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A bem da Nação

BOAS FESTAS

  (*)

 

Depois de procelosa tempestade,

Nocturna sombra e sibilante vento,

Traz a manhã serena claridade,

Esperança de porto e salvamento;

Aparta o Sol a negra escuridade,

Removendo o temor do pensamento:

Assim no Reino forte aconteceu,

Depois que o Rei Fernando faleceu

 

Os Lusíadas – Canto IV – 1

Luís de Camões

 

Votos de feliz Natal e que em 2011 também possamos dizer da crise o que Camões disse do Rei Fernando.

 

Henrique Salles da Fonseca

 

NB: Este blog vai entrar em pousio até 3 de Janeiro de 2011 pois vou ausentar-me de Portugal e não levo o computador portátil que está em reparação até Janeiro adentro…

 

(*) http://www.europaenfotos.com/lisboa/luis_camoes.jpg

A ALEMANHA

(*) 

 

 De vez em quando surgem, no seio da União Europeia, acusações de tentativas hegemónicas de alguns dos seus membros, principalmente dos países de maiores dimensões, como a Inglaterra, a França e especialmente a Alemanha. É um problema grave porque, ou a UE funciona na base da igualdade de direitos de todos os seus membros ou, mais tarde ou mais cedo, haverá problemas muito graves.

 

Já uma vez tive de lembrar esse facto a um importante Senhor, que declarou que Portugal tinha pouco peso na UE, dizendo que teríamos de ter, como os outros, 1/15 (um quinze avos, porque eram, na altura, 15 países membros). E lembrei que a Dinamarca, mais pequena que Portugal, não cedia nesse ponto e até fez com que decisões de Maastricht, consideradas imutáveis, fossem alteradas em Edimburgo, porque esse pequeno país o exigiu.

 

Os sintomas de que a Alemanha deseja moldar a UE às suas conveniências não são novas. Em 1996, a revista americana TIME publicou um artigo sobre os chamados "critérios de Maastricht", as condições financeiras a que os países membros teriam de obedecer para entrarem no euro. E dava os valores desses parâmetros que se previam para os países membros no ano de 1997 e serviriam à decisão, a tomar em 1998, dos países que poderiam, em 1999, começar a usar a moeda única. Os principais desses valores eram o défice orçamental (que não poderia exceder 3%) e a dívida pública (com o limite máximo de 60%), expressos em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB).

 

Dei-me ao trabalho de ordenar os países por ordem crescente dos valores publicados pela TIME. Uma conclusão saltou à vista: esses valores pareciam ter sido definidos para servirem à Alemanha, cujos valores previstos eram, respectivamente, 2,9% e 59%.

 

Enviei à TIME uma carta em que chamava a atenção para essa"coincidência" e para o facto de ninguém (que fosse do meu conhecimento) ter explicado como foram determinados esses valores de 3% e 60%. Seria conveniente que se explicasse ao grande público porque razão é que o défice orçamental máximo não deve ser 2% (com o qual se qualificariam apenas dois países, nenhum deles a Alemanha), ou 4%, o que qualificaria dez países.

 

Como a TIME não publicou a minha carta (embora já anteriormente tivessem publicado duas outras e há meses publicaram mais outra), resolvi escrever um artigo, com os quadros dos valores previstos, para publicar em Portugal. Esse artigo foi recusado por algumas revistas (entre as quais duas de economia) e publiquei-o numa revista de agricultura (1), para que ficasse em letra de forma, pois as palavras voam mas a escrita fica.

 

Terminei esse artigo dizendo:

 

"Se se quer fazer uma União Europeia forte, coesa e equilibrada, a primeira condição é que nenhum dos seus membros pretenda dominar os outros. Se se pode pensar que qualquer país, particularmente dos mais fortes, pode ter ideias hegemónicas, há que criar mecanismos que evitem qualquer posição desse género ou estaremos a comprometer irremediavelmente a ideia original e a criar focos de tensão que, mais tarde ou mais cedo, levarão a graves conflitos, eventualmente a uma guerra de trágicas consequências."

 

Professor Miguel Mota.jpg Miguel Mota

 

(1) Mota, M. – Critérios. Que critérios? - Vida Rural Nº 1630, Ano 45º, Outubro de 1997

 

Publicado no “Linhas de Elvas” de 9-12-2010

 

(*) http://www.google.pt/imgres?imgurl=http://aeiou.expresso.pt/imv/0/373/602/berlim-ff1d.jpg&imgrefurl=http://aeiou.expresso.pt/alemanha-reve-crescimento-economico-para-o-dobro%3Df610629&usg=__RWj5ya-l9Sh_-jD7RkbSWxkwsFk=&h=173&w=230&sz=12&hl=pt-pt&start=0&zoom=1&tbnid=R0LmF93eNTJIuM:&tbnh=131&tbnw=168&prev=/images%3Fq%3Da%252Blocomotiva%252Bda%252BEuropa%26um%3D1%26hl%3Dpt-pt%26sa%3DN%26biw%3D1007%26bih%3D681%26tbs%3Disch:1&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=789&vpy=102&dur=202&hovh=138&hovw=184&tx=91&ty=87&ei=xxUSTZOJLsWztAaDqeHoDA&oei=xxUSTZOJLsWztAaDqeHoDA&esq=1&page=1&ndsp=20&ved=1t:429,r:4,s:0

“Ditosa Pátria Minha Amada”

 

 (*)

 

 

Um dia, a apresentadora de televisão, Marie-Ange Nardi, que comecei a admirar no programa “Pyramide”, pelos anos noventa, veio a Portugal, tendo sido acompanhada nas suas visitas turísticas por um cicerone português que a fez percorrer bairros típicos de Lisboa, onde se entretiveram a troçar da roupa estendida nos estendais dos prédios, sintoma da paroleira que nos define no nosso atraso milenarmente imutável.

 

Senti vergonha, senti revolta, senti asco. Vergonha desse atraso, revolta contra nós próprios, povo irremediavelmente incapacitado, asco contra a pessoa intelectualmente superior, de um país milenarmente superior, que, paradoxalmente, em tempos, permitira a existência dos famosos bidonvilles, para tectos de gente sem casta, usada nos trabalhos da dureza e dos estrumes domiciliários franceses, tectos próprios para uma imigração intelectualmente destituída. Inteligente como sempre a reconheci, Marie-Ange Nardi não tinha o direito de se mostrar tão desprezativa, tão desprezível, na sua arrogância e imodéstia superiores, incompatíveis com o “quod nihil scitur” da reflexão humanista.

 

Muito antes dela, Simone de Beauvoir, no seu livro “Les Mandarins”, põe igualmente duas personagens do romance a visitar Portugal, país que vivera placidamente, liberto e inocente - os milhares de ricos nos seus arrotos, os milhões de pobres nas suas miseráveis choupanas - os horrores da guerra que outros povos sofreram directamente, na sua atrocidade. Sinto como um ferrete a lição, já não de troça mas duramente crítica, que tinha o mesmo objectivo que o dos nossos escritores neo-realistas de pôr em causa o regime prepotente de Salazar e, simultaneamente, o país de grande pobreza espiritual: “la tyrannie politique, l’exploitation économique, la terreur policière, l’abêtissement systématique des masses, la honteuse complicité du clergé…”

 

Também Voltaire, no seu “Candide” chamara a atenção para os horrores dos autos-de-fé em Lisboa, após o terramoto de 1755, dentro do mesmo espírito de independência crítica, como ataque à injustiça, obscurantismo e fanatismo que nos foram marginalizando no conjunto dos povos europeus, todos estes prezando a formação cultural, como bagagem distintiva do ser humano.

 

Ninguém melhor do que Eça para desmontar as idiotias da nossa “mesmice” e da nossa pobreza espiritual e material.

 

Sempre a crítica foi forma de alertar para o erro, de convidar à virtude.

 

Nestes nossos tempos de pseudoconstrução cívica, que nos tornam joguetes da arbitrariedade, da má fé, do egoísmo e da incapacidade governativas, muitas críticas se vão lendo como alerta e previsão de catástrofe, na mesma sociedade imatura, que se tem vindo progressivamente a destituir dos valores da disciplina mental e moral, a acrescentar à perda material escoando-se pelas comportas destruídas dos sorvedouros económicos.

 

Ela, a catástrofe, já é presente, no fantasma de uma dívida que cresce incontidamente, nas soluções para a inverter, de cariz tsunâmico, que mergulham o futuro pátrio em trágica incógnita sobre a nossa continuidade como nação.

 

Pretender que tais críticas negativas revelam menos amor pátrio, a isso apor exemplos de êxitos pátrios, é um falso argumento chauvinista, que não implica a anulação da via errática do nosso pesadelo político. Não há nelas altivez de troça, mas uma tristeza fatalista na expectativa do fim. Ou da mesma continuidade sem nobreza.

 

Berta Brás

 

 

 

(*) http://www.google.pt/imgres?imgurl=https://1.bp.blogspot.com/_9grPNO7z3O8/Sm5AH9KiJUI/AAAAAAAABRE/HxGrzvSxgL8/s400/roupa%2Bestendida%2Bjanela.JPG&imgrefurl=http://ocantodovento.blogspot.com/2009/07/ferias.html&usg=__2SueWSvmYxRRGt7hSh3uiMn_kPk=&h=300&w=400&sz=40&hl=pt-pt&start=23&zoom=1&tbnid=Iq0GK1l_vNPAKM:&tbnh=177&tbnw=236&prev=/images%3Fq%3Droupa%252B%25C3%25A0%252Bjanela%26um%3D1%26hl%3Dpt-pt%26sa%3DN%26biw%3D1007%26bih%3D681%26tbs%3Disch:1&um=1&itbs=1&iact=rc&dur=561&ei=D8URTcjZL8iOjAfZpKT1BQ&oei=BcURTYjnDdDxsgbnm5jyBA&esq=2&page=2&ndsp=12&ved=1t:429,r:1,s:23&tx=106&ty=71

Quem manda aqui? Para onde vamos?

  

Frau NEIN! weil schlimmer ist besser

(A Senhora NÃO! porque quanto pior, melhor)

 

Em 10 do corrente, a Chanceler Ângela Merkel respondia à proposta do Presidente do Eurogrupo para a criação dos Eurobonds com um Nein! Terminante. Este Nein teve efeitos imediatos a seguir documentados

 

Resposta dos potenciais compradores de dívida soberana espanhola : NEIN

 

 Gráfico 1-LESO

 

Resposta dos potenciais compradores de dívida soberana italiana: NEIN.

 Gráfico 2 - LESO

 

 

Resposta dos potenciais compradores de dívida soberana belga: NEIN.

 

 Gráfico 3 - LESO

 

Fonte: Financial Times

 

O advogado Rumpole, genial criação de John Mortimer, ao referir-se à sua mulher reservava-lhe o tratamento de "Aquela que deve ser obedecida" (She who must be obeyed). Obviamente, há diferenças entre a Mrs Rampole e a Frau Merkel, diferenças que vêm de muito de trás com largos séculos de história. Mrs Rampole merecia o tratamento que lhe davam; será esse o caso da Frau Merkel?

 

De imediato, precisávamos saber o que pretende a Chanceler alemã. À luz das atitudes que tem adoptado em relação à crise do Euro, podermos ser levados a recear que a Senhora tenha em mente converter a crise em apocalipse. Porém, nem toda a gente pensa assim. Dizia-me há dias um banqueiro com larga experiência internacional que o propósito de Frau Merkel não é exactamente desfazer o Euro e reduzir a cacos o sistema europeu, mas tão somente impor ao Estados integrados uma determinada disciplina fiscal e orçamental, a sua.

 

Se é assim, porque espalha então ventos arriscando-se a colher tempestades? Para já conseguiu dividir os PIGS. Isto é contrário à estabilidade futura da ordem se bem que lhe possa facilitar o mando imediato. A função construtiva do líder consiste em unir mediante equilíbrios e sínteses e nunca multiplicar e agravar divisões.

 

O meu interlocutor tinha explicação: -" Sendo alemã - e do Norte - e destituída de génio, não pode agir de outro modo. Ela não terá qualquer projecto para o futuro. O problema dela é exactamente esse: - procura identificar-se com a cultura e sentimento popular locais porque não tem estofo para conceber e introduzir inovações. Não sendo capaz de construir o futuro - a Europa - vira-se para o passado e abraça firmemente o prosaico prussianismo civil. Ela pensa que assim retém a confiança da sua gente. E porque não consegue ver mais nada, não duvida uma só vez de que o que é bom para Berlim o será também para a Europa e para o mundo.

 

Com tal, a Europa que se cuide; que se lembre da profecia do Presidente John Kennedy : "Ich bin ein Berliner!"

 

(Voltaremos ao assunto)

 

Estoril, 19 de Dezembro de 2010

 

Luís Soares de Oliveira.bmp Luís Soares de Oliveira

A ESQUERDA E A DIREITA

 

 

Algo que me parece merecer voltar a ser tratado é o que se refere às designações de "esquerda" e "direita" em política, dadas as confusões que continuo a ver, mesmo em pontos que se me afiguram claros.

 

Um desses casos é o das pessoas que dizem que tais designações já não fazem sentido e que devemos esquecê-las.

 

Como é sabido, esses termos nasceram, com significado político, na Assembleia Nacional francesa, em 1789, em que, à direita do Presidente se sentavam os nobres e a defesa de privilégios e à esquerda o povo, lutando por igualdade, contra os privilégios.

 

Creio que hoje, a lutar pela "igualdade" haverá muito poucos pois as diferenças humanas são motivo suficiente para que tal não seja possível. Contudo, entre a igualdade absoluta e uma desigualdade enorme há toda uma gama intermédia onde, nuns mais, noutros menos, mas sempre longe dos extremos, se situam os países mais desenvolvidos, os de mais alto nível de vida e onde, pelo menos, não existe ou é uma ínfima minoria, os que vivem muito mal, graças a governos competentes e honestos.

 

Pelo contrário, onde encontramos grandes desequilíbrios, com uma pequena minoria com largos proventos e um número avultado (ou avultadíssimo) de pessoas vivendo com dificuldades e até passando fome, é nos países subdesenvolvidos, governados por indivíduos sem escrúpulos.

 

É óbvio que nos primeiros há um elevado número de acções de esquerda que, no entanto, não impedem que haja pessoas com largos proventos, que pagam impostos elevados, que permitem financiar a educação, a saúde, a protecção na velhice, etc. Nos segundos é normal que a carga fiscal caia principalmente nos de poucos proventos, além de se incidir mais nos impostos indirectos como o IVA, do que nos directos, a que muitos de largos proventos arranjam maneira de fugir.

 

Ninguém, nem nenhum governo, é "de esquerda" porque se declara como tal. São as acções que pratica que definem o ponto onde se situa, na linha que se estende entre a extrema esquerda e a estrema direita. É preciso que as pessoas compreendam que tudo o que favorece os que têm mais e prejudique os que têm menos são acções de direita e, se são em larga escala, são de extrema direita.

 

Chamar de "esquerda" a um governo que assim procede é alardear enorme ignorância das mais elementares regras de política que, diga-se de passagem, qualquer cidadão devia conhecer.

 

Professor Miguel Mota.jpg Miguel Mota

 

Publicado no "Linhas de Elvas" de 16 de Dezembro de 2010

A NATO VEIO LAVAR-SE NO TEJO

 

 

JÁ PODEM USAR

 

- Então não tenho? – Respondeu a minha amiga à pergunta sobre se não tinha novidades hoje, já que ontem constatou que estávamos na Cimeira, despejávamos Cimeira, nada mais havia a não ser Cimeira e eu nem percebi por que motivo não quis falar disso, já que, só o ouvir falar na aprovação do “conceito Lisboa”, por conta do novo conceito estratégico da Aliança Atlântica, como aliança cooperativa entre os povos aliados, com a Rússia amiguinha e dialogante, falar de um escudo anti-míssil europeu, para prevenir contra as ameaças do Médio Oriente, falar do entregar o Afeganistão ao povo afegão em 2014, com a participação portuguesa no fenómeno da instrução militar do dito, nos devia encher as medidas, além da referência do simpático presidente americano ao seu cãozinho português, e à boa recepção feita por nós cá aos da Cimeira da Nato. Que ele agora nem sabia se a sua próxima Cimeira teria o brilho da nossa, e isso foi uma afirmação de modéstia que nos transmitiu confiança em nós mesmos, sempre extremamente tímidos…

 

Tudo isso e muito mais foi, pois, não só positivo para o mundo, mas prestigiante para nós, que já tínhamos um tratado de Lisboa e passámos a ter mais um conceito estratégico de Lisboa, como marco histórico, não sei, portanto, porque é que a minha amiga não colaborou no meu entusiasmo patriótico, que sei bem que fomos plantadores de muitos outros marcos históricos no mundo havido.

 

Acho que ela anda com os humores transviados, alinhou mais com os que protestam contra a guerra, e que cuidam que este novo conceito de NATO vai levar mais gente à guerra, não sei se por acharem, os pacifistas, que a guerra dos terroristas é coisa sagrada, sem direito a devolução. Quanto a mim, todos estes conceitos apresentam rasgões e fragilidades, como qualquer teoria, afinal, e até fico muito grata aos que não se importam de ir para esses sítios de combate, embora não seja já por amor pátrio mas por outra sorte de altruísmo. Ou mesmo de egoísmo. Porque agora a tropa não é mais obrigatória, pelo menos entre nós, lusitanos, e só vai à guerra quem não se importa, quer para glória pessoal, quer na mira de um ganho mais eficaz, quer para conhecer o mundo...

 

Por isso, a minha amiga hoje, domingo sagrado, tinha notícias de outro modo importantes:

 

- Então não tenho? O Santo Papa autorizou o preservativo. Agradeçam aos espanhóis. Aquela recepção em Barcelona dos tipos a beijarem-se escancaradamente foi muito influente. Já podem usar o preservativo. Bento XVI merece aplauso!

 

 

- Sim! – Alinhei docilmente.

 

Berta Brás

J’ACCUSE !!!

 

 

Tributo ao professor Kássio Vinícius Castro Gomes

 

 

« Mon devoir est de parler, je ne veux pas être complice».

(Émile Zola)

 

 

Foi uma tragédia fartamente anunciada. Em milhares de casos, desrespeito. Em outros tantos, escárnio. Em Belo Horizonte, um estudante processa a escola e o professor que lhe deu notas baixas, alegando que teve danos morais ao ter que virar noites estudando para a prova subsequente. (Notem bem: o alegado “dano moral” do estudante foi ter que... estudar!).

 

A coisa não fica apenas por aí. Pelo Brasil afora, ameaças constantes. Ainda neste ano, uma professora brutalmente espancada por um aluno. O ápice desta escalada macabra não poderia ser outro.

 

O professor Kássio Vinícius Castro Gomes pagou com sua vida, com seu futuro, com o futuro de sua esposa e filhas, com as lágrimas eternas de sua mãe, pela irresponsabilidade que há muito vem tomando conta dos ambientes escolares.

 

Há uma lógica perversa por trás dessa asquerosa escalada. A promoção do desrespeito aos valores, ao bom senso, às regras de bem viver e à autoridade foi elevada a método de ensino e imperativo de convivência supostamente democrática.

 

No início, foi o Maio de 68, em Paris: gritava-se nas ruas que “era proibido proibir”. Depois, a geração do “não bate, que traumatiza”. A coisa continuou: “Não reprove, que atrapalha”. Não dê provas difíceis, pois “temos que respeitar o perfil dos nossos alunos”. Aliás, “prova não prova nada”. Deixe o aluno “construir seu conhecimento.” Não vamos avaliar o aluno. Pensando bem, “é o aluno que vai avaliar o professor”. Afinal de contas, ele está pagando...

 

E como a estupidez humana não tem limite, a avacalhação geral epidémica, travestida de “novo paradigma” (Irc!), prosseguiu a todo vapor, em vários sectores: “o bandido é vítima da sociedade”, “temos que mudar ‘tudo isso que está aí’; “mais importante que ter conhecimento é ser ‘crítico’.”

 

Claro que a intelectualidade rasa de pedagogos de panfleto e burocratas carreiristas ganhou um imenso impulso com a mercantilização desabrida do ensino: agora, o discurso anti-disciplina é anabolizado pela lógica doentia e desonesta da paparicação ao aluno – cliente...

 

Estamos criando gerações em que uma parcela considerável de nossos cidadãos é composta de adultos mimados, despreparados para os problemas, decepções e desafios da vida, incapazes de lidar com conflitos e, pior, dotados de uma delirante certeza de que “o mundo lhes deve algo”.

 

Um desses jovens, revoltado com suas notas baixas, cravou uma faca com dezoito centímetros de lâmina, bem no coração de um professor. Tirou-lhe tudo o que tinha e tudo o que poderia vir a ter, sentir, amar.

 

Ao assassino, correctamente, deverão ser concedidos todos os direitos que a lei prevê: o direito ao tratamento humano, o direito à ampla defesa, o direito de não ser condenado em pena maior do que a prevista em lei. Tudo isso, e muito mais, fará parte do devido processo legal, que se iniciará com a denúncia, a ser apresentada pelo Ministério Público. A acusação penal ao autor do homicídio covarde virá do promotor de justiça. Mas, com a licença devida ao célebre texto de Emile Zola, EU ACUSO tantos outros que estão por trás do cabo da faca:

 

EU ACUSO a pedagogia ideologizada, que pretende relativizar tudo e todos, equiparando certo ao errado e vice-versa;

 

EU ACUSO os pseudo-intelectuais de panfleto, que romantizam a “revolta dos oprimidos”e justificam a violência por parte daqueles que se sentem vítimas;

 

EU ACUSO os burocratas da educação e suas cartilhas do politicamente correcto, que impedem a escola de constar faltas graves no histórico escolar, mesmo de alunos criminosos, deixando-os livres para tumultuar e cometer crimes em outras escolas;

 

EU ACUSO a hipocrisia de exigir professores com mestrado e doutorado, muitos dos quais, no dia a dia, serão pressionados a dar provas bem tranquilas, provas de mentirinha, para “adequar a avaliação ao perfil dos alunos”;

 

EU ACUSO os últimos tantos Ministros da Educação, que em nome de estatísticas hipócritas e interesses privados, permitiram a proliferação de cursos superiores completamente sem condições, frequentados por alunos igualmente sem condições de ali estar;

 

EU ACUSO a mercantilização cretina do ensino, a venda de diplomas e títulos sem o mínimo de interesse e de responsabilidade com o conteúdo e formação dos alunos, bem como de suas futuras missões na sociedade;

 

EU ACUSO a lógica doentia e hipócrita do aluno-cliente, cada vez menos exigido e cada vez mais paparicado e enganado, o qual, finge que não sabe que, para a escola que lhe paparica, seu boleto hoje vale muito mais do que seu sucesso e sua felicidade amanhã;

 

EU ACUSO a hipocrisia das escolas que jamais reprovam seus alunos, as quais formam analfabetos funcionais só para maquiar estatísticas do IDH e dizer ao mundo que o número de alunos com segundo grau completo cresceu “tantos por cento”;

 

EU ACUSO os que aplaudem tais escolas e ainda trabalham pela massificação do ensino superior, sem entender que o aluno que ali chega deve ter o mínimo de preparo civilizacional, intelectual e moral, pois estamos chegando ao tempo no qual o aluno “terá direito” de se tornar médico ou advogado sem sequer saber escrever, tudo para o desespero de seus futuros clientes-cobaia;

 

EU ACUSO os que agora falam em promover um “novo paradigma”, uma “ nova cultura de paz”, pois o que se deve promover é a boa e VELHA cultura da “vergonha na cara”, do respeito às normas, à autoridade e do respeito ao ambiente universitário como um ambiente de busca do conhecimento;

 

EU ACUSO os “cabeça – boa” que acham e ensinam que disciplina é “careta”, que respeito às normas é coisa de velho decrépito;

 

EU ACUSO os métodos de avaliação de professores, que se tornaram templos de vendilhões, nos quais votos são comprados e vendidos em troca de piadinhas, sorrisos e notas fáceis;

 

EU ACUSO os alunos que protestam contra a impunidade dos políticos, mas gabam-se de colar nas provas, assim como ACUSO os professores que, vendo tais alunos colarem, não têm coragem de aplicar a devida punição;

 

EU VEEMENTEMENTE ACUSO os directores e coordenadores que impedem os professores de punir os alunos que colam, ou pretendem que os professores sejam “promoters” de seus cursos;

 

EU ACUSO os directores e coordenadores que toleram condutas desrespeitosas de alunos contra professores e funcionários, pois sua omissão quanto aos pequenos incidentes é directamente responsável pela ocorrência dos incidentes maiores;

 

Uma multidão de filhos tiranos que se tornam alunos -clientes, serão despejados na vida como adultos eternamente infantilizados e totalmente despreparados, tanto tecnicamente para o exercício da profissão, quanto pessoalmente para os conflitos, desafios e decepções do dia a dia.

 

Ensimesmados em seus delírios de perseguição ou de grandeza, estes jovens mostram cada vez menos preparo na delicada e essencial arte que é lidar com aquele ser complexo e imprevisível que podemos chamar de “o outro”.

 

A infantilização eterna cria a seguinte e horrenda lógica, hoje na cabeça de muitas crianças em corpo de adulto: “Se eu tiro nota baixa, a culpa é do professor. Se não tenho dinheiro, a culpa é do patrão. Se me drogo, a culpa é dos meus pais. Se furto, roubo, mato, a culpa é do sistema. Eu, sou apenas uma vítima. Uma eterna vítima. O opressor é você, que trabalha, paga suas contas em dia e vive sua vida. Minhas coisas não saíram como eu queria. Estou com muita raiva. Quando eu era criança, eu batia os pés no chão. Mas agora, fisicamente, eu cresci. Portanto, você pode ser o próximo.”

 

Qualquer um de nós pode ser o próximo, por qualquer motivo. Em qualquer lugar, dentro ou fora das escolas. A facada ignóbil no professor Kássio dói no peito de todos nós. Que a sua morte não seja em vão. É hora de repensarmos a educação brasileira e abrirmos mão dos modismos e invencionices. A melhor “nova cultura de paz” que podemos adoptar nas escolas e universidades é fazermos as pazes com os bons e velhos conceitos de seriedade, responsabilidade, disciplina e estudo de verdade.

 

Igor Pantuzza Wildmann

 

Advogado – Doutor em Direito. Professor universitário.

 

In http://brasileirosparaomundo.blogspot.com/2010/12/jacuse-eu-acuso.html

O MUNDO LUSÍADA

 

 

Reverendos Padres (1)

Prezados Companheiros;

Minhas Senhoras e meus Senhores:

 

É com o maior gosto que a todos saúdo nesta quadra natalícia que agora comemoramos.

 

O final do ano é também propício a que façamos um balanço entre o que fizemos e o que ficou por fazer daqui nascendo naturalmente uma perspectiva do que gostaríamos de realizar no ano seguinte. Assim vamos todos cumprindo um rumo, assim vai a sociedade vivendo e a nossa Civilização encontrando motivos para se confirmar e rejuvenescer através da afirmação dos seus fundamentos e da obra nova que vamos produzindo.

 

E se essa obra nova se pode medir pelo número de pontes e calçadas em cada ano edificadas, outra obra nova há que se pode medir de modos mais subtis. Refiro-me à obra cultural, aquela a que nós, Elistas, nos dedicamos pois aqui não somos nem ponteiros nem calceteiros.

 

E é precisamente essa obra cultural que nos pode actualmente abrir caminhos tão largos e longos quantos a largura e o comprimento do mundo. Do mundo lusíada, digo eu.

 

E o que é o mundo lusíada? Ah! Meus Companheiros e Amigos, é o mundo do tamanho do Mundo!!!

 

Já está formalizada a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) com 8 países e com Macau na qualidade de observador pois é uma Região Administrativa da China mas o mundo lusíada não se esgota neste formalismo. Temos que considerar todas as comunidades lusófonas espalhadas pelo mundo e todas elas, sem excepção, fazem parte do mundo que consideramos nosso, o lusíada. Mas a esse mundo também têm que pertencer por direito próprio todos os que a ele queiram aderir por se reverem nos Valores do humanismo que ao longo da História Portugal lhes legou. Podem já não saber falar português mas dizem-se luso-descendentes e assumem uma atitude de defesa dos nossos Valores que os distingue das comunidades que os rodeiam e em que habitualmente se integram de modo plenamente pacífico.

 

Estou neste instante a recordar-me do Senhor D. Óscar Pareira, descendente do Rajá de Larantuka, capital da Ilha das Flores, arquipélago das Celebes, hoje território indonésio; cito o General Fonseka que há pouco ganhou a guerra civil que grassava no Sri Lanka; refiro os jovens luso-descendentes da região de Paris que constituíram a Associação Cabo Magalhães com o objectivo de fomentarem a ligação dos jovens licenciados franceses ao país de origem dos seus antepassados, Portugal; lembro-me das rádios e televisões em língua portuguesa sedeadas nos EUA e no Canadá; refiro-me à comunidade cabo-verdiana no Havai; não posso nem quero esquecer-me dos descendentes de Pêro da Covilhã e dos outros 400 portugueses que tanto ajudaram a Etiópia a ganhar fronteiras internacionalmente reconhecidas no âmbito dum processo histórico nascido no mítico reino do leite e do mel do Preste João.

 

Eis o mundo lusíada a que o Elismo tem que chegar; eis que cada dia que passa em que não o procurarmos será um dia perdido no resgate desses tantos que se orgulham dum País que mal conhecem (mas em cujos telejornais é diariamente vilipendiado).

 

Sim, Prezados Companheiros, temos uma obra grandiosa pela nossa frente. Cumpre-nos mostrar de que dela somos capazes, por a queremos, dela sendo dignos.

 

E o que foi esta ano conseguido? Várias «coisas» importantes mas uma eu quero realçar muito em especial: recomeçou há poucas semanas o ensino da língua portuguesa às crianças de Damão depois de um interregno de várias décadas. E como também é de realçar, sem o recurso a dinheiros do Estado Português.

 

É pouco? Claro que é pouco! Mas já não será assim tão pouco se nos lembrarmos de que o fundamental é arrancar com a obra para que de seguida ela se consolide e dê os frutos que dela esperamos.

 

E aqui está a questão: que frutos dela esperamos? Desde já avanço com uma proposta de resposta: a reaproximação dessas comunidades connosco, o País que lhes levou os Valores por que eles próprios se batem; e dessa reaproximação que brotem cooperações culturais e económicas; enfim, que nasça a amizade e o desenvolvimento.

 

Prezados Companheiros e Amigos:

 

Não me vou alongar. Espero que em 2011 o nosso Clube ajude Tavira a celebrar o passado com o descerramento da lápide na Porta do Postigo por onde em 11 de Junho de 1239 entrou D. Paio Peres Correia trazendo a cidade definitivamente para o regaço cristão; espero que em 2011 o nosso Clube lidere o processo de dar uma bandeira à Campanha do Analfabetismo Zero; espero que em 2011 todos e cada um de Vós realize os sonhos pessoais no seio do bem-comum e formulando os meus sinceros votos de um feliz Natal para todos, agradeço a atenção que me dispensaram.

 

Muito obrigado!

 

Tavira, 12 de Dezembro de 2010

 

 Bragança_2007-1.jpg Henrique Salles da Fonseca

(palavras proferidas no jantar de Natal do Elos Clube de Tavira)

 

(1) Padre Dinis Faísca e Padre Flávio Martins, respectivamente Párocos de Santa Maria e de Santiago, Tavira

ADON OLAM

(*) 

 

http://www.youtube.com/watch?v=lOmUEOpC6QA

 

 

 

 (*)http://www.google.pt/imgres?imgurl=http://user.img.todaoferta.uol.com.br/Z/S/BO/QKGFVL/bigPhoto_1.jpg&imgrefurl=http://todaoferta.uol.com.br/comprar/sabonetes-judaicos-estrela-david-menorah-chamsa-chai-vida-ZSBOQKGFVL&usg=__u0fLgzl22XUH27ElEbwwhnR6fPw=&h=280&w=280&sz=12&hl=pt-pt&start=223&zoom=0&tbnid=55sF9FfCJuSSSM:&tbnh=114&tbnw=114&prev=/images%3Fq%3Destrela%252Bdavid%26um%3D1%26hl%3Dpt-pt%26sa%3DG%26biw%3D1007%26bih%3D681%26tbs%3Disch:10%2C9397&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=175&vpy=386&dur=156&hovh=114&hovw=114&tx=91&ty=76&ei=iCUKTf-hFo-u8QO5z9hI&oei=-SQKTZX4GoK0tAa7kYiYCg&esq=16&page=18&ndsp=12&ved=1t:429,r:0,s:223&biw=1007&bih=681

Às margens do Xingu, Amazónia, em 1841

 

Do livro “O Cedro Vermelho”, II volume, “Notas e Esclarecimentos”, de Francisco Gomes de Amorim, 1827-1891

 

******

 

Soldados desertores... que se reuniam aos assassinos para roubar de sociedade

(I Vol., pag. 81, lin. 18)

 

Manteve-se a ortografia original.

 

 

É sabido como a maioria dos denominados cabanos se compunha de facínoras, aptos para todos os crimes. Expulsos da cidade do Pará, internaram-se no sertão e divididos em pequenos bandos continuaram flagelando a provincia. O presidente d'esta enviava de vez em quando destacamentos em perseguição d'elles para todos os rios, onde lhe constava que appareciam. Succedia porém ás vezes, que os soldados, não só se associavam com esses malfeitores, mas depois de os terem destruído os ficavam substituindo em alguns logares! Referirei um caso que se passou commigo.

 

Em 1841 construia-se uma escuna, por conta da casa Carmello & Barros, na margem direita do Xingu, próximo á foz do Curauatá. N'um sabbado á tarde todos os mestres e tapuios de casa pediram licença para irem passar a noite e o dia seguinte a uma aldeia da margem occidental, onde se fazia a festa de S. Thomé ou do Espirito Santo. Em casa ficaram apenas José António Carmello, portuguez, que teria trinta annos de idade; uma senhora branca, ainda moça, com um filhinho de collo; um preto de oito ou nove annos; e eu, que teria quatorze, e me achava empregado como caixeiro dos citados negociantes.

 

O logar era inteiramente deserto; a casa, construída de terra e estacas, e coberta de palha, estava situada quasi á borda do rio, no sobpé de uma collina. Os vizinhos mais próximos ficavam a distancia de meia légua, na embocadura do Ourauatá, onde Ricardo Feio, natural de Lisboa, também construia um navio. Alem dos indivíduos acima ditos, havia em casa de Carmello & Barros um grande cão, de raça dinamarqueza, que a communidade de infortúnio me tinha associado como único amigo. Chamavam-lhe Rabicho, em vez de rabão, por lhe terem cortado a cauda! Este infeliz fora da cidade com Manuel de Lima Barros, sócio de Carmello; e os marinheiros, entre outras judiarias com que o atormentaram, por distracção, brearam-n'o e alcatroaram-n'o, sob pretexto de o tornar impermeável. Chegado ao Xingu, deixou-se ficar ali, quando o navio voltou para a cidade, vivendo do acaso, moído por todos com pauladas, porque a fome o tornava ladrão, e repellido sempre, por causa, da sua figura pouco sympathica das feridas cruéis que lhe tinham feito, da sua magreza repugnante e do seu caracter insociável, azedado pêlos maus tratos. Por acaso ou por uma tal ou qual identidade de destinos, reparámos um no outro e insensielmente nos approximámos. Rabicho começou a seguir-me por toda a parte com solicitude, atirando-se aos rios onde me via saltar para tomar banho, nadando ao meu lado, sem nunca me perder de vista, não me permittindo grande demora dentro da agua, explorando as florestas adiante de mim, cada vez que eu n'ellas entrava, e velando-me enquanto eu dormia. Grato a estas demonstrações, retribuia-lh'as com metade da minha ração; tosquiei-o cuidadosamente, livrando o da cobertura de breu; curei-lhe todas as mazellas; e quando lhe cresceu novamente o pêllo, ensaboava-lh'o com frequencïa, lavando-o por vezes com água de plantas aromáticas. Ao cabo de pouco tempo o animal tornara-se inteiramente diverso do que fora e ligara-se á mim com uma affeição, que só acabou com a sua morte.

 

 

Francisco Gomes de Amorim em 1891

 

Na noite a que me refiro tinha eu adormecido no copiar da casa, espécie de telheiro saliente para o lado do rio, onde o calor excessivo do clima me obrigava por vezes a atar a rede. No melhor do primeiro somno, senti que me sacudiam, e, acordando, vi o cão que me agarrava as bordas da rede, agitando-a com violência. Como n'aquelle tempo não havia noticia de se ter manifestado a hydrophobia no Brazil, julguei que Rabicho se divertisse commigo e empurrei-o com os pés, preparando-me para adormecer novamente. Vendo esta disposição, o intellígente animal, que tinha a grandeza dos maiores da sua espécie e raça, metteu-se debaixo da rede, e, suspendendo-a, deitou-me ao chão; em seguida correu para fora do copiar, voltou atraz, tornou a sair, e a entrar, como convidando-me a segui-lo; e tudo isto sem ladrar e sem fazer o menor ruído!

 

Levantei-me furioso, com intuito de puni-lo pela inopportunidade dos seus gracejos, quando me pareceu ouvir rumor do lado de traz da habitação. Fazia luar, claro como se fosse dia; Rabicho, notando que eu tomava a attitude de quem escuta, soltou um rugido surdo e correu novamente para fora.

 

—Avança, cão!

 

A este grito, dír-se-ia que um obuz o tinha arremessado contra a collina, e que lhe saia da garganta a voz dos trovões! Comprehendi então a causa por que elle me acordara; e todos os seus esforços para me advertir de um perigo imminente. Entrei logo em casa, fechei a porta por dentro, chamei Carmello, e accendi um candieiro.

 

— Que é?

— Não ouve o Rabicho? Penso que são ladrões!

— Ladrões?

— Tem-se dito que no Xingu anda uma quadrilha de cabanos e de soldados desertores...

 

Cannello, que tinha no quarto seis ou oito armas de munição, ergueu-se de um pulo acordou a mulher, e abrindo uma grande caixa de folha de Flandres, onde tinha mil cartuchos embalados, ensinou-a a carregar as armas com grande rapidez. Depois voltando-se para mim:

 

— O senhor sabe atirar?

 

Como eu hesitasse em responder, acrescentou:

 

— Tem medo?

— Ainda não sei bem do que se trata...

— Ah! trata-se simplesmente de nos tirarem a pelle.

— Isso é serio?!

— Vae ver.

— Estas espingardas darão grande couce? Se tivesse alguma mais pequena?...

— A occasiâo é boa para escolhas!

 

E dirigindo-se outra vez á mulher:

 

— À medida que eu as for descarregando, faze assim... vê que fiquem bem escorvadas e vae-mas ponde a jeito.

 

Mordia os cartuchos, escorvava as armas, que eram todas de pederneira, mettia-lhes as cargas, batia com as coronhas no chão e em menos de um minuto as tinha todas promptas e encostadas á porta, que do lado de traz da casa deitava para a encosta.

 

— Se não quer morrer, vá fazendo o mesmo que eu fizer. Tira essa luz para traz da parede; convém que não nos vejam, nem saibam se somos muitos ou poucos. Como o Rabicho trabalha!

 

Effectivamente, o cão avançava com furia, segundo os seus latidos aos annunciavam.

 

— O senhor ha de abrir a porta muito devagarinho; como o luar vem do rio, a sombra da casa projecta-se para a encosta; assim que abrir, deixe-me manobrar, mas atire também, se gosta de viver... Tome sempre cuidado, não me mate a mim!

 

Abri a porta, como elle ordenara, e avistei uns poucos de homens, querendo encobrir-se com um grupo de pequenas arvores que havia a meia subida da collina, e defendendo-se do cão que os acommettia sem cessar. Carmello deu quatro tiros seguidos, fazendo pontaria ao bando; eu descarreguei também duas ou três armas, emquanto a mulher de Carmello carregava com rapidez admirável, e varonil sangue frio, as espingardas que o marido largava. O cão, sentindo-se mais forte com o nosso apoio, atacava com maior bravura.

 

— Mata esse diabo com uma baionetada! gritou um.dos assaltantes.

— Mata! e avancemos á casa!

— Ai!

— Mata! Mata!

— Ai! Ai!

— Atira, diabo!

— Fujamos, que são muitos!

 

Estes gritos foram soltados pelos salteadores quasi todos a um tempo. Aos nossos tiros respondeu apenas um, cuja carga de chumbo foi cravar-se toda ao lado da porta, sem que nos tocasse um bago.

 

— Fogo, rapazes! Fogo n'aquelles cães! Avança, Rabicho! Ahi, cão! Aboca! Aboca!

 

Gritando assim, Carmello atirava com tanta rapidez, que os assaltantes desappareceram de corrida no alto da collina, perseguidos sempre pelo cão, que apesar de ferido não os largou senão depois de o chamarmos repetidas vezes. Pelos gritos e gemidos que ouvimos, ficámos suppondo, que as nossas balas nem todas se perderam e que Rabicho tinha marcado bem alguns dos ladrões. Revistando-o, logo que elle chegou ao pé de nós, achámos-lhe a boca cheia de sangue e fragmentos de pelle humana, misturados com fios da roupa dilacerada, conjunctamente com as carnes.

 

— Coitado! — exclamou Carmello, que o examinava.

— Fizeste bem o teu dever!

— Devemos-lhe a vida! —acrescentei eu, afagando-o.

— Se elle me não acordasse, estávamos servidos!

— Ah! foi elle?!

 

Referi a Carmello como as cousas se tinham passado.

 

— Todos se portaram bem! Eu penso que matei dois d'aquelles cachorros.

— Eu atirei ao monte... — E conclui commigo: — Fechando os olhos!

— Agora é arriscado irmos ver o effeito dos nossos tiros. O Ricardo Feio deve tê-los ouvido na sua feitoria, e, provavelmente, mandará alguem pela manhâ saber o que foi.

— Talvez se persuadisse de que eram salvas que nós dávamos, festejando o dia em que se poz a primeira tábua do costado?...

— Isso é verdade... Aqui não se faz nada sem descargas ou sem foguetes! Maldito costume dos tapuios!... Se a gente quizer pedir alguma vez soccorro, ninguém percebe!...

— Quem sabe se os ladrões não iriam tambem assaltar a feitoria do Ricardo?!

— É possível... Mas elle não ha de ter sido tão asno como eu, que deixei ir os carpinteiros todos para a outra banda, sabendo que o Xingu anda ha dias mal assombrado!

— Pobre Rabicho! Tem umas poucas de picadas no cachaço, e está perdendo muito sangue!

— Vá lavá-lo com sal e vinagre, que eu, pelo seguro, fico aqui de sentinella até amanhecer. Dá cá o meu cachimbo, e arranjem café.

 

Fiz o curativo ao cão, que protestava latindo dolorosamente contra a brutalidade do medicamento; mas comprehendendo sem duvida que era para seu beneficio, não me recompensou, mordendo-me, como poderia fazer qualquer creatura de certa espécie que sabemos... Depois voltei com elle para junto do Carmello e ficámos conversando e fumando até pela manha; é claro que Rabicho não tomou parte nos nossos prazeres e distracções, comquanto fosse tão digno como qualquer outro de se associar a ellas; mas tinha profundo horror ao café, e não era mais tratavel com o tabaco.

 

No dia seguinte pela manhã subimos a collina e achámos a terra revolvida de meia encosta para cima, e as folhas que a juncavam abundantemente regadas de sangue. Como não apparecesse ninguém, embarcámos todos n'uma canoa e fomos á feitoria de Ricardo Feio. Encontrámo-lo em casa, com todos os seus tapuios, e referimos-lhe os successos da noite. Os nossos tiros tinham sido ouvidos; porém, como eu suspeitara, attribuiram-n'os a causas festivas. Logo que souberam o verdadeiro motivo, armaram-se e partiram comnosco para a feitoria de Carmello. Chegados ali, seguimos, guiados pelo cão, o rasto do sangue, perfeitamente visível; e depois de termos andado por espaço de uma hora através da floresta, descemos novamente para a Beira do rio. Ahi notavam-se na areia não só os vestígios sanguinolentos como as piugadas de muitos homens. Pareceu-nos, pelo exame a que procedemos, que os facínoras não seriam menos de vinte! Apesar de nós não sermos tantos, como íamos armados e sabíamos por experiência que elles tinham apenas uma espingarda ou que lhes faltava pólvora ou balas para se servirem de outras, continuámos a dar-lhes caça. Mais adiante havia uma coroa de areia, separada da margem por um canal que teria meia dúzia de braças de largura. As piugadas sumiam-se na agua em direcção a essa pequena ilha. Rabicho atravessou o esteiro e começou a cavar do outro lado. Como o passo era fácil, fomos atraz d'elle e em poucos segundos o vimos descobrir o cadáver de um homem agigantado, que lhe ajudámos a desenterrar. O morto era mulato e vestia a fardeta de soldado de um dos regimentos que, das outras províncias, haviam ido em auxilio do Pará. Tinha o peito varado por duas balas e uma das pernas dilacerada pelos dentes do meu guarda fiel. O rasto dos que fugiam desaparecia no fim do areial, á beira do rio. Provavelmente ali os esperara a canoa em que tinham vindo e na qual reembarcaram mas os signaes de sangue e a impressão de alguns passos mais profundamente marcados na areia, radicavam que o morto deixado não fora o único ferido pelas nossas balas. Talvez que outros corpos fossem confiados ao Xingu, cujos monstros sabem ás vezes guardar melhor um segredo do que as sepulturas da terra. O certo ó que nunca mais ouvimos fallar dos que foram nem dos que ficaram.

 

Este facto não foi único; houve differentes assaltos d'esta natureza, e nem sempre os malvados encontraram para recebe-los homens com a bravura e sangue frio de Carmello. Muitas canoas dos negociantes chamados regatões foram tomadas por elles, roubadas e desamparadas ás correntes dos rios, depois de assassinadas as guarnições. E se não fora a justiça summaria e a energia do general Andréa, presidente da província, só Deus sabe como e quando esta se veria livre dos malfeitores cabanos e seus associados!

 

O cão Rabicho seguiu ainda durante alum tempo a minha fortuna pelo Amazonas; e quando uma doença prematura me privou da sua affeição, reguei com lagrimas sinceras a sepultura que lhe abri na costa de Paricátiba, na margem direita do Amazonas, consagrando á sua memória os primeiros quatro versos que escrevi e foram gravados n’uma lápida de itaúba (Acrodiclidium Itauba).

 

 

Seria assim o grande Rabicho?

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