v Um “derivado” nada mais é que um contrato. Um contrato que tem de prever uma pluralidade de circunstâncias (os cenários futuros que referi no escrito anterior) e os direitos que cada uma dessas circunstâncias torna exigíveis. Por isso, redigi-lo não é tarefa fácil - ainda que bastantes vezes pudesse ser desempenhada com mais clareza e maior competência.
v Difícil, difícil mesmo, é saber se quem paga para dispor desses direitos (o “comprador” do “derivado”) não estará a pagar de mais - e se quem deve satisfazê-los (o “vendedor” do “derivado”) não estará a receber de menos por isso. Dúvidas que a matemática pode desfazer a priori – mas que só mercados bem organizados conseguem desvanecer de vez.
v Todavia, nas vésperas da crise, o grosso dos “derivados” era negociado “ao balcão” de uns tantos operadores financeiros (onde os Bancos de Investimento norte-americanos tinham a parte de leão) – e cada operação dessas era um caso único, com cláusulas próprias que nunca haviam passado pelo crivo do litígio e da apreciação por um tribunal. Ninguém, de boa fé, poderia dizer o que valiam.
v Em vez de mercados organizados, prevaleciam, então, feixes de negócios avulsos sobre os quais só aqueles operadores pivots (pivots porque apareciam, ora a comprar, ora a vender “derivados”) dispunham de alguma informação confiável. Pouca, mesmo assim.
v Para uma actividade que fazia girar o equivalente ao PIB mundial (cerca de USD 60 biliões) e se concentrava nuns poucos sistemas financeiros, a matemática tinha feito o seu dever, mas as Autoridades de Regulação permaneciam inexplicavelmente apáticas (só a ISDA/International Swapsand Derivatives Association, um organismo de auto-regulação, revelava preocupação e iniciativa).
v Uma das razões para tal apatia residia, creio eu, no facto de os “derivados” serem “contratos contingentes” (uma das partes renuncia, logo de início, a exercer os direitos que o contrato lhe reconhece, nomeadamente, o direito a ser indemnizada se a parte contrária não tiver interesse em levá-lo por diante) - e a contabilidade jamais se sentiu à vontade com este tipo de contratos: como registar direitos e obrigações que podem não ser reclamados nunca? (Curiosamente, os seguros são o exemplo mais antigo de “contratos contingentes”, mas só há bem pouco a analogia começou a ser aproveitada para efeitos de regulação prudencial).
v Se os “derivados” baralhavam as regras da contabilidade tradicional, confundiam ainda mais Reguladores e Supervisores – e durante todo este tempo, nem direitos, nem obrigações emergentes de “derivados” contaram para os Capitais Próprios mínimos exigidos aos Bancos.
v Nestas condições, negociar em “derivados” era, para os Bancos de Investimento (os operadores mais activos), um verdadeiro maná: proveitos (comissões) à cabeça, sem ser necessário provisionar activos, reconhecer passivos e afectar Capitais Próprios. Um almoço grátis, enfim - até a factura ser apresentada a pagamento sob a forma de créditos impossíveis de cobrar ou dívidas a solver de pronto. Foi o que aconteceu, desencadeada a crise – e não antes.
v Tudo começou nos EUA com a confusão entre Bancos que integram o sistema de pagamentos (os Bancos Comerciais) e Bancos de Investimento (cujos passivos não desempenham funções monetárias). Como todos recebiam o nome “Banco” na pia baptismal do legislador, permitia-se que estes últimos se endividassem junto dos Bancos Comerciais através dos mercados interbancários, dos Fundos de Tesouraria e de outros “veículos de financiamento” - expondo assim o sistema de pagamentos, directamente, aos riscos de mercado. Má regulação, pois.
v E foi com a “política Greenspan” (ao menor sinal de instabilidade, baixa-se a taxa a que o FED cede liquidez) que esta confusão deu para o torto: liquidez a expandir-se aceleradamente e taxas de juro inferiores ao crescimento potencial do PIB empurravam os Bancos de Investimentos (e não só) para estratégias de negócio cada vez mais assentes no endividamento e em mais-valias.
v Endividavam-se por atacado a curto prazo (nos mercados interbancários, etc.) para se exporem em crescendo a riscos de mercado, na busca de ganhos excepcionais que sustentassem os lucros exigidos pela tradição. Má condução da política monetária, está bem de ver. E alguma má regulação, também.
v O golpe seguinte na estabilidade do sistema financeiro veio em 2005, quando o Regulador (a SEC) lhes permitiu que os seus Passivos pudessem ser mais de 30x os seus Capitais Próprios (para os Bancos Comerciais, o FED impunha o limite de 11.5x). Má regulação, de novo.
v Entretanto, a moda de taxas de juro historicamente baixas estendeu-se aos outros países desenvolvidos e não animavam só a esfera real dessas economias. Dificultavam também a vida a Seguradoras, Fundos de Pensões, Fundos de Investimento e aos próprios Bancos, obrigados a proporcionar a accionistas, pensionistas, investidores, um retorno minimamente decente que só seria possível obter correndo mais riscos. E aí estavam os Bancos de Investimento a originar e a distribuir instrumentos de dívida com taxas de retorno generosas. Mas quanto a risco?
v É aqui que as Agências de Rating entram em cena, ao qualificarem de “bom risco de crédito” muitos desses instrumentos que os Bancos de Investimento tinham para oferecer a sistemas financeiros sequiosos de rentabilidades que se vissem.
v Foram elas que viabilizaram a vertente “distribuidor” do modelo “originador/distribuidor” que os Bancos de Investimento vinham adoptando com a alma em hossanas. A vertente “originador”, essa, era financiada com empréstimos de muito curto prazo que teriam de ser renovados sem parar.
v É claro que a confluência da política Clinton (“Todos têm direito a ser proprietários da sua casa”) e de uns organismos com nomes pacholas (FREDDIE MAC, GINNIE MAE, FANNIE MAE) que prestavam garantias aos empréstimos para aquisição de casa própria (e que, dizia-se, gozavam da contra-garantia do Tesouro dos EUA) teve também um papel importante no avolumar da crise.
v Liquidez excessiva + garantias excessivas + bênção política, eis uma equação que em todo o lado conduz invariavelmente a um mesmo resultado certo: bolha especulativa alimentada por uma bolha de dívidas. Surprise! Surprise! Foi precisamente isso que aconteceu.
v Esvaziada a bolha dot.com nas Bolsas (2000/2001), com as economias emergentes na ressaca das crises financeiras dos anos ’90, o mercado hipotecário residencial surgia, assim, como a oportunidade que restava para se obter rentabilidades satisfatórias e, ainda para mais, garantidas. Garantidas pelo contribuinte norte-americano, por intermédio dos tais organismos GSE (Govern Sponsored Entity), e pela convicção inabalável de que uma casa, haja o que houver, nunca perde valor.
v Num ápice, a linha de produção ficou pronta:
(1) a bolha especulativa “fabricava” dívidas;
(2) os Bancos de Investimentos adquiriam essas dívidas por grosso aos credores no terreno (Bancos locais, etc.);
(3) cortavam-nas, retalhavam-nas e cosiam-nas para com elas montarem novos instrumentos de dívida de risco bem medido;
(4) as Agências de Rating aí estavam para certificar que assim era e melhor não havia;
(5) os investidores do mundo inteiro faziam bicha para os comprar.
E saia nova fornada, que há clientes à espera.
v Para compor o ramalhete, os Supervisores, abdicando das suas competências específicas, louvavam-se unicamente nas opiniões das Agências de Rating: se elas afirmavam que determinado instrumento de dívida tinha um risco insignificante, quem eram eles para dizer o contrário?
v Assim, quem por esse mundo fora comandava as exigências em matéria de Capitais Próprios dos Bancos (e, por consequência, a estabilidade dos sistemas financeiros) eram as Agências de Rating - não as Autoridades de Supervisão, criadas, mantidas e pagas justamente para isso. Ontem como hoje.
v De um momento para o outro, vá-se lá saber porquê (diz-se que terá sido o HSBC quando, em fins de 2006, riscou dos seus livros quase USD 10 mil milhões em créditos subprime), os investidores esfumaram-se - e alguns Bancos de Investimento mais atrevidotes (leia-se, mais endividados) não mais puderam pagar a pilha de empréstimos que tinham contraído e esperavam renovar.
v Do incumprimento de uns, poucos, ao clima de dúvida generalizada sobre quem teria o diabrete (os créditos subprime, alcunhados agora de “produtos tóxicos”), foi o tempo de o diabo piscar o olho. Os mercados interbancários secaram, os Fundos de Tesouraria entraram numa espiral de resgates - e os sistemas de pagamentos nacionais ficaram a um passo do colapso total.
v Da desregulamentação de mercados e actividades - apenas vestígios. Da complexidade dos “derivados” - ainda não era chegado o tempo. O que houve, sim, e em abundância, foi política social voluntarista a mais, má política monetária, má regulação prudencial e ainda pior supervisão.
Levantou-se um imenso clamor, mundial, sobre a morte do simpático e inofensivo Gadaffi (ou Kadaffi?).
De facto, os chamados rebeldes rebentaram mesmo com a cara dele. Tal a raiva que lhe tinham, ainda por cima vendo-o aparecer, saído dum cano, com uma pistola de ouro na mão. Foi demais. Tinha que levar uns tabefes.
Pus-me a pensar a quantos o mundo já tinha dado os mesmos tabefes, ou simples tiros na nuca!
Na China a presos políticos ou traficantes, fora os torturados por Mao.
Na democrática URSS o senhor Yussip, depois de mandar matar Lenine, matou o Trotsky, além de todos os seus principais e mais directos colaboradores.
Não tardou muito que, para fazer canhões bombas atómicas, matasse à fome uns milhões de ucranianos, confiscando-lhes a produção de trigo.
E quem se lembra, ainda a II Guerra não tinha acabado, do tratamento dado na Itália ao seu grande líder Mussolini? Esmurraram-no, estraçalharam-no, rebocaram-no atrás de um carro por Roma e depois de não ser mais do que um pedaço de carne ainda o penduraram num poste para gáudio e aplausos dos felizes italianos. (Anos, poucos, passados, lembravam-no com admiração e saudade!).
Ao Lincoln resolveram o problema com uns tiros, mas depois da Guerra Civil, os republicanos/democráticos americanos, que diziam na sua Constituição que “todos os homens nascem iguais”, lincharam mais de 5.000 pessoas! Só em 1862 foram, numa fornada, 161. Negros, é evidente.
E em quantos pedaços esquartejaram o inofensivo Tiradentes?
E quando assassinaram o rei D. Carlos e o Príncipe? O que fizeram ao Buiça e Alfredo Costa?
Mas todos estes episódios são fruto de revoluções, quase sempre com finalidades financeiras e não ideológicas ou políticas, porque quem ganha vira herói e rico, e quem perde... morto ou bandido.
Mas há muito pior do que censurar os tunisinos que espatifaram uma besta aparentemente humana, que os explorara durante mais de quarenta anos e desviara do país, em proveito próprio, umas centenas de biliões de dólares. Além do divertimento que gostava de apreciar, como o enforcamento de uns quantos presos políticos, escolhidos aleatoriamente, para celebrar os aniversários da sua tomada de posse.
E quando outra besta é apanhada depois de estuprar e matar uma criança? Vamos tratá-lo com cerimónia e sopinhas?
Pior do que tudo isso é aquilo que outras bestas convencionaram chamar de desporto, e que se chama “Ultimate Fighting”! Trata-se de esmurrar e chutar o adversário até ele cair, e ainda no chão levar uma porção de murros na tromba para não ser estúpido!
Na civilizada Inglaterra esse magnífico “desporto” foi agora oficialmente autorizado para crianças, e os queridos paizinhos levam crianças de nove e dez anos para andarem “à porrada”com amiguinhos, com quem deviam estar a jogar futebol ou ping-pong! E os evoluídos british parents, sorrindo de orgulho, vêm os filhos, que ainda mal sabem falar, esfolar a cara do outro ou sair esfolado.
Todos estes atrasados mentais aplaudem com tanto mais ardor quanto mais o perdedor fica sangrando ou mesmo K.O.
Eu tenho dois netos, gémeos, em Londres, com doze anos. Há dias uns garotos mais ou menos da mesma idade, foram lá a casa. Bateram à porta e, perguntados, disseram ao que vinham: queriam “andar à porrada”! Assim mesmo, só queriam bater-se!
E há quem se arrogue o direito de comentar o que os tunisinos fizeram a quem para eles representava a opressão, a corrupção, a pouca vergonha?
O que faria qualquer um de nós se se encontrasse em posição semelhante? Chamaria uma massagista para lhe tratar das costas doloridas por ter estado dentro dum cano, e ainda lhe mandava servir um aperitivo, enquanto descansasse num quarto de hotel de seis estrelas?
E se um filho ou filha, ou neto/a nosso fosse vítima de violência? Eu lamento dizer, mas se tivesse a infelicidade de me defrontar com tal bestialidade, de certeza não dava bolinhos ao assassino. De certeza. Deveria despertar em mim o nosso primitivo, e útil, instinto de sobrevivência e defesa, e... nessas ocasiões acho que o melhor seria ter um taco de beisebol à mão!
Comentar e apontar o dedo, é aquilo que, parece, os homens (e as mulheres) melhor sabem fazer, sobretudo quando o problema não é com eles, está longe, e não os envolve directamente.
v Pode crer, Leitor. A matemática que está na origem de muitos instrumentos financeiros, designadamente dos chamados “derivados”, é fascinante, recheada como está de símbolos cabalísticos. “Inebriante” seria, talvez, o termo apropriado – e já revelo porquê.
v Na sua origem, é bem simples:
- Parte de uma evidência (o futuro é sempre um leque mais ou menos vasto de possibilidades);
- Reconhece que a cada futuro possível (ou cenário) corresponderá um resultado (nuns casos, favorável; noutros, desfavorável);
- Imagina que o investidor, colocado perante a incerteza do futuro, quer tomar, ou uma decisão que o leve ao cenário para ele mais favorável (apetência pelo risco), ou uma decisão que o afaste de cenários reconhecidamente desfavoráveis (aversão ao risco).
v O modo mais racional de desbravar este ambiente de incerteza consiste em atribuir a cada cenário uma probabilidade (um número entre 0 e 1, mas tal que a soma de todas as probabilidades atribuídas seja sempre igual a 1). Recorre-se, para tal, à experiência pessoal, à analogia com situações passadas - ou, na falta de melhor, ao palpite.
v Deste modo, quantifica-se a incerteza para torná-la manejável. Como o fazer, porém, fica ao critério de cada um. E que se pode dizer sobre esses critérios? Que uns serão mais plausíveis do que outros, mas não que este esteja certo e aquele errado. Saber o que o futuro reserva, não é para comuns mortais.
v Acontece que a tal matemática inebriante assenta em certas e determinadas maneiras de atribuir probabilidades aos cenários de incerteza a partir de fórmulas acessíveis ao cálculo e com propriedades muito convenientes. Infelizmente, fórmulas destas não andam por aí aos pontapés - e as que há são, em geral, complicadas. Mas daí não virá mal ao mundo.
v Tudo muda, porém, quando se pressupõe que esta ou aquela fórmula particular, mais do que ser plausível (e já sustentar a sua plausibilidade é um bico-de-obra), retrata com fidelidade a incerteza inscrita no futuro. Ora, no preciso instante em que uma fórmula se converte em dogma, a matemática deixa de ser uma maneira de gerar consistentemente probabilidades para ser vista como o verdadeiro modo como o futuro gera a incerteza. E perde-se o tino.
v Foi o que aconteceu (e acontece) nos mercados financeiros, que passaram a girar em torno de “certezas” (as tais fórmulas para atribuir probabilidades aos cenários possíveis) sobre a “incerteza” (o que irá ocorrer no futuro).
v “Certezas” que os académicos defendiam com unhas e dentes, e o restante pessoal adoptava sem pestanejar – reverente e grato porque se embalava no doce engano de decisões que todos consideravam certas à partida. Logo, óptimas por definição. Um alívio, está bem de ver - pois ninguém ignora que sustentar plausibilidades e fundamentar decisões dá uma trabalheira dos diabos.
v Mas não se confunda a matemática inebriante com os “derivados”. Estes são instrumentos financeiros, são contratos. Aquela serve, apenas, para atribuir, com um módico de coerência e razoabilidade, preços (os chamados “preços teóricos”) aos direitos que esses contratos consubstanciam – o que já não é pouco.
v Haverá, assim, para um mesmo leque de cenários futuros, tantos “preços teóricos” quantas as fórmulas utilizadas – o que é dizer, quantas as maneiras de lhes atribuir probabilidades. Felizmente, porque é esta diversidade de “visões” sobre o futuro que cria mercado: uns a comprar, outros a vender.
v Só que – a preferência dos académicos por determinadas fórmulas (uma meia dúzia, se tanto), a convicção de que essas fórmulas representavam fielmente a incerteza relativamente ao futuro, e o prestígio do pensamento universitário (e “nobelizado”) cedo contagiaram os que operavam nos mercados financeiros.
v Não tardou muito para que a maioria “visse o futuro” da mesma maneira e, consequentemente, tomasse como referência nas suas decisões “preços teóricos” muito parecidos. Neste ambiente, o mercado dos “derivados” mais parecia uma pequena embarcação onde os passageiros se empilham, ora num dos bordos, ora no outro, em correria. Tanto balança, tanto balança, que só por sorte não se afunda.
v É certo que os “derivados”, enquanto contratos, são invariavelmente textos densos, por vezes redigidos com frases arrevesadas e que raramente primam pela clareza. Mas, com paciência, consegue-se sempre descodificá-los.
v E descodificá-los significa duas coisas:
(1) caracterizar com rigor os direitos das partes (e, uma vez por outra, tropeça-se em surpresas que os advogados muito apreciam);
(2) quantificar os movimentos de liquidez a que o exercício desses direitos dará lugar (é aqui que entra a tal matemática inebriante que vai calcular “preços teóricos”).
v Mas não foram os “derivados” e a sua matemática superlativa que estiveram na origem da crise financeira que se instalou em 2007 - e que está para durar. Nem são eles tão opacos ao ponto de não deixarem ver os movimentos de liquidez que implicam. Liquidez é, aqui também, a palavra-chave.
Terra rica e de ambição Minas Gerais foi nos tempos coloniais local de eleição para gente de toda a espécie que buscava fama e fortuna. Vindos do reino e de outras regiões da Colónia, portugueses e brasileiros chegavam em levas. Aventureiros, padres, militares, fazendeiros, faiscadores, tropeiros, mulheres de vida fácil, fugitivos, todos se embrenhavam pelo interior, atravessando serras e rios, enfrentando desafios à cata de ouro, pedras preciosas, madeira, terras para desbravar e ocupar com a real anuência.
Conta a lenda, das muitas que a história de Minas guarda, que quando os bandeirantes incursionaram pelo interior centro-leste mineiro avistaram formações rochosas que, em certo sitio, desenhavam no horizonte o perfil da cara de um gigante. Chamaram-nas Serra do Caraça. Ali, a 1300 metros de altitude, no contraforte da serra, numa área isolada, cortada por rios e cascatas, cercada de Picos e matas, em 1700, se levantou um pequeno arraial, em busca de ouro. Era dono da sesmaria o padre Felipe Siqueira e Távora. Os mineradores, Domingos Borges e os irmãos Francisco e António Bueno. Ao que parece não acharam o que queriam pois, setenta anos mais tarde, as terras, então abandonadas, estavam nas mãos de um homem conhecido naquela região como Frei Lourenço.
Em 1730, não muito longe dali, no Arraial do Tijuco (hoje Diamantina) os diamantes brotavam dos rios. A Coroa lançava gulosamente suas regras para a instalação das Catas (5 mil reis por escravo), até que resolveu ela mesma ter um contratador para extracção das pedras. Mesmo com a guarda, e o controle do Intendente, pedras e ouro eram desviados na contabilidade de autoridades corruptas, no fundo falso das canastras, no bucho dos garimpeiros, no pau oco das imagens, na carapinha dos negros, debaixo das saias das quengas...
O Tijuco prosperava e se enchia de gente. Em 1754 o contratador marianense João Fernandes de Oliveira, amigo de Pombal, do tempo de estudante em Coimbra, acumulava bens e prestígio. Sua amante, Chica da Silva, filha de escrava com branco, alforriada por ele, rica e voluntariosa, se impunha na sociedade branca local. O brilho dos diamantes que carregava no pescoço e influência política do seu companheiro nivelavam-na socialmente. Na Igreja de Santo António o padre pediarespeito e sal, que naquela terra, longe dolitoral,não havia para baptizar as crianças, nem para tratar o bócio das gentes.
No reino, D. João V depois de esbanjar fausto e riqueza deixou para seu filho, D. José I, um rombo no orçamento. Chamado para administrar as combalidas finanças da Coroa, Sebastião José de Carvalho e Melo tornou-se o seu mais importante e temido ministro. Para desconforto e desprezo da nobreza, com medidas duras, tentou fortalecer o poder real e expulsou os jesuítas do território português.
Em 1755 um grande terramoto, seguido de um maremoto, arrasa Lisboa. Pombal toma a frente e faz reerguer a capital portuguesa, mais bonita e moderna. O dinheiro vem dos altos impostos e dos diamantes que ainda chegam do Brasil, mas já sem a fartura do início de século.
Em 1758, uma tentativa de assassinato contra o rei leva ao patíbulo nobres e extermina a família Távora. Um deles escapa, e tem a efígie queimada.
Diz ainda a lenda que um jovem, Carlos Mendonça Távora, teria chegado ao Arraial do Tijuco e em 1763 entrado na ordem Terceira de São Francisco como irmão leigo, assumindo o nome de frei Lourenço.Passados 7 anos, em 1770, saiu do Tijuco (Diamantina) e na região da Serra do Caraça, após 4 anos, ergueu “em distância de três léguas da matriz de Catas Altas uma capela da invocação de Nossa Senhora Mãe dos Homens”, diz o requerimento encaminhado ao príncipe regente, muitos anos depois. Doações e ajudas transformaram a capela numa igreja com douramentos, uma Santa Ceia pintada pelo Mestre Ataíde, um órgão e uma relíquia de São Pio, vinda da Itália em 1972. Dos lados da igreja, à direita e à esquerda, construiu alas de dois pavimentos para abrigar irmãos missionários, peregrinos e escravos. O misterioso frei Lourenço tinha um sonho: transformar o local num centro religioso e de estudo. Como não conseguiu atenção das autoridades para o seu intento, após varias petições, com receio de perder sua obra, doou em testamento o seu património para a Coroa, para que esta fizesse ali um lugar de santidade e um educandário para rapazes.
No seu testamento não revelou seu nome civil, mas diz coisas que fazem pensar. Ser natural de Nagozelo (Concelho de São João da Pesqueira) onde os Távora tinham um morgadio; em dicionários antigos portugueses Caraça era a sacada aonde condenados iam para a fogueira. Lourenço foi um mártir romano que morreu queimado. Coincidências, talvez...
Pós a morte do frei, ocorrida em 27 de Outubro de 1819, D. João VI entregou as terras e o eremitério aos lazaristas (Congregação da Missão). Com a chegada em 1820 dos Irmãos Leandro Rebelo Peixoto e Castro e António Ferreira Viçoso de Lisboa o sonho do frei Lourenço se tornou uma realidade. No local da antiga igrejinha levantou-se um bonito Santuário em estilo gótico, as alas foram ampliadas e receberam biblioteca, laboratórios, salas de aula e alojamento para padres e para estudantes.
Num país carente de escolas e de educandários de qualidade, o Colégio do Caraça, tornou-se referência nacional de educação para rapazes.Como talfuncionou de 1821 a 1968, quando um incêndio provocado por um fogareiro deixado aceso destruiu quase todas as instalações e mais da metade do acervo da biblioteca. Foi uma inestimável perda para a cultura e educação da sociedade brasileira. O Colégio acabou em cinzas, nunca mais se levantou.
No Caraça estudaram bispos, prelados, professores, políticos, advogados, muitos homens que marcaram a vida política e cultural do país. Os presidentes da República Afonso Pena e Artur Bernardes, foram dois deles. No tempo do Império, a fama do Colégio já era tanta que recebeu as visitas e presentes dos imperadores do Brasil, D. Pedro I e D. Pedro II, cada um a seu tempo. Conhecido pela disciplina rigorosa, onde a palmatória era usada, pelo emprego de métodos de ensino de qualidade e eficientes, tinha no seu quadro de mestres professores nacionais e estrangeiros.
Para coibir a indisciplina dos filhos, os pais daquele tempo diziam: “Olha que te mando para o Caraça”!
O Parque do Caraça, antigo património do frei Lourenço, hoje é Reserva Particular do Património Natural. Das ruínas e com o que se salvou do sinistro, construiu-se um Museu, uma nova biblioteca, e fez-se uma pousada para receber hóspedes em busca de sossego. O Santuário Nossa Senhora Mãe dos Homens e o seu entrono restaram intactos. Os irmãos lazaristas da Congregação da Missão ainda continuam lá, à frente da propriedade.
Chegar ao Caraça é voltar no tempo, longe da TV, do tumulto das cidades, da violência. É ouvir histórias antigas onde realidade e lenda se misturam de uma forma que não se sabe quando termina uma e começa a outra. É ter a oportunidade de consultar livros esquecidos, ou repousar simplesmente. Comer alimentos saborosos e saudáveis da horta dos padres, cuidada por um velho descendente de escravos, é um lauto prazer.
Vencer a serra, caminhar nas trilhas das matas, descobrir plantas e animais, riachos e cachoeiras, admirar a beleza e a tranquilidade da natureza é se reencontrar consigo mesmo. À noitinha, na adro da Igreja, depois da missa e do jantar, esperar o ameaçado lobo-guará se aproximar e vê-lo comer das mãos dos frades, como fazia frei Lourenço. O Homem ali está mais perto de Deus.
Maria Eduarda Fagundes
Fontes:
Wikipédia
WWW. santuariodocaraça.fot.br
Monografia de André Coutinho Barbosa (Geoprocessamento) da UFMG
... ABERTURA INTERDISCIPLINAR NA INVESTIGAÇÃO SOBRE A ECONOMIA
Exmº. Senhor Professor João Sentieiro
Presidente da Fundação para a Ciência e a Tecnologia
A percepção de que existe dentro da crise económica uma crise da Economia, como disciplina académica, tem-se vindo a acentuar nos últimos anos.
Essa percepção é acompanhada de apelos cada vez mais audíveis a favor de um reforço do pluralismo interno e da abertura interdisciplinar da Economia capaz de estimular a inovação e a renovação teórica.
A urgência que se faz sentir no presente reforça tendências anteriores. De facto, nas últimas décadas tem-se vindo a acentuar não só a consciência da necessidade de reforço do pluralismo teórico no interior da Economia, como o interesse pelo estudo interdisciplinar da economia por parte quer de economistas, quer de investigadores de diferentes áreas disciplinares das ciências sociais, tais como a Sociologia, a Psicologia, a Ciência Política, ou a Antropologia, mas também de outras áreas de conhecimento como a Física, a Biologia, as Ciências da Computação, as Neurociências ou a Filosofia.
Na investigação orientada para a procura de soluções para problemas reais da economia e sociedade, a colaboração entre domínios do saber e perspectivas teóricas diversas tem vindo a aumentar com bons resultados, quer no plano internacional, quer em Portugal.
Confirmação de que estas tendências se estão a afirmar é a atribuição recente do “prémio Nobel da Economia” a economistas tão inovadores como Amartya Sen e a investigadores com formação disciplinar diversa, em áreas distintas da ‘economia’, como Daniel Kahneman e Elinor Ostrom.
Os abaixo assinados docentes e investigadores avaliam positivamente estes desenvolvimentos e procuram com o seu trabalho incentivá-los e reforçá-los, nomeadamente no contexto nacional. A renovação de que o pensamento económico urgentemente carece passa efectivamente pela abertura dos estudos sobre a economia a diferentes correntes teóricas da Economia e a diversas perspectivas disciplinares.
Existindo na FCT uma área de “Economia e Gestão” seria de esperar que as tendências acima identificadas tivessem expressão num reforço do pluralismo teórico e da interdisciplinaridade nos projectos financiados nesta área. Acontece no entanto que, em Portugal, os painéis de avaliação de projectos da FCT nas áreas da “Economia e Gestão” não partilham do mesmo entusiasmo pelo reforço da interdisciplinaridade e do pluralismo teórico. Pelo contrário, têm sistematicamente isolado o campo da Economia e promovido uma unicidade empobrecedora dos estudos nesta área, hostilizando a diversidade e subordinando o único critério justo - o da qualidade – ao da lealdade ao cânone teórico da sua preferência.
Os investigadores abaixo assinados têm uma longa e frustrante experiência com estes painéis. Muitos deles viram projectos rejeitados com base em julgamentos sumários exclusivamente baseados na não conformidade com as normas da economia “neoclássica”. Felizmente, alguns desses mesmos projectos vieram a ser re-submetidos com sucesso e excelentes avaliações ao Programa Quadro da UE ou a outros painéis da FCT.
A situação de predomínio de uma concepção particular da Economia nos painéis de avaliação de projectos na área da “Economia e Gestão” da FCT representa um problema para a investigação sobre economia em Portugal. Dificulta a inserção dos investigadores portugueses nas redes internacionais que estão a renovar o pensamento económico, dificulta a acumulação de conhecimento plural sobre a economia portuguesa, os seus problemas e as soluções possíveis, constitui um obstáculo à inserção na actividade dos nossos Centros de jovens investigadores e de estudantes de doutoramento empenhados em explorar e desenvolver novas perspectivas.
A FCT pela importância do papel que desempenha no financiamento da investigação fundamental realizada a nível nacional e na sua articulação com a formação avançada de nível doutoral não pode deixar de responder a esta situação de bloqueio institucional numa das suas áreas de investigação.
Os investigadores e docentes abaixo assinados vêm assim propor à FCT que encare soluções tendentes a garantir o pluralismo na avaliação de projectos sobre economia, nomeadamente a criação já no próximo concurso de projectos de investigação em todos os domínios científicos de uma área de “Estudos de Economia e Sociedade” capaz de acolher e compreender abordagens ao estudo da economia não circunscritas aos cânones que vigoram no actual painel de avaliação de “Economia e Gestão”.
Certos de que estas preocupações e proposta merecerão a consideração esperada, subscrevemo-nos,
Já por diversas, desde muitos há anos, faço a mesma pergunta, que tem ficado sempre sem resposta.
Era difícil não haver resposta para uma questão tão elementar que qualquer dona de casa sabe desde o primeiro dia que assume o controle das suas finanças. O que é um orçamento? Normalmente seria uma previsão de entradas de dinheiro, e de saídas, fazendo o possível para sobrar sempre um pouco a usar no caso de alguma emergência.
Mas isso é o que fazem os estúpidos e ignorantes como eu e, cheias de sabedoria, as donas de casa! Os sábios, os políticos, os grandes economistas em (des)serviço ao Estado, ou à Nação, isto é, ao povo, fazem de outro modo! De ano para ano vão prevendo sempre gastar mais do que arrecadam, desprezando o crescimento da dívida pública, o que na minha cabeça ingénua, não consegue entrar.
Pedem dinheiro nos mercados internos e externos, enchem os postos chave de comparsas, que, mancomunados disfarçam o caminho para o desastre, e os bancos procuram dar crédito até ao pedinte de rua; vai-se distraindo o povo com outros assuntos – futebol, religião, shows de gritaria, visitas de personalidades estrangeiras, etc. – e, num instante a divida é de tal forma, que estoura e é impossível pagar.
Está nisto quase toda a Europa – vivas para a Alemanha que continua com bastante solidez (continua?) – que agora parece ter acordado duma letargia confortável: dever biliões sem qualquer possibilidade e/ou intenção de pagar.
“Impossível negar que está profundamente abalado o edifício de toda a economia moderna... A muliplicação assombrosa de protestos e reformas de letras, iliquidabilidade de créditos, arrastamento de dividas e pagamentos, liquidações ruinosas de produtos, de papéis e de negócios, paralisação total ou parcial de explorações agrícolas, industriais e comerciais, milhões de homens sem trabalho, nervosismo das praças e dos depositantes, levantamentos ou retiradas inexplicáveis de capitais, entesouramentos particulares de dinheiro, condenáveis por anti-economicos, derrocadas, falências e concordatas, agitações políticas e sociais - eis o espectaculo anormal que o mundo vem oferecendo: crise e especulação de crise; no fundo, tudo crise, economica e moral”.
Palavras de Salazar, 1930.
“Portugal (e hoje toda a Europa) vai ver-se obrigado a dobrar-se sobre si próprio, em população (já impossível), em capitais, em produção e consumo; e é talvez este um momento histórico interessante que será pena, por falta de coragem ou visão, deixar perder”.
Ainda Salazar em 1931.
E mais, em Agosto de 2003 escrevi o texto:
“O Orçamento do Pinóquio”
“Lá vai nariz...
O governo anunciou o seu orçamento para 2004, alardeando, voz alta e firme, que este, finalmente “é um orçamento real e não fictício como os dos governos anteriores”!
Sempre remetendo as suas amarguras e incapacidades em comparação com os tais governos anteriores! Ponho-me a imaginar o que teria dito o governo de Adão e Eva sobre o seu “orçamento” – se o tivesse feito –, uma vez que não podia ancorar-se, para bater, em anteriores!
O mais curioso é que a realidade deste orçamento é exactamente igual à realidade dos anteriores, porque serão as contingências do “planeta global” que vão permitir, ou não, que o país se isole e cumpra, ou não, o preposto”.
E a capacidade e seriedade dos governantes.
Com toda esta conversa “p’ra boi dormir”, o Brasil passou de uma Dívida Interna de 892 milhões em 2003 para 1,73 triliões em 2010, estando em cerca de 67% do PIB.
A continuar assim, não tarda que o aperto chegue também ao El Dourado, que, de facto, é o Brasil.
A Europa quer agora impor a todos os seus membros uma lei de responsabilidade fiscal, i. e., não se pode gastar mais do que se arrecada. No Brasil essa lei existe... no papel. Ninguém, rigorosamente ninguém, a cumpre. E assim vai o mundo.
Os únicos que não precisam de orçamento são os fabricantes de armas: americanos, russos, chineses, brasileiros, etc. Se o mercado falhar vão provocar uma guerra em qualquer lugar do mundo. Não falta quem venda para o Sudão, Congo, Síria, etc.
O que falta mesmo, é que o tal homo sapiens evolua. Mil anos? Estávamos na Idade Média, matando-se uns aos outros. Dois mil? Olha o que fizeram com o Homem que era só amor. Dez mil, quando Caim matou Abel? Um milhão de anos? Talvez mais!
Pela primeira vez, há mais de 50 anos, Portugal terá uma geração a viver pior que a anterior." Esta é uma frase que, com algumas variantes, ouvimos frequentemente. Pode até ser o chavão da crise, que se assume como estrutural.
É bom notar que nos últimos 50 anos nunca se disse que as gerações viviam melhor que as anteriores. O que se ouvia eram queixas, lamentos, protestos. Agora, que supostamente se perdeu aquilo que é tão precioso, finalmente notamos a sua existência.
Mas como é que se sabe isto? Qual o fundamento para uma afirmação tão clara e dramática? Uma geração abarca muito tempo e, formulada assim, esta conclusão tem consequências vastas e abrangentes. Será mesmo verdade que o que sabemos nos permite conclusões sobre a dinâmica geracional?
De facto, a frase não resiste a inspecção detalhada. Começa logo por se basear no conceito vago e indefinido de "geração". Depois nem sequer clarifica se a comparação é com a actual, a anterior ou a seguinte. De facto não pode ser uma constatação. Os insuspeitos dados europeus (séries AMECO, preços de 2000) dizem-nos que Portugal em 2010 produziu mais 6,7% que em 2000 e o rendimento nacional subiu 5%, estagnando em valores por pessoa. A actual geração não perdeu face à anterior.
Assim tem de ser uma previsão: vamos viver pior que antes. Isso, aliás, encaixa num outro oráculo hoje recorrente: "Esta crise vai demorar mais de dez anos a corrigir." Ainda uma previsão arbitrária, certamente inspirada pelo mesmo pessimismo endémico que nos impediu de reconhecer os ganhos dos últimos 50 anos. Determinar quando a crise estará resolvida é algo que ninguém hoje pode seriamente fazer. As rupturas de 1977 e 1983 foram solucionadas em dois ou três anos; mas as de 1560, 1605, 1837, 1847 e 1892 demoraram várias gerações. Esta deverá ficar no meio dessas.
O que tem mais graça em toda esta discussão é que aqueles que são tão rigorosos a afirmar uma data remota e contingente costumam ser incapazes de responder com clareza a duas questões muito mais simples e directas: quando começou esta crise? Quando começa a recuperação?
Uma crise nunca começa quando se sente, mas quando surge o desequilíbrio que a provoca. Como uma bebedeira, é na euforia da festa que nasce o problema. A questão central desta é a habitual: o endividamento externo. Estamos há muito a viver acima das nossas posses e os credores perderam a paciência. Ora isso começou numa data precisa: 1996. A balança externa (saldo corrente e de capital) andou praticamente equilibrada nos dez anos anteriores e então começou a derrapagem que ainda não está resolvida. A dívida externa, que era de 8% do PIB nessa data, anda hoje acima dos 110%. Foi nestes 15 anos que Portugal se transformou num país viciado em crédito externo. Quase uma geração.
O segundo momento decisivo é quando acaba a festa e começa a ressaca, surgindo os sacrifícios que curam o desequilíbrio. E esse instante tem também uma resposta evidente: ainda não começou. O défice externo continua igual e a dívida continua a subir. O que o Governo celebrou na semana passada (semana de 10-15 de Janeiro de 2011) foi o sucesso de um leilão de mais dívida.
O que temos são promessas de austeridade e luta de interesses para evitar a dureza. Quando saírem os dados fiáveis destes últimos meses, o mais provável é que mostrem mais despesa, com a corrida a aumentos, promoções e outros expedientes. A única coisa que este ano já trouxe foi subida de impostos, que tivemos repetidamente nestes 15 anos, sem que isso significasse qualquer correcção real.
A origem da crise é patente: largas franjas da sociedade portuguesa retiram dela muito mais do que contribuem. Não quer dizer que produzam pouco, mas que ganham mais que isso. Muitos só atrapalham e desperdiçam. O mecanismo central desse processo é indiscutivelmente o Orçamento do Estado, que inchou até metade do PIB.
A crise fica resolvida em meses ou sacrifica várias gerações. A resposta depende da data em que esta geração abandonar a pantomima dos últimos anos que, finalmente, já não convence ninguém.
Portugal começou com um Conde vindo do norte da Europa para ajudar a realizar a reconquista da península, que casou com uma filha do rei de Leão e tomou conta do Condado Portucalense tendo nascido deste casamento D. Afonso Henriques, que mais tarde decidiu desenvolver o Condado para ser país independente, pelo que teve que se revoltar contra os partidários da dependência, naturalmente ligados a sua Mãe.
D. Afonso Henriques, primeiro rei «de jure» de Portugal
Conseguiu a independência em 1140 e rapidamente expandiu a fronteira numa linha de perto de Barca de Alva até Lisboa criando assim Portugal e depois alargando o território até abaixo do Tejo.
Quase um século depois o rei D. Afonso III, que antes vivia em Boulogne, e por isso foi cognominado “O Bolonhês”, veio ocupar o trono tendo reorganizado o estado e iniciado a intensificação das ligações com o norte da Europa o que permitiu seu filho D. Dinis, que entretanto tinha recebido de seu avô D. Afonso X, rei de Leão e Castela, como presente o Algarve, continuar a organizar o país e iniciar o desenvolvimento da nossa marinha.
Cerca de 1380 a situação política complicou-se, pois o rei D. Fernando morreu, deixando uma filha casada com o rei de Castela, e o país dividido entre os partidários deste, que era a maior parte da nobreza, e os partidários de D. João, Mestre de Avis e irmão bastardo do rei, que era apoiado principalmente pela burguesia de Lisboa e Porto, onde havia elevada percentagem de judeus sefarditas, e tinha excelentes relações com a Inglaterra.
D. João I, o salvador duma desgraça nacional
Assim foi o Mestre de Aviz o rei D. João I, que com estes apoios e a escolha de Nuno Álvares Pereira para chefiar o Exército Português conseguiu derrotar o rei castelhano, garantir a independência do país e dar origem à dinastia de Avis, e como o desenvolvimento só se podia realizar para sul e poente, isto é, pelo mar, a estratégia então decidida foi a expansão marítima.
D. João II, «el hombre» como lhe chamava Isabel, a católica
Não com reuniões e congressos, mas com navios e portanto com marinheiros e demais profissionais náuticos começando com Ceuta, depois ao longo da costa de África e pelo meio do Oceano Atlântico, Portugal foi alargando o seu território e o conhecimento das correntes e dos ventos que lhe permitiu nos finais do século XV, sob o comando de D. João II conhecer todo o oceano do norte e do sul e a passagem para o Oceano Indico pelo Cabo da Boa esperança.
Depois, empurrou os castelhanos para a América central (com Colombo e o Tratado de Tordesilhas) deixando o caminho aberto para Vasco da Gama chegar à Índia em 1498, com naus e não só com caravelas, e em 1500 Álvares Cabral tomar posse do Brasil.
Portugueses no Japão (biombo namban)
Nas décadas seguintes foi estabelecido o Império do Oriente ligando Portugal até ao Japão, tendo inclusive chegado à Austrália, e tendo a Marinha mais poderosa dessa época.
Fomos na verdade então um país central, portanto não periférico como agora, a ponta de lança da expansão europeia e um dos factores essenciais do renascimento europeu.
Mas entretanto, após a morte de D. João II, a parte da nobreza que havia sido enfraquecida durante a guerra com Castela em 1386, aumentou o seu poder e conseguiu destruir a influência da burguesia, através da perseguição e da expulsão dos judeus, e assim instaurar uma cultura de desprezo ao mérito em favor do compadrio e do negócio imediato, que havia de perdurar e influenciar toda a vida nacional até aos tempos presentes.
Como consequência disto a gestão do reino foi-se deteriorando e o rei D. Sebastião fechou este ciclo com o desastre de Alcácer Quibir a que se seguiu um período de 60 anos com reis espanhóis.
D. João IV, o restaurador da soberania portuguesa
Recuperada a independência com a ajuda da Inglaterra e da França retomámos a exploração do Império mas cometendo erros de gestão que não nos permitiram participar no desenvolvimento europeu, gastando mais em consumo que em investimentos produtivos e desprezando a educação da população, inclusive da própria elite dominante altamente ignorante.
Tudo isto agravado pelo terramoto de 1755 e pelas invasões francesas no início do século XIX que devastaram o país, ao que somou a perda do Brasil que se tornou independente já que a alternativa seria a capital do império passar para o Rio de Janeiro.
O século XIX acabou mal com os erros na gestão colonial que culminaram com o episódio do ultimatum da Inglaterra, seguiu-se o assassinato do rei D. Carlos e pouco depois a queda da monarquia em 1910.
D. Manuel II, último rei de Portugal
A República mudou a forma de acesso ao poder mas não a cultura, mantendo-se assim todos os esquemas de má gestão iniciados no século XVI, o que explica as ocorrências revolucionárias, as dificuldades económicas e sociais que devastaram o país e originaram o baixíssimo grau de instrução da maior parte da população.
Manuel de Arriaga, primeiro Presidente da República
Desta situação resultou o estabelecimento duma ditadura que durou quase 50 anos mas, embora não corrigindo todos os erros de gestão anteriores, os compensou com disciplina forçada e que permitiu evitar os desastres ocorridos na I guerra mundial e a participação na II, chegando nos anos 60 a atingir uma situação económica razoável.
Mas principalmente os erros cometidos na gestão das colónias, somados à inadaptação às mudanças provocadas pela evolução mundial conduziram primeiro às guerras coloniais e depois à revolução de Abril de 1974.
Golpe de Estado comunista disfarçado de cravos
Aliás também depois desta revolução, mais perdida pelo poder vigente que ganha pelos revolucionários (como tinha acontecido em 1910), Portugal continuou a manter a tal cultura pouco eficiente que nos atormentava desde há muito tempo, agravada pela convicção de muitos portugueses de que viver gastando mais do que o que produz é um direito adquirido nada devendo ser feito para corrigir esta loucura, e atingiu os resultados que estão bem à vista na necessidade de termos uma “troika” estrangeira para nos emprestar dinheiro, pois não temos meios sequer para pagar o que comemos, tudo isto com muitos protestos mas sem propostas alternativas.
Troika tutelar de Portugal em defesa contra a desgovernança
Moral da história: não é a primeira vez que passamos por dificuldades deste tipo e a forma mais eficaz de corrigir este rumo à bancarrota e à fatal miséria daí resultante é alterarmos a cultura vigente, usando os meios que hoje existem e antes não existiam, sem incluir greves de carácter partidário, para pressionar os poderes instalados a adoptarem os procedimentos e as atitudes da cultura do valor do mérito, do investimento correcto, da predominância do essencial sobre o acessório, da Justiça e da Democracia, da responsabilização sistemática de tudo e de todos, enfim de tudo o que permitirá uma gestão eficiente e assim, todos, e não apenas alguns, viverem bem e de forma sustentada.
O meu pai nasceu no dia 18 de Outubro de 1941. Acaba de fazer 70 anos, mais dez do que Cícero tinha quando escreveu De Senectute. Quando penso na geração dele e na idade dele, ocorre-me que não houve nada no século XX português que eles não tivessem visto. A geração do meu pai passou por tudo na rotina frenética destes 70 anos. Foi uma geração imensamente disponível, batalhadora, dividida, na ditadura e na democracia, na guerra e na paz, e hoje talvez continue a ser isso tudo, só que com mais amargura e desencanto.
Quando o meu pai nasceu em 1941, a Europa tinha mergulhado numa guerra planetária a que um Salazar de manhosa filigrana nos poupou. Por isso, e pela idade, talvez não se tenha dado conta lá na província minhota que, quatro anos depois, a contenda diabólica tinha acabado. Mas lembra-se certamente que na mesma província as famílias aprendiam cedo o racionamento. A Europa estava em guerra, o Minho também estava em guerra. Famílias grandes, gigantescas em comparação com um país onde em cada ano já são mais os mortos do que os nascidos, não tinham como educar os filhos senão à custa de sorte e improvisação.
O meu pai, na medida do possível, teve sorte. No Portugal dos anos 40 e 50 era preciso ter padrinhos mais abonados para estudar. Inteligente, bom aluno, foi o primeiro da sua família a pôr os pés na faculdade, porque o Estado Novo, embora expusesse a maioria ao analfabetismo, nunca fechou as portas do ensino aos mais capazes. Mas esse não era ainda o tempo das licenciaturas ao domingo, do fim do serviço militar e dos direitos humanos. Quando em 1961 Salazar exclamou Para Angola rapidamente e em força, o meu pai tinha 20 anos e foi.
A geração do meu pai foi a geração da guerra de África. Pessoas como o meu pai, provincianos, rurais, nada sabiam da política, não pensavam no Portugal multicontinental do regime. Mas estiveram disponíveis quando foram chamados para as comissões africanas, porque acreditavam em velharias como o dever e a sobrevivência. Fiéis ao passado, podem ter aprovado a Europa por estarem convencidos de que viveríamos melhor, mas nunca se tornaram europeístas parolos e deslumbrados.
Como quase toda a gente, a geração do meu pai fez a transição do campo para a cidade, a primeira geração a ocupar os subúrbios das cidades onde as casas eram comportáveis para quem ganhava a vida no Estado e que, entretanto, se encheram de comboios populosos e de adolescentes cuja única cultura é a que aprendem na televisão do big brother. A geração do meu pai resiste aos telemóveis e olha para a Internet com desconfiança. A geração do meu pai nunca comprou casa porque nunca teve dinheiro para isso, mas pode gabar-se de não ter contraído dívidas mastodônticas para os seus filhos e netos.
A geração do meu pai foi a geração que conheceu a fundo o provérbio chinês: não serás homem enquanto não conheceres a pobreza, o amor e a guerra. Uma geração que ainda encarou os filhos como filhos, não como "amigos", mantendo uma distância emocional que não conseguiu vencer. Uma geração que nunca foi a mais qualificada de sempre, que não fez carreiras em partidos políticos, que não teve "mundo", mas nunca perdeu o sentido das proporções. Uma geração sequestrada pelos grandes debates ideológicos do século. Esta foi a geração sem a qual não teria existido a democracia, uns porque lutaram por ela, outros porque foram a bússola de ordem e conservadorismo sem os quais nenhuma democracia prospera.
Pessoas como o meu pai tiveram "convicções". Tiveram acima de tudo bom senso. Tiveram acima de tudo vergonha. Conservadores nos costumes e crentes de que o Estado deve ajudar os mais desfavorecidos, foram eles os "pais" do serviço nacional de saúde. Hoje, contemplam com estranheza um mundo de patos-bravos e oportunistas sanguessugas. Mereciam mais das instituições que serviram. Mereciam melhor que um país de Armandos Varas e Dias Loureiros. Mereciam melhor do que um país falido.
Pedro Lomba
Jurista
(Com agradecimento ao António de Araújo pela inspiração)