica ao balcão, na pressa dos seus afazeres públicos:

- Sabem quem acabou de sair daqui?

 

Não reparáramos, entretidas que estávamos a dar conta dos caprichos meteorológicos, que nos fizeram abandonar a esplanada, e logo ela explicou que se tratava de Cândida Almeida, a procuradora-geral Adjunta, que todas nós escutáramos embevecidamente há dias, quando declarou alto e bom som em Castelo de Vide que não havia corrupção em Portugal, donde se depreendia que era tudo fofoca.

Eu e a minha amiga até nos tínhamos penitenciado das nossas fofocas várias vezes acusadoras dos distúrbios das vigarices nacionais à medida que os media os vão propalando, com extraordinária dimensão e sem poupar ninguém, sobretudo aqueles a quem a vida mais promoveu, e que a nossa mesquinha inveja mais deseja eliminar.

 

- Por isso ela se chama Cândida, esclareceu a minha amiga com compostura.

- Só falta da Purificação, largou a minha filha que veio à sua bica pingada, antes de partir para as aulas da tarde.

- Oliveira – acrescentou a minha amiga, na seriedade dos seus cursos acidentais de rua, com livrinhos esclarecedores, fornecidos pelas Testemunhas de Jeová.

 

Mas eu defendi Cândida, considerando tratar-se a sua expressão de uma visão optimista, embora sem o cariz irónico do Candide de Voltaire, e mais do foro humanitário do nosso santo Padre Américo, para quem o lema “Não há rapazes maus” era ponto assente, como o da nossa Cândida Almeida, apesar de a minha amiga contestar que a rapaziada do Padre Américo pertencia à rua, não se tratava dos referidos no discurso televisionado da nossa Cândida.

 

Fosse como fosse, o que nos tornou mesmo felizes foi a satisfação da nossa simpática dona do café, que vê na presença de Cândida um furo para o seu negócio em baixa. Eu candidamente espero que assim seja, mas a minha amiga tem a mania de me tratar por madre Teresa de Calcutá quando eu revelo certas ingenuidades menos comuns, e assim o disse hoje. Quando se fala de confiança logo vem o mais sabedor falar de utopia!

 

Mundo muito mal feito, Marquês!”, diria Afonso da Maia ao ser embaraçadamente surpreendido nas suas caridades (Cap. X de “Os Maias”). É por isso que não se me dá que Cândida Almeida tenha dito o que disse. Puro acto de caridade ou de bondade, como o do nobre avô de Carlos da Maia, e não embarque em submissa navegação nas nossas procelas nacionais.

 

 Berta Brás

O que é "democracia"

 

 

 

Eu tenho muita dificuldade em compreender o que se passa em Portugal no campo da política. E gostava que os portugueses, que por toda a parte clamam que vivemos em democracia, me dissessem quais são, para essas pessoas, as características principais que um sistema político tem de possuir para ser considerado democrático.

 

Eu vivi uma boa parte da minha vida na anterior ditadura, que sempre combati, pois não gosto de tais sistemas. Nunca me juntei à chamada "oposição", uma amálgama de pessoas com as mais diversas opiniões e credos, cujo único ponto de contacto era... oposição ao que havia. Mas nenhuma coerência em relação ao que viria depois. Incluía todos os sectores da esquerda à direita, onde o grupo mais activo e bem organizado era o partido comunista.

 

Muitos deles diziam que "é preciso mudar isto" e, quando eu acrescentava "para melhor", insistiam que "o que é preciso é mudar", o que me arrepiava, pois eu sabia que era possível ter pior.

 

No seu artigo no LE de 20-9-2012, Ventura Trindade fala da "nossa democracia". Gostava que me dissesse quais são as características que, como digo no início, considera serem as mais importantes para um sistema ser considerado democrático.

 

O que eu sempre considerei ser importante, no antigamente como agora, é a liberdade de elegermos quem quisermos para dirigir os destinos do país. Isso é o que a palavra democracia significa, o poder residir no povo e não numa pessoa ou num restrito grupo de pessoas. Tal liberdade não existia na anterior ditadura. Mas como agora também não existe, há que concluir que estamos em ditadura. Um sistema em que os cidadãos não se podem candidatar a deputados e, quando votam, só têm "licença" de escolher uma de meia dúzia de listas (com ordem fixa) feitas ditatorialmente por outras tantas pessoa, é ditadura em qualquer parte do mundo, menos em Portugal.

 

Nunca tencionei candidatar-me a deputado, mas não tolero não ter esse direito. E, quando voto, para escolher a "menos pior" das péssimas listas que me apresentam, sinto a mesma frustração do antigamente.

 

Considerando que a outra ditadura nunca causou aos portugueses uma tão grande degradação no seu nível de vida, nem atirou o país para uma tão baixa situação - até o tirou duma situação muito semelhante à actual - tenho de concluir que esta ditadura é pior que a outra.

 

Quanto à pergunta que os espanhóis fizeram a Ventura Trindade, "Que opinião nos podes dar sobre a experiência democrática que vocês portugueses estão a viver desde o 25 de Abril?" a resposta que considero correcta seria: "não estamos". Explicar porque Portugal nunca esteve em democracia já não cabe neste artigo e talvez fique para outro. Mas fico a pensar se Ventura Trindade já se esqueceu que, no início, quem tudo mandava era o MFA (ditadura militar), que em breve, com a subida de Vasco Gonçalves ao poder, se tornou uma ditadura militar comunista (que espezinhou todas as belas promessas do que Spínola leu na madrugada de 26), que foi eleita, sem os cidadãos se poderem candidatar, uma Assembleia Constituinte que levou um ano para elaborar uma Constituição que não dá aos portugueses liberdade de escolherem os seus governantes, Constituição que foi imposta ao povo sem plebiscito (pois sabiam que seria reprovada), o que, em tempos actuais, não é admissível e lhe dá pés de barro.

 

Gostava que me mostrassem em que é que eu estou errado.

 

 Miguel Mota

 

Publicado no Linhas de Elvas de 27 de Setembro de 2012

ANGOLA E A SUA ECONOMIA – 6

 

 

O DESEMPENHO DOS SECTORES PRODUTORES DE

BENS TRANSACCIONÁVEIS NA ANGOLA ACTUAL

 

4. Conclusão

 

A não recuperação até agora verificada, decisiva, dos sectores de bens transaccionáveis, parece transcender obviamente as respectivas políticas sectoriais. Trata-se de um problema de lógica global no domínio económico.

 

O que está em causa é que a lógica rendeira estabelecida – incluindo a generalização dos comportamentos de rent seeking – inviabiliza a criação das condições de incremento da competitividade imprescindíveis à recuperação da produção nacional[1]. O indicador da evolução da taxa de câmbio real de Angola na presente década é a expressão inequívoca dessa circunstância[2].

 

Seja como for, não é inclusivamente possível a recuperação produtiva nacional – paradigmaticamente expressa no desempenho dos sectores de bens transaccionáveis – com o actual sistema de preços, distorcido na sua formação, pelo peso dos comportamentos de rent seeking, em última instância contribuintes para a inviabilização da criação de condições de competitividade do país. 

 

Este é o problema central para o qual concorre a lógica económica determinante dos citados comportamentos de rent seeking, a par da adopção e apropriação, na prática, do paradigma neo-liberal[3].

 

Uma verdadeira estratégia de desenvolvimento do país teria necessariamente de equacionar a ultrapassagem, a médio e longo prazo, da lógica rendeira nos vários domínios que não só o da economia.

 

FIM

 

 Emmanuel Carneiro

1992-1993 – Ministro do Comércio e Turismo do Governo de Angola

1993-1994 – Ministro das Finanças do Governo de Angola

1996-1999 – Ministro do Plano e Coordenação Económica do Governo de Angola

 

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

 

Ahmed, A.S., Économie de l’Industrialisation à partir des Ressources Naturelles, Tome I, Publisud, 1989

 

Dilolwa, C.R., Contribuição à História Económica de Angola, I.N.A., Luanda, 1978

 

Carneiro, E., Especialização Rendeira e Extroversão na África Subsariana – Caracterização e Consequências, Principia, Lisboa, 2004

 

Carneiro, E., «Reflexões em torno da actual conjuntura económica da África Sub-Sahariana», Revista Direito e Sociedade, nº2/2007, Catanduva (São Paulo), 2007

 

Carneiro, F., Development Challenges of Resource-Rich Countries: The Case of Oil Exporters, The World Bank, 2007

 

Cottenet, H., « Ressources Exogènes et Croissance Industrielle: le Cas de l’Égypte », Revue Tiers Monde, nº 163/2000, p. 523-546   

 

Elsenhans, H., Development and Underdevelopment – The history, economics and politics of North-South relations, Sage Publications, 1991

 

Ministério da Indústria, Plano de Médio Prazo para o Período 2009-2013

 

UCAN, Relatório Económico de Angola 2006, CEIC/UCAN, Luanda, 2007 

 

Vils, O., «Les Relations État/Société dans les Pays Rentiers ou Post-rentiers: Appropriation des Rentes et Élites Économiques en Jordanie», Revue Tiers Monde, nº163/2000, p. 547-572

 

World Bank (The), World Development Indicators 2006, 2006   



[1] Tenha-se em atenção o que acima foi explicitado acerca dos mecanismos e consequências da “doença holandesa”.

[2] Vide, de forma inequívoca, Carneiro, F., 2007 (p.6). De igual modo o relatório preliminar, de 2006, da missão do FMI de consultas nos termos do Artigo IV refere que “a taxa de câmbio real em fins de 2005 estava 40% acima do respectivo nível dos dois anos precedentes”. O que se acaba de se expor está em total e frontal contradição com os níveis de inflação patenteados pelas publicações oficiais e reproduzidos em UCAN, 2007, pelo que os mesmos enfermarão de uma evidente falta de credibilidade. Estes identificam, para 2005, uma inflação acumulada nesse ano, de 2.75% para os bens não transaccionáveis e de 9.23% para os bens transaccionáveis o que, se não só se afigura como um contra-senso com o acima referido, está frontalmente em contradição com a prática quotidiana.

[3] A imposição, aceitação e apropriação do paradigma neo-liberal traduz-se na adopção geral do objectivo da assunção do que já se apelidou de “equilíbrio de segundo nível da economia rendeira”, isto é, da obtenção de uma estabilidade macroeconómica possível, com a manutenção de uma base material rendeira. Cf. Diallo, M.L., Les Africains Sauveront-ils l’Afrique?, Karthala,1996.

ANGOLA E A SUA ECONOMIA – 5

Agricultura tradicional (de subsistência)

 

O DESEMPENHO DOS SECTORES PRODUTORES DE

BENS TRANSACCIONÁVEIS NA ANGOLA ACTUAL

 

 

3. O desempenho dos sectores produtores de bens transaccionáveis, em Angola, na década actual

 

 

3.2. A análise da evolução dos sectores produtores de bens transaccionáveis, na actual década

 

A seguir se explicitam os seguintes agregados globais relativos aos sectores da agricultura e da indústria transformadora:

 

Crescimento do Produto

(Percentagens médias de crescimento anual)

 

                                                         Agricultura                            Indústria Transformadora

              1990-2000                               -1.4%                                              -0.3%

              2000-2004                              13.7%                                              11.3%

Fonte: The World Bank, World Development Indicators, 2006

 

Produção Agrícola

Total da produção agrícola

Percentagens médias anuais de crescimento

(Base: 1999-2001)

              1990-1994                                              4.9%                                                           

            2000-2004                                             2.5%

              2002                                                       0.2%

              2003                                                       2.0%

              2004                                                      -1.1%

Fonte : UNCTAD, The Least Developed Countries, Report 2006

 

Produção agrícola per capita

Percentagens médias anuais de crescimento

(Base : 1999-2001)

              1990-1994                                              1.8%

              2000-2004                                             -0.7%

              2002                                                      -3.0%

              2003                                                      -1.3%

              2004                                                      -4.3%

Fonte : UNCTAD, The Least Developed Countries Report 2006

Total da produção de alimentos

Percentagens médias anuais de crescimento

(Base : 1999-2001)

              1990-1994                                              5.2%

              2000-2004                                              2.7%

              2002                                                       0.4%

              2003                                                       2.0%

              2004                                                      -1.1%

 

Fonte: UNCTAD, The Least Developed Countries Report 2006

 

Produção de alimentos per capita

Percentagens médias anuais de crescimento

(Base: 1999-2001)

 

              1990-1994                                              2.0%

              2000-2004                                             -0.6%

              2002                                                      -2.8%

              2003                                                      -1.3%

              2004                                                      -4.3% 

 

Fonte: UNCTAD, The Least Developed Countries Report 2006

 

 

Indicadores Vários

 

 

Índice de produção alimentar 2004                          113               (2001=100)

Índice de produção não alimentar 2004                     89               (2001=100)

Índice de produção de gado 2004                              100               (2001=100)

Índice de produção alimentar per capita 2004        100               (2001=100) 

 

Fonte: The World Bank, Africa Development Indicators, 2006

 

Inputs Agrícolas

 

Área Utilizada na Produção de Cereais

 

1989-91                                                                                                             883 mil ha.

2003-05                                                                                                          1 372 mil ha.

 

Fonte: The World Bank, World Development Indicators 2006

 

Consumo de Fertilizantes

(cent.gr./ha de terra arável)

 

1989-1991                                                                   2003-2005

 Angola                                                          46                                                    2

África Sub-sahariana                                      142                                                123

Mundo                                                           992                                                986

 

Fonte: The World Bank, World Development Indicators 2006

 

 

 

 

 

Maquinaria Agrícola

(tractores por 100 K2 de terra arável)

 

1989-1991                                                                 2003-2005

 

Angola                                                               35                                                   33  

África Sub-sahariana                                           20                                                   13

Mundo                                                              187                                                194

 

Fonte: The World Bank, World Development Indicators 2006

 

 

 

Produtividade Agrícola

(valor acrescentado por trabalhador agrícola - $ de 2000, constantes)

 

 

                                                                 1992-1994                                           2002-2004

 

Angola                                                               99                                                  168 

África Sub-sahariana                                         294                                                  341 

Mundo                                                             770                                                  864

 

Fonte: The World Bank, World Development Indicators 2006

 

 

 

 

Peso dos sectores da Agricultura e da Indústria Transformadora no PIB

 

                                                                Agricultura                          Indústria Transformadora

              1990                                                 18%                                                  5%

              1999                                                   7%                                                  4%

              2004                                                   9%                                                  4%

 

Fonte: The World Bank, World Development Indicators, 2006  

 

 

 

Evolução da Indústria Transformadora

Peso específico real dos vários Ramos

(Em percentagens e a preços constantes de 2005)

 

                                                 2000           2001         2002         2003         2004         2005

 

Alimentação                            29.9            41.4           45.1         27.8          35.1           34.0 

Bebidas                                    39.2            40.2           37.3         50.8          46.8           47.6   

Minerais não metálicos           15.9            12.6           11.2         10.4          10.0             9.1 

Restantes                                15.0              5.8             6.4         11.0            8.1             9.3

 

Fonte: Ministério da Indústria de Angola, Plano de Médio Prazo para o período 2009-2013

 

 

 

 

 

 

 

Estrutura da Indústria Transformadora em 2005

Por principais produtos, em % do valor total

 

Pão                                                                                 32.2%

Cerveja                                                                          32.0%

Refrigerantes                                                                10.5%

Vinho de mesa                                                                4.9%

Cimento                                                                          3.7%

Clinquer                                                                         4.2%

Outros                                                                           12.5%

 

Fonte: Ministério da Indústria de Angola

 

 

No que diz respeito ao sector a agricultura e, a despeito das incongruências e da insegurança que as estatísticas oficiais acarretam[1], parece legítimo explicitar algumas conclusões gerais:

  • Regista-se uma certa recuperação da actividade do sector após o ano 2000. A produção agrícola terá crescido a uma taxa média anual de 2.5% entre 2000 e 2004 (embora tenha regredido no ano de 2004 em relação a 2003).
  • Tais incrementos deveram-se aos acréscimos da produção de alimentos, entretanto não acompanhados pela produção agrícola não alimentar. É contudo irregular a progressão das principais culturas alimentares (milho, mandioca, batata, amendoim e feijão). Assim, se de acordo com o MINADER[2], a produção de milho terá passado de 577 mil ton. em 2003/2004, a mesma terá caído para 526 mil ton. em 2005/2006 (após ter atingido 734 mil ton. em 2004/2005); de igual modo, se as produções de mandioca e de batata apresentam crescimentos permanentes entre 2003 e 2006, as produções de amendoim e feijão evidenciam um comportamento oscilante.
  • Seja como for, o crescimento da produção agrícola não acompanhou o crescimento da população pelo que, de 2000 a 2004, a produção agrícola per-capita decresceu a uma média anual de 0.7%. Significa isto que, cada vez mais, a produção agrícola angolana – que supre agora cerca de 46% das necessidades alimentares, segundo o MINADER – é insuficiente para alimentar a sua população
  • O crescimento aludido não se afigurou como capaz de alterar sensivelmente o actual peso do sector da agricultura no conjunto da produção nacional (em relação ao ano de 1999). Remarque-se entretanto que tal peso específico era, em 1990, cerca do dobro do de 2004. E o aludido Relatório Económico Anual da UCAN (UCAN, 2007) refere, inclusivamente, uma certa regressão nos últimos anos: o peso do sector da “Agricultura e Pescas” terá passado de 9.7% em 2004 para, sucessivamente em 2005 e 2006 para, respectivamente, 8.6% e 7.8%.

 

O final da guerra terá sido o factor fundamental de crescimento da produção agrícola alimentar. Considerando o “carácter informal da economia da esmagadora maioria dos produtores” (UCAN, 2007), um mais livre acesso às lavras interditas pelo conflito bem como a sua desminagem propiciaram, de forma quase espontânea, tais incrementos. Foi assim factível um incremento substancial na área utilizada, por exemplo na produção de cereais a qual passou de 883 mil ha. em 1989-91, para 1 372 mil ha., em 2003-05 (The World Bank, 2006).

 

  No que diz respeito à produtividade, os elementos disponíveis são realmente contraditórios. Esta circunstância, amplamente explicada em UCAN, 2007, é corroborada pelos seguintes elementos:

  • O consumo de fertilizantes conheceu um decréscimo drástico, passando de 46 cent.gr./ha. em 1989-91 para 2 cent.gr./ha. em 2000-02 (The World Bank, 2006)
  • O número de tractores por 100 km2 de terra arável passou de 35 em 1989-91 para 33 em 2001-03 (The World Bank, 2006)

 

Assim, é de difícil aceitação que o valor acrescentado por trabalhador agrícola (em US$ constantes de 2000) tenha crescido de UD$ 99 em 1992-94 para US$ 168 em 2002-04[3] tendo em conta, nomeadamente os valores referidos para o consumo de fertilizantes bem como o emprego de tractores.

 

O Programa Geral do Governo para 2005/2006 explicita, para o sector da agricultura, o objectivo do “fomento da produção de bens que contribuam para a redução das importações em bases competitivas” (UCAN, 2007, p.88). Não se vislumbram contudo os meios práticos e actuantes visando a assunção de tal objectivo tanto mais que, em lado algum, o incremento da produtividade e da competitividade (e logo da competição com as importações) parecem assumir uma preocupação nuclear[4]. Esta é uma questão capital.

 

Esta circunstância reflectir-se-á ainda na forma como, na prática, se tem conduzido o investimento público do sector. O investimento público tem-se centrado nos projectos de irrigação, com a execução de cerca de 61% do orçamento do sector (UCAN, 2007, p.100), bem como em “dois projectos agro-industriais (algodão no Kwanza Sul e Fazenda de Pungo Andongo)” com a canalização de 33% das verbas do Orçamento Geral do Estado para investimentos no sector (UCAN, 2007, p.100). Não se fizeram ainda sentir, entretanto, os resultados práticos de tais investimentos quer em termos de incrementos de produção, de produtividade bem como de competitividade.

 

O comportamento da indústria transformadora pode finalmente ser brevemente apreendido através de um conjunto de circunstâncias e indicadores que, na sua crueza, o retratam.

 

Se o “ciclo do petróleo”[5], iniciado em 1973 e a guerra[6] provocaram uma profunda desindustrialização do país após a sua independência nacional, a década de 2000 não evidenciou, até agora, qualquer sinal de re-industrialização:

  • O peso da indústria transformadora no PIB manteve-se praticamente constante desde 1990. Passou de 5% em 1990 para 4% quer em 1999 quer em 2004 (The World Bank, 2006)
  • A indústria transformadora evidenciou um crescimento anual de 11.3% em 2000-2004 (Tha World Bank, 2006) que é necessário interpretar
  • Tal interpretação far-se-á através da actual estrutura produtiva do sector[7]: o pão, a cerveja e os refrigerantes representam cerca de 75% da sua actividade
  • Se ao pão, à cerveja e aos refrigerantes acrescentarmos o vinho de mesa (mera embalagem de vinho importado), o clinquer e o cimento[8] (essencialmente ligados ao boom imobiliário) teremos um total de cerca de 88% da produção nacional.
  • Facilmente será de concluir que o crescimento da produção patenteado não aponta para um processo de recuperação da indústria nacional. O tipo de actividades em questão não contribui, de facto, para um adensamento da matriz intersectorial produtiva nacional, dado o carácter incipiente dos respectivos efeitos a montante e a jusante. Tratam-se de respostas pontuais aos incrementos na demanda decorrentes do boom petrolífero (boom imobiliário e incrementos da procura de certos bens de consumo por parte de extractos rendeiro urbanos).

 

(continua)

 

 Emmanuel Carneiro

1992-1993 – Ministro do Comércio e Turismo do Governo de Angola

1993-1994 – Ministro das Finanças do Governo de Angola

1996-1999 – Ministro do Plano e Coordenação Económica do Governo de Angola



[1] O analista é comummente confrontado com situações de inconsistência entre os vários valores apresentados pelo que as conclusões decorrentes da análise dos mesmos só têm sentido como significando, na melhor das hipóteses, meras tendências. Nunca é demais remarcá-lo.

[2] Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural de Angola.

[3] Tais incrementos de produtividade baseiam-se em valores utilizados pelo Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural que referem, por exemplo para a produção de milho, uma produtividade de400 a500 kg./ha, igual ou superior ao período colonial (UCAN, 2007). De igual modo e ainda no relatório citado, a produtividade média de 12 ton./ha na produção de mandioca, é posta em causa.

[4] Talvez, por um “sexto sentido” indiciar que tal objectivo não depende realmente e em última instância do sector, mas da condução da política económica (ou simplesmente da política) do país.

[5] Por actuação da chamada doença holandesa.

[6] Principalmente por absorção de recursos, tão necessários à política de substituição de importações, em dada fase adoptada.

[7] Valores do Ministério da Indústria de Angola, relativos a 2005.

[8] De produção insuficiente para fazer face ao boom quer do quer do imobiliário (essencialmente) quer das obras públicas. Por isso são realizadas crescentes importações de cimento.

ANGOLA E A SUA ECONOMIA – 4

 

Luanda - mercado «Roque Santeiro»

 

O DESEMPENHO DOS SECTORES PRODUTORES DE

BENS TRANSACCIONÁVEIS NA ANGOLA ACTUAL

 

3. O desempenho dos sectores produtores de bens transaccionáveis, em Angola, na década actual

 

3.1. Questões prévias

Torna-se necessário, desde já, inventariar algumas questões prévias enquadradoras da análise:

  • De um modo geral, os dados disponíveis só dizem respeito ao sector formal da economia. Se, em relação ao sector da agricultura, alguma faixa da actividade económica relevante, tida como informal (nomeadamente na agricultura de subsistência)[1]      integra, embora de modo incompleto, os dados oficiais disponíveis, em relação à indústria transformadora, tal não acontece. Contudo, se as actividades não controladas centralmente têm um grande significado a nível do alívio das condições de vida das populações, no caso vertente e em termos de peso nos macro-agregados, tal não se verificará.
  • Há que  ressaltar a extraordinária insegurança em relação à fiabilidade dos dados estatísticos. Realmente, se são óbvias as contradições entre os dados quando compulsadas várias fontes[2] é ainda significativo o facto de, face à ausência de informação adequada por parte das empresas, alguns dos valores globais são obtidos “por estimativa”. Esta circunstância introduz um perigoso elemento subjectivo quer na apresentação de tais valores quer, obviamente, na análise.
  • Após um devastador conflito bélico – como o angolano – os “níveis de partida” são extremamente baixos. Esta circunstância deve ser especialmente tida em conta em relação ao sector da agricultura em que a actividade foi particularmente condicionada pela desestabilização político-militar nos campos, pela minagem de vias e lavras, pela deslocação forçada das populações. O facto de os níveis de partida serem particularmente baixos determina que incrementos mesmo que modestos da actividade se traduzam em percentagens de aumento significativas em relação à base de partida.
  • Na análise e decifração dos números, deverão estar presentes duas circunstâncias envolventes fundamentais:
    • Que se trata de um período pós-conflito armado
    • Que tal período coincide com um muito acentuado crescimento quer do preço do petróleo no mercado internacional quer da sua produção interna.

 

(continua)

 

  Emanuel Carneiro

1992-1993 – Ministro do Comércio e Turismo do Governo de Angola

1993-1994 – Ministro das Finanças do Governo de Angola

1996-1999 – Ministro do Plano e Coordenação Económica do Governo de Angola



[1] Nas condições concretas da África Subsariana é adequada a definição do conceito de “economia informal” a partir da “noção de modo de vida”, tal como aparece expresso em recente estudo publicado pela OCDE. Aqui as actividades informais são tidas como todas aquelas que constituam “um prolongamento da economia tradicional”. Cf. Igué, J., Le Secteur Informel en Afrique de l’Ouest: Le Cas du tissu traditionnel, OCDE, Paris, 2003.

[2] Circunstância especialmente ressaltada na análise sectorial da agricultura no Relatório Económico 2006, CEIC/UCAN. De igual modo é notória a ausência de informação estatística mais especializada nas publicações internacionais, onde os espaços relativos ao país aparecem não preenchidos.

ANGOLA E A SUA ECONOMIA – 3

(*) 

 

O DESEMPENHO DOS SECTORES PRODUTORES DE

BENS TRANSACCIONÁVEIS NA ANGOLA ACTUAL

 

 

2. Uma necessária breve abordagem teórica (continuação)

 

2.2. Os sectores produtores de bens transaccionáveis, a “doença holandesa” e o desenvolvimento

 

Não cabendo fazer aqui uma explicitação completa dos mecanismos de actuação da chamada doença holandesa, aliás disponível na literatura económica[1], importará contudo, ponderar sobre alguns dos principais aspectos responsáveis pelo seu desencadeamento.

 

De uma forma global, tal doença expressa-se num estiolamento ou um decréscimo sensível da produção de bens transaccionáveis (agricultura e manufactura)[2], como resultado de uma súbita e muito sensível obtenção de recursos adicionais provenientes de incrementos de rendas externas – geralmente advenientes do sector mineiro, mormente da produção/exportação de petróleo.

 

Esta terminologia resulta da identificação, na economia holandesa, de tais sintomas, como resultado dos súbitos e expressivos recursos adicionais resultantes dos booms registados na actividade de produção de gás.

 

Tanto a literatura de inspiração neoclássica como a chamada rentier theory[3] disponibilizam instrumentos que permitem a interpretação das formas de actuação da doença (embora esta de forma mais completa do que aquela).

 

A doença holandesa actua como resultado de vários mecanismos, nomeadamente:

  • Um processo de aplicação preferencial de recursos nos sectores ligados ao boom, sob ponto de vista financeiro bastante mais atractivos quando em comparação com os sectores de bens transaccionáveis
  • Um incremento na procura de bens e serviços (no sector público e não só), como resultado dos súbitos e avultados recursos adicionais obtidos através do boom
  • Um incremento geral e acentuado dos preços dos bens não transaccionáveis, resultante da impossibilidade da rápida satisfação da procura entretanto verificada (devido à rigidez da oferta, neste caso)[4]
  • Uma aplicação preferencial de recursos nos sectores de bens não transaccionáveis, tornados entretanto financeiramente bastante mais atractivos por via dos incrementos de preços verificados nesses sectores
  • Um afrouxamento qualitativo e quantitativo da política orçamental e monetária, em regra com o desencadeamento de défices públicos desadequados e de concessão excessiva de crédito (ao sector público, ou não). De igual modo, regista-se uma mudança nos próprios critérios de realização dos investimentos públicos devido a um sentimento de euforia de abundância de recursos. Os investimentos não são realizados em conexão com o objectivo do incentivo da produção, sendo comummente canalizados para obras de fachada e propaganda. Mesmo em investimentos realizados no sector produtivo, não são comummente acautelados os princípios da racionalidade económica, sendo muitas vezes efectivados numa base ilícita (em conexão com redes de influência público/privadas e/ou através da concessão de crédito, à partida, dificilmente reembolsável). 
  • Uma valorização da taxa de câmbio real, na decorrência:Uma degradação, em consequência, da competitividade do país, expressa numa crescente incapacidade de competir com as importações. Os recursos provenientes do boom não aproveitam o processo de desenvolvimento, contribuindo sim, para o declínio dos sectores de bens transaccionáveis.
    • De um afrouxamento na política cambial (expressa na valorização da taxa de câmbio nominal), devido a um sentimento generalizado de “abundância de divisas”
    • De muito sensíveis incrementos nos preços dos bens não transaccionáveis, não sujeitos a uma concorrência externa e, regra geral, com uma concorrência interna muito limitada, dada a própria natureza do mercado doméstico.
  • Esta é a perspectiva – correcta – obtida a partir do instrumental oferecido pela economia neoclássica e complementada pela rentier theory[5].

 

Contudo, algumas interrogações se impõem:

  • Será que a realidade se pode reduzir, em toda a sua plenitude, a este esquema?
  • Será que a geração da doença holandesa é explicável, se nos situarmos exclusiva ou preferencialmente no domínio económico?
  • Se os factores responsáveis pelo desencadeamento da doença holandesa são de índole puramente económica não será relativamente “fácil” para os decisores estabelecer um conjunto de políticas e de mecanismos que, pela profilaxia, impeçam o desenvolvimento da doença, nomeadamente através da “esterilização” do “excesso” de recursos proveniente do boom?

 

Efectivamente, a realidade é bastante mais complexa e o instrumental oferecido pela economia neoclássica e pela rentier theory não é suficiente para, só por si, explicar a doença. Esta é uma perspectiva a-histórica, não suficiente para a análise da envolvente institucional, social e política, viabilizadora do desenvolvimento da doença. E nem, principalmente, dos constrangimentos à aplicação dos instrumentos de carácter económico atinentes ao seu saneamento.

 

A realidade é infinitamente mais complexa tornando-se necessário integrar as válidas perspectivas parcelares, desde a rentier theory [6]– iniciada a partir dos vários choques petrolíferos, por autores do médio oriente – à moderna visão que estuda o fenómeno integrando-o numa perspectiva histórica, concreta e global. Importará aqui referir, sobretudo, a contribuição de Elsenhans, H[7].

 

Esta confere à análise uma perspectiva histórica não circunscrevendo o fenómeno exclusivamente ao universo do petróleo nem, de uma forma geral, às rendas externas. As rendas internas são igualmente integradas na análise, o que constitui um factor chave de decifração do substrato rendeiro comum[8] transversal às economias e às sociedades da África Subsariana e à sua natureza híbrida onde o modo de produção dominante não é o capitalista, pese embora a sua plena integração no sistema global capitalista com uma “utilidade sistémica”[9] definida pela actual divisão internacional do trabalho. Integra ainda a análise dos factores conducentes a uma “especialização desigual”, nascida e cristalizada ao longo da história, marcante da actual África Subsariana, nomeadamente dos constrangimentos do seu desenvolvimento.

 

(continua)

 

 Emmanuel Carneiro

1992-1993 – Ministro do Comércio e Turismo do Governo de Angola

1993-1994 – Ministro das Finanças do Governo de Angola

1996-1999 – Ministro do Plano e Coordenação Económica do Governo de Angola



[1] São tradicionalmente citados os trabalhos de Corden e van Wijnbergen. Ver, por exemplo, Neary, J. & van Wijnbergen, « Natural Resources and the Macroeconomy: A Theoretical Framework » in P. Stevens (ed.), The Economics of Energy, Edward Elgar, 2000.

[2] Vide Cottenet, 2000 e a justificação porque a síndrome holandesa constitui uma “doença” (p.525-527).

[3] Vide Carneiro, E., 2004.

[4] No caso da África Subsariana, este incremento é acentuadamente agravado pelos custos induzidos pela forma “extraeconómica” de distribuição e redistribuição do rendimento. Cf., a este respeito, Carneiro, E., 2004. 

[5] Enquanto o instrumental da economia neoclássica se situa no campo da “economia pura”, a rentier theory enquadra o fenómeno na sua envolvente social, política e institucional, equacionado ainda as suas consequências, a nível global e até comportamental, da sociedade e da economia. Constitui, contudo, uma análise a-histórica.

[6] A rentier theory, inicialmente suscitada pelo estudo das consequências dos choques petrolíferos em economias do Médio Oriente, a começar pelo Irão, numa dimensão económica, social, política, institucional e comportamental, é aprofundada em Karl, T.L., 1997. Aqui se explica a “inadequação das explicações de carácter económico” na decifração da doença holandesa: “The Dutch Disease is not automatic […] is the result largely of decision-making in the public realm” (p.5-6). É um processo que tem as raízes profundas nos domínios político e institucional, afectando o “modo de desenvolvimento”.

[7] Cf. Vils, O., 2000.

[8] Vide Carneiro, E., 2004. Efectivamente e em relação à África Subsariana, é como se a doença holandesa se fosse instalando e cristalizando ao longo do tempo, comummente não como o resultado de uma percepção súbita de windfall resources, mas sobretudo num contínuo processo histórico moldado pela lógica das sociedades tradicionais bem como por uma especialização económica “desigual”.

LIDO COM INTERESSE – 57

 

Título – DJAN OU A ALMA

Autor – Andrei Platónov

Tradução (a partir do original russo)António Pescada

Editora – ANTÍGONA

Edição – 1ª, Setembro 2012

 

 

Quem eram os Djan? Fugitivos e órfãos de toda a parte. Pessoas que não conheciam Deus, que troçavam do mundo, criminosos. Um povo perdido que não tinha nada, além da alma. Só o coração no peito.

Tchagatáev, ao serviço do Partido, é incumbido de impedir a extinção da tribo Djan, que habita o delta do Amudária, na Ásia Central. Nascido no seio deste povo, Tchagatáev anseia por criar um futuro radiante e por ver despontar naquelas recônditas paragens a aurora do progresso. Porém, depara com seres desesperados, com a aridez da paisagem e das almas e com o silêncio das dunas, que inspira a mudez dos que as cruzam. É nestas regiões infernais, entre foragidos e rejeitados, que salvador e resgatados se confundem, e que Tchagatáev, na mais profunda solidão, ouvirá por fim a sua própria alma.

Andrei Platónov (1899-1951), inédito em Portugal até à publicação d’A Escavação (Antígona, 2011), foi descoberto pelo Ocidente apenas no fim do século xx, fenómeno que resultou na tradução de muitos dos seus livros e na reescrita da história da literatura russa. Foi um caloroso partidário da Revolução de 1917 e, embora poucos tenham escrito de forma tão cáustica e incisiva sobre as suas consequências catastróficas, manteve-se fiel ao sonho que a materializou.

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