Lamento hoje, e o lamentar tardiamente é sinal de arrependimento, sendo este próprio dos fracos, mas..., não ter na altura sido despertado para uma maior penetração na alma e sentir daquele povo, aprendendo a sua língua. Para a vida quotidiana e profissional nunca fez falta, nem mesmo para andar pelo interior, onde praticamente em todo o lado se encontrava quem falasse melhor ou pior o português. Em muito lado podiam não falar com perfeição, mas o entendimento nunca deixou de se fazer, usando uma mistura de todas as palavras que se conheciam de parte a parte.
Lá, nos planaltos, as noites frescas, o céu lindo, estrelado, a fumaça da fogueira subindo ao ritmo do batuque e danças e dos contadores de histórias. De vez em quando uma estrela cadente rasgava por entre todo aquele cintilar, e no mesmo instante um pedido se elevava, que fizesse durar aquela paz e tranquilidade por todo o sempre!
Os céus de Luanda eram mais pesados. Junto à costa, muito maior a humidade do ar, assim mesmo muitas noites aquelas estrelas lá ficavam vaidosas mirando-se e reflectindo-se na quietude das águas da baía, deixando a cidade dormir em sossego. Clima tropical, turvavam-se de vez em quando os ares, anunciando chuvas ou simplesmente pairando incómodas, no cacimbo, baixando a temperatura mas aumentando desagradavelmente a humidade relativa do ar.
Luanda no cacimbo ficava mais triste. O Sol passava com dificuldade através daquelas nuvens e em casa o que não se arejava, embolorava!
As épocas melhores são sempre as intermediárias, que se na Europa se chamam Primavera e Outono, ali eram o fim das chuvas, início do cacimbo, por decreto oficial marcado para o dia 15 de Maio, em que efectivamente não chovia mais, mesmo que na véspera, a 14, tivesse caído uma boa chuvarada como despedida, e o fim deste, início das chuvas, a 15 de Setembro, quando, exactamente nesse dia, em muito lugar caíam as primeiras chuvas oficiais, como que a dizer-nos: Cumprido o Decreto!
Durante o cacimbo não se ia à praia! Estava frio! E se alguém se aventurava a enfrentar esse gelo, ia até lá vestido, calça e camisa, para se sentar naquelas rochas e ali ficar gozando o eternamente belo espectáculo do mar. Outros, mais desportistas, pescavam, e aquele mar generoso a todos contemplava com alguma coisa. E coisas boas tinha aquele mar...
Voltemos aos céus. As Forças Armadas em Angola, nesse tempo eram em número pouco mais do que teórico, mas começavam a crescer.
Para inaugurar o início das actividades da Força Aérea, até ali ausentes de África, organizou-se uma espécie de “festival” aéreo, com uma dúzia de aviões que para lá tinham sido destacados, aproveitando-se para se fazer também uma exibição dos homens que vêem dos céus!
Na altura dizia-se que aqueles aviões tinham sido cedidos pela OTAN (NATO), em que Portugal estava integrado, para exercícios de defesa da Europa. Manhosamente, Salazar convenceu os parceiros que fazia os exercícios de treinamento em África! Ninguém engoliu tão esfarrapada mentira, mas todos fizeram ouvidos de mercador. E, como é cronicamente sabido, os piores diplomatas do mundo são os americanos. Cegos, todos, por dinheiro, tudo Tio Patinhas, cederam aviões para a OTAN e quando souberam que eles estavam em África, e os seus interesses visavam também o chamado Cone sul africano, ou o Atlântico Sul, ou a rota do petróleo e mais as riquezas africanas – África do Sul, Rodésias, Moçambique, Angola e Congo – acharam que não seria má ideia disfarçar e ajudarem a manter o status quo dessa zona de África... até ver.
Os Estados Unidos e a sua clássica incapacidade de política externa ainda não tinham despertado para o mundo novo, os novos países africanos, que se voltavam para a União Soviética, que abertamente os apoiavam. Só mais tarde é que decidiram ajudar e financiar alguns grupos rebeldes, não tanto independentistas, como o FNLA, porque as suas ligações e/ou compromissos com o Congo, nunca ficaram muito bem esclarecidas!
A verdade é que Portugal levou de graça para Angola uma dúzia de caças a jacto!
A chamada direita, que não inclui o PS e o governo mais à direita de todos desde o 25 de Abril, anda completamente desorientada.
Cavaco Silva não cometeu os pretensos erros que alguns lhe atribuem, como o totalmente inútil e até prejudicial veto do diploma, para suplantar o qual a nossa pobre Constituição não exige os dois terços dos deputados, como seria num país normal.
Se essa chamada direita não votar nele (que não tem sido a força de bloqueio que outros foram e manteve a isenção e verdades exigidas pelo cargo) já devia saber que vai continuar a mandar quem tanto já fez força a puxar pelo país para baixo.
E não deve ser esquecido que isso já vinha sucedendo em grande antes da segunda metade de 2008, quando a crise internacional passou a ser desculpa para a continuação do afundamento de Portugal, que até já foi ultrapassado por Chipre e por Malta.
Miguel Mota
Publicado no Diário de Notícias de 29 de Junho de 2010
Nota – A negro o que foi suprimido pelo jornal. Em vez de "suplantar o qual" escreveram "cuja suplantação".
Corriam tranquilos os primeiros meses dos anos sessenta, em Luanda.
Os céus, por incrível que pareça, estavam ainda longe de ameaçar a tempestade que pouco depois começou a desabar em cima de Angola, primeiro com a guerra colonial, e depois muito mais violenta e devastadora com a guerra interna, que se pode chamar de muitas maneiras, nenhuma delas correspondendo à verdade absoluta: civil, tribal, político-partidária (dificilmente esta versão), leste-oeste ou comunismo versus capitalismo, simples (simples?) ambição individual, etc.
Em Angola a vida corria, pode dizer-se tranquila. Não para todos, infelizmente, como em toda a parte do mundo, que parece ser eternamente só para alguns.
Entretanto, jovens angolanos, a maioria deles que tinha ido para Portugal estudar nas universidades, começavam a redespertar para o que estava acontecendo mundo afora, relativamente à subjugação dos povos através do colonialismo.
Decidiram, de entrada somente uns poucos, criar um Movimento que mostrasse ao mundo as injustiças praticadas nas colónias portuguesas, bem como a injustiça intrínseca do próprio sentido colonial, procurando apoio internacional para uma acção mais vasta e completa, que se preciso fosse levasse à luta armada, uma vez que sabiam que o governo português não ia largar da mão, de graça, os territórios que considerava seus e, no total, eram vinte e tantas vezes maiores do que a própria Metrópole. Alguns deles ricos, muitos ricos, Angola sobretudo.
Não eram só os de pele café que queriam livrar-se da tal Metrópole. Não. Eram todos os que ali viviam e passaram a considerar Angola como a sua terra.
O governo central e suas sofisticadas técnicas de espionagem próprias, herdadas da secular experiência da Inquisição e seu mestre grande, um dos maiores e mais completos biltres e criminosos de toda a história da humanidade, que se alinha com Stalin, Mao Tsé Tung e Hitler, chamado Torquemada, sabia de tudo quanto se passava em Portugal, colónias e mesmo no estrangeiro.
Fazia prisões de cafés, leites e quaisquer outros matizes que não se mostrassem da cor do governo. Os que conseguiam escapar imigravam para a Europa central, para o Leste europeu e para alguns países já independentes em África, os únicos que obviamente os apoiavam, como os Congos, Ghana e Guiné-Conackry, e até Argélia, esta batendo-se ainda pela sua própria independência.
Em silêncio, Portugal ia-se preparando para defender militarmente os seus territórios, o que se pode ver pelos orçamentos das províncias, que votaram, já em 1959, para as forças armadas, o dobro das verbas destinadas à educação, cuja falta foi talvez o maior crime cometido por Portugal nas suas colónias, crime com atenuantes atendendo à sua tradição de país com o maior índice de analfabetização na Europa!
Os órgãos de informação rigorosamente controlados, proibidos de falar em quaisquer movimentos ou ideias independentistas ou separatistas, os investimentos a crescer na indústria, leis coloniais travestidas em ultramarinas para fingir que estava tudo bem, afirmando-se que um minhoto era igual a um boximane ou um macúa ou um timorense, enfim, o interior de Angola estabilizado com as populações rurais fixadas, utilizando-se de uma rede de estabelecimentos comerciais que alcançavam até ao mais recôndito das terras do fim do mundo, onde se adquiriam os excedentes de produção, encaminhados depois para as principais cidades.
Viajar por esse interior, ao encontro de uma natureza ainda muito virgem, era algo que até hoje a memória guarda como um privilégio. As estradas eram poucas e na altura das chuvas dividiam-se em pouco mais do que duas categorias: passa ou não passa! Quando não passa, passava-se por vezes um, dois e mais dias à espera que a situação se revertesse, ali, no mato, socorrendo-se o viajante do préstimo do chamado nativo, sempre pronto a ajudar. Nesses momentos, difíceis, incómodos, porque o carro era o hotel, a melhor solução era tirar partido da parte positiva que a espera e os obstáculos impunham, e mesmo não falando a língua local, apreciar um pouco aquelas rodas de conversa à noite, à volta de uma fogueira, pedindo ajuda a algum intérprete que nos pusesse ao corrente do que se ia contando.
PROBLEMA: Falta de flexibilidade laboral, limitações graves na criação de postos de trabalho, falta de IDE
39. Criação de dois tipos de contrato laboral: regime antigo e regime moderno, onde as condições de cessação são mais flexíveis do que no regime actual.
PROBLEMA: Falta de flexibilidade, limitações graves na criação de postos de trabalho, falta de IDE
40. Financiamento separado, quer de segurança social, quer do subsídio de desemprego, para os dois regimes
PROBLEMA: Manutenção de altas taxas de desemprego. Impedimento de qualificação de pessoal
41. Consagração do “sistema dinamarquês” de flexisegurança – 85% salário, 15% em formação profissional séria para os contratos de novo regime
Andamos frustrados. Não direi todos, mas a maioria. Zangados com os homens por amor de Deus ou de nós próprios, zangados com Deus por amor dos homens e de nós próprios.
Mas recebi um e-mail comportando um pedaço do génio de Walt Disney, dos anos cinquenta, “Aquarela Brasileira” que o site “Alma Carioca“ disponibilizou – um texto publicitário contendo uma visita de Donald Duck ao Rio de Janeiro, onde é acompanhado por Zé Carioca. E estes seres, que no filme são criados através da paleta de tintas de Disney, acompanhado das canções brasileiras “Brasil, meu Brasil Brasileiro”, “Nico Nico no Fubá” e mais sambas, deixam-nos do Homem uma visão não mais macabra mas edénica, que nos reconcilia, ainda que momentaneamente, com os homens e com Deus, por amor da Beleza e do génio de Walt Disney.
E momentaneamente também, me dispus esquecer o presente e a recordar tempos antigos, em que, no jornal Notícias de Lourenço Marques tinha uma coluna – “Amor e Humor” – na “Página da Mulher”, dirigida pela escritora Irene Gil e onde assinava Regina de Sousa.
Textos muitas vezes com graça ainda jovem, e resolvi, à maneira de Vitor Espadinha, recordar alguns que, mesmo hoje, pudessem trazer um sorriso, ainda que momentâneo, a quem anda acabrunhado, na discórdia da vida.
De “Prosas Alegres e Não”, 1973:
Treinos
Muito gostava eu que acreditassem em mim, mas segundo li há dias, na voz do insigne poeta Beira, só quando agarrar uma arma entre os dentes ou me mantiver em posição vertical, merecerei confiança.
Fiquei desgostosíssima e tenho-me posto em treinos diários, mas confesso que a minha saúde se tem ressentido e serei forçada a desistir, o que deveras me aflige.
À falta de arma, arranjei um pau de vassoura dos mais pesados, mas o único resultado por enquanto obtido foi o de rachar dois dentes, importantíssimos para segurar a vassoura.
Ando a dormir em pé para me manter vertical, e o mesmo fazem as mulheres da minha rua, como eu infelizes e complexadas, por causa da poesia “À Mulher”.
Elas todas têm sofrido em certas circunstâncias da vida – são todas mães de família – umas dores fortíssimas, a que reagem mais ou menos ruidosamente. Mas tão incomodadas ficaram, que prometeram fazer a greve do silêncio, naquelas mesmas circunstâncias, só para se acreditar nelas. Também afirmam, muito aborrecidas, que afinal só os homens podem lamentar-se à mais pequena dorzita, e ninguém os menospreza. No entanto, a lição serviu-lhes, pois são muito receptivas aos bons conselhos, e prometem nunca mais chorar.
Supunham elas andar verticais e humanas cá por estas ruas da amargura e da desumanidade, mas o poeta Beira diz que não, que isso é só com ele e com os outros homens. Humildemente, então, andam todas a treinar-se, tal como eu, e a “tornear desejos”, a ver se chegamos “além das nossas fronteiras”. Algumas já o conseguiram, amavelmente autorizadas pelos terroristas.
Outra coisa feita por nós também com muita perícia é “clamar” – apesar da greve do silêncio – “pelo grito das razões lúcidas”. Todas compreendemos a necessidade da lucidez, e por isso toca de “clamar” e de “esmagar os róseos romances”. Um autêntico massacre! Pior que a devastação sofrida pela biblioteca cavaleiresca do nobre D. Quixote da Mancha. Até tive muita pena da Max du Veuzit e da Magali, tão maltratadas pelas suas ex-admiradoras, condenando-as definitivamente ao índex expurgatório.
E após estes treinos tão exaustivos e plenos de boa vontade, ficamos todas loucamente ansiosas de saber se acredita finalmente em nós o prezado poeta Beira.
Fraquezas
Fico sempre muito contente quando me reconhecem qualidades. Acho isso de resto uma fraqueza de todo o mortal pouco confiante em si próprio e necessitando que os outros acreditem nele.
Vem este assunto a propósito da carta aberta – que por sinal vinha fechada – enviada pelo poeta Luís Beira à minha discreta pessoa – a congratular-me pelo meu bom humor, quando o mais que se encontra por aí é gente mal humorada.
Comparou-me a uns autores espirituosos mas desconhecidos do meu espírito ignorante. Por isso mesmo, o meu amigo João que também me acha muito ignorante, muito desactualizada – entendendo por desactualização uma cultura não superior à do homem do Neolítico – anda a tentar ilustrar-me, emprestando-me livros que eu docilmente vou acumulando na mesinha aonde costumo acumular livros. Agora já estou às voltas com a civilização assírio-caldaica, suspensa na contemplação dos seus jardins miríficos.
Também achou o poeta Luís Beira que o meu humor se enquadra perfeitamente dentro do tipo da revista brejeira e o meu contentamento foi ainda maior, por isso vir de encontro aos meus desejos torneados de lúcida realização. E até, como é essa igualmente a minha ideia, já em tempos concorri para uma empresa organizadora de revistas, mas faltou-me a mola de acesso de todas as realizações, a necessária cunha para a minha pretensão ser despachada a favor das minhas fronteiras. Injustiças, cuja dor o tempo se encarregará de suavizar.
Quanto aos treinos, eu agradeço os cuidados do poeta Luís Beira, mas para já encontro-me impossibilitada de os continuar por falta de tempo. Tenho-o perdido todo no dentista, onde ando a fazer a dentadura substituta dos dois molares rachados durante aqueles...
Finalizo com um “auto-retrato”, confirmativo da valentia demonstrada nos treinos com a vassoura, texto contido no livro “Pedras de Sal”, de 1974, no capítulo “Antes do Golpe”, ainda brincalhão, livro que incluiria como 2ª edição em “Cravos Roxos – Croniquetas verde-rubras”, publicado cá, em 1981:
Solidez
Sou sólida. Fernando Pessoa dizia-se lúcido, eu apenas me posso gabar da minha solidez.
Mas gostava de ser frágil, isso sim. Quando precisasse de transportar coisas pesadas, diante de assistentes, haveria logo um cavalheiro, dos velhos admiradores de fragilidades, que me tirasse o peso das mãos e o transportasse ele. Acho muito lindos gestos assim, ainda há pouco observei um. Uma jovem magrinha e bonita, de olhos baixos e sorridentes, tentando transportar uma máquina de escrever. Não devia ser pesada, mas para ela era, pois com um sorriso, convidou um cavalheiro para o transporte.
Assim mesmo é que deve ser, mas hoje explora-se pouco o ramo da delicadeza masculina. A mim, pelo menos, não se me têm deparado muitas atitudes daquelas, e talvez se deva isso à minha solidez que inspira confiança imediata na minha capacidade transportadora de pesos.
Como sou romântica, embora sólida, preferiria o “côté fragile”, mas nem todos, neste mundo, podemos ter as mesmas coisas, temos de nos conformar.
De resto, depende muito também, a consideração alheia, do nó de gravata nos homens, ou da distinção da saia, nas mulheres. A cada passo o vou notando, desgostosa e desiludida.
E a mensagem de optimismo destes textos arcaicos, dos tempos da máquina de escrever, é a contida neste último, como consolo dos acima ditos frustrados: nem todos, neste mundo, podemos ter as mesmas coisas, temos de nos conformar.
Sensível como é às injustiças do Jeová e mesmo do mundo português, Saramago não concordaria, em todo o caso, com tal postulado, embora não haja o perigo de que o leia.
Todavia, serve o remate para, gentilmente, eliminar a malquerença para com ele.