Caricatura de Charles de Villiers (o médico descortês)
Em rodas sociais, aonde se encontra algum médico, sempre há quem “puxe conversa” indagando sobre questões de saúde geral ou pessoal, mesmo até já sabendo a resposta, só para testar o individuo ou para apaziguar algum tipo de ansiedade. Provavelmente esse tipo de comportamento, pouco ético e educado, seja um reflexo da evidente falta de qualidade da assistência dos serviços de saúde pública, do estilo de vida corrido e da pouca cultura do povo brasileiro.
A formação dos nossos futuros profissionais me assusta. Para se tirar a qualquer preço o país do subdesenvolvimento, com o aval do governo, cada vez mais abundam escolas médicas sem as adequadas condições de funcionamento. Para compensar as deficiências, ensinam os alunos a diagnosticar prodigalizando pedidos de exames complementares, caros e sofisticados, às vezes desnecessários, onerando o limitado orçamento, em detrimento da boa e velha semiologia. Tratam as doenças, menosprezam o doente. A tão importante relação médico-paciente, baseada na confiança e respeito, quando o profissional saber ouvir o doente e interpretar suas queixas, palavras, movimentos, está cada vez mais subestimada.
Os avanços tecnológicos e os novos conhecimentos reforçam a propedêutica e terapêutica médica, mas é a abordagem e o papel humanístico do profissional que determinam o sucesso ou não do tratamento.
Quando o conceito de doença psicossomática foi levantado pelo médico americano Alexander, da escola de Chicago, que dizia que determinadas doenças eram causadas pelos distúrbios psíquicos, a sociedade médica em geral se rebelou. E como tudo na medicina é uma meia verdade, mais tarde esse conceito foi contestado por novos estudos que davam um outro enfoque mais subtil à questão. Concluíram que o que existe é um doente com alterações psicossomáticas, respostas individuais psíquicas e orgânicas, aos estresses físicos ou mentais, às doenças. Essa constatação cientifica ensina que se deve priorizar o doente no tratamento da doença, coisa que a sensibilidade humana leiga já entendeu e faz há muito tempo.
Combater a tendência moderna, mais ágil, fria e técnica, a preparar os novos profissionais nesse sentido é um desafio para o qual poucos professores estão preparados. A interacção médico-paciente resulta da resposta ao perfil de cada um deles e da empatia que os envolve. A visão e a função psicossocial que o profissional exerce sobre o paciente determinam 50% do sucesso nesse relacionamento. O médico não pode perder o foco. Como profissional, ele é o primeiro remédio para o seu paciente. A linguagem e a postura psicossomática dele devem deixar o doente mais tranquilo e confiante. Por outro lado, o médico deve ter a sensibilidade para ver o paciente como um indivíduo, naquele momento mais fragilizado e por isso mais vulnerável, com maneira própria de enfrentar a doença. A função do profissional é dar-lhe condições para retornar ao equilíbrio bio-psicossocial, factor responsável pela saúde integral do paciente.
Para aqueles que não sabem, moro no Rio de Janeiro, no alto de um morro, a uns 100 metros de altura, semi isolado, rodeado de árvores e, pela generosidade da natureza que insiste em sobreviver, rodeado também de pássaros, uns com residência fixa aqui por perto, outros que todos os dias nos rendem rápida visita, como gaviões, maritacas, papagaios e tucanos, muita lagartixa, vez por outra uma cobra, uns quantos mosquitos e incômodos maruins, sendo a maior luta contra os cupins, ou salalé, que surgem de todos os lados, inclusivamente de dentro das paredes, para lerem com os dentes, uma porção de livros, alguns deles insubstituíveis. É o preço do mato, de qualquer maneira jamais substituível por qualquer cidade. Nem Paris!
Uns pássaros cantam de dia, outros à noite, sempre cantos melodiosos e doces, e muitos descaradamente se aproveitam da ração que damos aos nossos cães, fazendo até habilidades para comerem o granulado. Quando é grande, e não passa na goela dos menores, estes praticam uma tecnologia admirável: roubam uma bolota de ração, depois voam até uns 3 ou 4 metros de altura, soltam o granulado que se desfaz ao bater no chão e... assim fica a refeição facilitada!
Ainda o ano novo não tinha despontado cantava ainda um passarinho que todos os princípios e fins de noite chama pela bem amada! Não sei que «marca» é, porque não o consigo enxergar no meio das árvores, mas o seu canto repetido pareceu-me que chamava por «Deodorim»! Isso mesmo Deo-do-rim, Deo-do-rim, Deo-do-rim! Lembrei-me do «Grande Sertão: Veredas» um dos mais importantes romances da literatura brasileira, de João Guimarães Rosa, que, há muitos anos, antes de ter chegado ao Brasil não havia conseguido ler. A história de jagunços e caipiras com sua fala própria e termos regionais, só me foi possível compreender ao fim de algum tempo do meu abrasileiramento!
Deodorim a heroína, vestida de jagunço, que sempre lutou com valentia de herói e só depois de morta revelou a sua condição de mulher! Seu chefe e companheiro de luta, Riobaldo, chorou a perda do amigo e mais ainda quando viu que ela era uma linda donzela, Maria Deodorina de Deus, por quem sempre sentira uma atracção confusa!
Todos os dias, quando anoitece, e antes de amanhecer, este passarinho, que agora passou a ser o Riobaldo, durante algumas horas chama, num canto doce e meio triste, pela sua linda Deodorina!
«Riobaldo», não desiste. Um dia a sua Deodorina vai reaparecer, assim como a esperança em melhores dias para todos os que sofrem!
Deo-do-rim, deo-do-rim, deo-do-rim!
Não há dúvida de que os pássaros de outras terras não gorjeiam como cá!
Abastança para todos, JÁ! – eis o slogan de todos os Partidos políticos na oposição sobretudo quando em campanha eleitoral. Contudo, é frequente essas promessas não terem qualquer viabilidade e não passarem de falácias. Daqui resulta a inconsequência em que os Partidos caem quando chegam ao Poder com o frequente incumprimento das promessas eleitorais. Mas o que importa é alcançar o Poder e tudo o mais é minudência porque o objectivo foi alcançado e a ele tudo é devido, mesmo à custa da Ética.
Só que ao longo de decénios essas falácias deixaram rasto e despertaram no consumidor vontades anteriormente contidas. O bem-estar deixou de ser um objectivo, passou a ser um direito. Assim nasceu o intento de satisfação imediata de todas as vontades, quiçá de todos os caprichos. E como as poupanças eram insuficientes ou mesmo inexistentes para permitirem tais “luxos”, o recurso ao crédito foi incentivado como forma de estímulo da Economia. O crédito deixou de ser uma conquista pela via do «bom-nome na praça» para passar a ser um «produto» oferecido a qualquer um, cidadão impoluto ou poluído. Assim foi que o consumo entrou na moda. Contudo, em Portugal não fez disparar a produção interna de bens transaccionáveis: fomentou as importações e provocou o descalabro na Balança de Transacções Correntes. Este descalabro só foi disfarçado pela adesão ao Euro e tudo se manteve em aparente normalidade com a especulação bolsista a ditar tudo e a desviar verbas do crédito à produção. Mas não disfarçou o endividamento dos Bancos nacionais perante os homólogos estrangeiros e quando a crise estalou nas «praças internacionais», as repercussões internas não poderiam demorar. E quando tardiamente se descobriu – primeiro nos EUA e depois na Europa incluindo Portugal – que a prudência fora traída e a confiança no sistema podia ser posta em causa, saltaram para a ribalta soluções que provocarão muito significativas tensões inflacionistas pela injecção nos circuitos financeiros de grandes massas monetárias oriundas das reservas se não mesmo das rotativas.
O modelo de desenvolvimento especulativo global avisou ter chegado à exaustão. Está na hora de voltarmos à realidade de que globalmente nos afastámos. Não se fala ainda no regresso a um padrão físico mas não se estranhe que, após tanta volatilidade, alguém comece a referir a necessidade de regresso a um padrão qualquer como o ouro, por exemplo.
E por cá? O nosso modelo de desenvolvimento teve o mérito de democratizar o acesso à habitação própria a tal ponto que Portugal se encontra nos mais altos níveis do ranking mundial desse indicador. Mais: já dá nas vistas no indicador mundial da segunda habitação, a de lazer. E se esta política foi estrutural até no combate político contra soluções colectivistas revolucionárias, os níveis já alcançados evidenciam que esse não pode continuar a ser o grande instrumento do nosso futuro desenvolvimento.
Está na hora de privilegiarmos a produção de bens transaccionáveis e deixarmos – também nós, portugueses – de viver de aparências tudo importando da China. E se não faz sentido regressarmos a um modelo puramente mercantilista como o que vigorou até 1974, teremos certamente que reduzir drasticamente o nível de reivindicações e de recurso ao suporte público quer como entidade empregadora quer como entidade gastadora. O contribuinte português – individual e colectivo – está fiscalmente exaurido e há que enveredar por outras soluções. O caminho da contenção da despesa pública corrente ainda foi ensaiada até meados de 2008 mas a aproximação da campanha eleitoral e o advento da crise financeira mundial deram ao Governo todos os pretextos para regressar a políticas diferentes do equilíbrio por que tanto esforço chegou a ser dispendido. Em vão, afinal.
Pandora abre a sua caixa...
Daqui resulta que 2009 deveria ser o ano de nos entendermos quanto ao rumo estrutural a seguir aproveitando o facto de se tratar de ano eleitoral. Nada melhor para que estas questões entrassem na discussão corrente oferecendo ao eleitor as opções que em Democracia se colocam.
Sim, isto era o tipo de cenário que deveria prevalecer mas temo que seja bem diferente e que se enverede pela demagogia eleitoralista tendo como pano de fundo um desbragamento da despesa pública fundada na necessidade de «combater a crise», novo pretexto para todas as futuras vilanias.
“A Vingança do Leão” é uma história sobre o terrorismo. Foi editado em 2000. A capa da edição portuguesa, da responsabilidade do Círculo dos Leitores, não tem um estilo muito diferente do da edição americana. A cor de fundo da capa portuguesa respeita até a cor desta edição. O romance vem demonstrar que o terrorismo representado, neste caso, pelo personagem conhecido pelo código de “O Leão” é o mesmo terrorismo anunciado no 11 de Setembro 2001 com a destruição do World Trade Center (WTC). Um terrorismo desprovido de consciência humana, isento de remorso, como todos os predadores. O início da história também começa num avião, provindo de Paris e preste a aterrar no aeroporto JFK, em Nova Iorque. A premonição em relação aos acontecimentos no WTC, em 11 de Setembro de 2001, (o livro foi editado em 2000) está no livro, pela voz da principal personagem feminina: - “isto foi só uma amostra do que se seguirá...! (pág. 593). Em tradução livre, a tradutora optou por substituir “game” por “vingança”. Mas, a tradução “ad literam” para “jogo” seria a mais correcta porque, além de aproveitar justificar a sua missão como expedição vingadora, o “modus operandi” de “O Leão”, e que é realçado no decurso do romance e da barbárie dos seus crimes, é o prazer do felino a brincar com a vítima. É mais um jogo do gato e do rato...
Começa, com o despertar do Ano Novo, a nova ortografia luso-internacional! Desaparece o famigerado .. , o tal trema que fez tremer muitos dos pobres estudantes submetidos ao rigor dos (a maioria inaptos) professores de português, somem uns quantos chapeuzinhos chineses, aquele circunflexo simpático^ que é capaz de fazer mais falta aos rizicultores chineses do que ao nosso entendimento escrito, e mais umas tantas regras que eu não faço tenções de utilizar, porque já vi suficientes acordos durante a vida e ainda hoje faço muito êrro (ou erro?). Lembro que quando era jovem tinha uma tia chamada Christina que a certa altura virou Cristina, ficou tudo igual e ela sentiu-se alegremente rejuvenescida. Entretanto já a farmácia perdera o Ph há uns tantos anos!
Mas nada disso me incomoda.
O que realmente o acordo devia prever é a perversão dos costumes da língua, falada e escrita nos filmes legendados, onde a baixaria do linguajar, nem no meu tempo de garoto era usada entre os que se consideravam mucho machos!
Jamais a gente simples, com sua linguagem rústica, mesmo que fosse a la Gil Vicente pronunciava termos tão porcos e vis quanto os que aparecem, TODOS OS DIAS, e a qualquer hora do dia, nos programas de televisão. No rádio não se ouve nojeira semelhante.
E não sai só da boca de jovens ou marginais de gangues, não. Atores com papeis de elegantes executivos e mulheres duma suposta alta sociedade usam essa terminologia rasca com a mesma desfaçatez com que poderiam dizer está um dia lindo ou você é muito simpático!
Parece não haver filme, até em desenho animado, em que o transar não seja mencionado e, pior ainda, exibido, com porcos detalhes anatômicos. A palavra foi buscar a sua origem a transação, do italiano transazione que, parecendo prever a degradação dos costumes, já indica que transação pode ter um significado degradante, como quando alguém transaciona com a própria consciência!
E se fosse só isto, quase se poderia dizer que se transmitiam mensagens de boa e sã moral! O restante e baixo linguajar, nem eu, que me considero (mesmo com muita gente de opinião contrária, o que acho salutar) bastante libertário e até anarquista, não me atrevo a mencionar. Teria que ir abaixo do mais baixo da minha consciência!
Estas permanentes invasões da privacidade não são obra do acaso ou de mentecaptos funcionários das emissoras de tv. Isto faz parte de uma mentalização global lenta, mas profunda e eficaz, da destruição da moral, da família e assim, da sociedade.
Quem está atrás de tudo? É difícil levantar o dedo e apontar. Mas sabemos quem está no meio e no lado de cá! Em nome da liberdade de expressão permite-se tudo! É a democracia no seu pior. A falta de mando e de caráter de quem teria obrigação de não permitir que tais degradações fossem expostas, com o maior à vontade, a qualquer hora do dia sobretudo naquelas em que as crianças têm acesso à tv.
Não parece que fosse um atentado contra a democracia proibir tal linguajar, e tais filmes, antes da meia noite. E não se faz porque? Covardia e corrupção.
Meu Deus! Voltamos sempre ao mesmo.
Desculpem o desabafo de final de ano, e esperemos, sem grande esperança, que o tempo vindouro abra a cabeça aos (des)governantes. A sua consciência.
Sem não se conseguir abrir por dentro, que se abram por fora... à paulada.
No início de Dezembro começam os preparativos. Meu pai alugava um carro e ia à Estrada da Caldeira escolher a nossa árvore de natal, num sitio ao lado da Capelinha de São João, onde se cultivava e vendia lindos pinheiros para os festejos natalinos.
Na modesta casa de minha avó, no centro da sala assoalhada, sobre uma mesa redonda coberta por uma linda toalha branca rendada, se erguia um presépio simples, onde uma antiga e linda imagem do Menino Jesus Coroado reinava, sozinha. Em volta, pratinhos de trigo grelado, que mais pareciam curtas e verdes cabeleiras, e arranjos de exuberantes camélias brancas e laranjas perfumadas enfeitavam com singeleza aquele altarzinho. Do teto, quatro grossos cordões circundados por uma verde e luxuriante trepadeira se abriam até o chão, em forma de pirâmide, sobre o pequeno altar. Um tapete verde, de folhagens, fazia um caminho da mesa à entrada. Na cozinha vovó fazia massa cevada, o prestigiado bolo de nozes, e as tradicionais fatias douradas. Aromas adocicados e frutados se expandiam pelo ar.
Vez por outra, “ranchos” passavam pelas casas. Ao serem convidados entravam, homenageavam o Menino Jesus e os presentes com canções natalinas. Depois da apresentação, eram-lhes servidas guloseimas. Frutas, figos secos recheados com manteiga e nozes, bolinhos confeitados, tudo acompanhado de uns copitos de angelica, bebida licorosa à base de uvas (do Pico), para esquentar. Eram pessoas, na maioria jovens, que agasalhadas com grossos sobretudos, boinas e cachecóis, andavam pelas ruas frias e húmidas das freguesias, tocando e cantando músicas regionais da época.
Mas era na casa de meus pais que os familiares se reuniam para a ceia natalina. Um quarto era desmontado e servia de sala para o pinheiro. Alto, frondoso, ele me encantava. Ansiosa, esperava papai chegar da loja onde trabalhava para, depois do jantar, ajudá-lo a enfeitar a árvore de Natal. Os enfeites eram confeccionados com cascas de nozes recobertas por papel de prata colorida (dos chocolates que comíamos durante o ano), pequenos brinquedinhos, e bonequinhos artesanais de São Nicolau, feitos de papel crepom vermelho e algodão. Sobre os galhos, finos fios de papel prateado imitavam neve.
Os serões eram alegres e divertidos. Na azáfama de concluir o trabalho, não sentíamos o frio que àquela época já chegara. Quando caía granizo, em forma de pequeninas bolinhas, eu corria para a janela e, através da greta que se fazia ao levantar a hemi-folha da vidraça, recolhia em pratinhos de brinquedo, o gelo que logo se derretia. Para aquecer o ambiente, minha mãe acendia um pesado fogão de ferro inglês, comprado de um casal britânico, que trabalhou na ilha, quando da instalação dos cabos submarinos no Faial.
Na noite de Natal, tudo arrumado, os parentes chegavam. Eram abraços, saudações, trocas de pequenos agrados. Depois de jantar a tradicional bacalhoada, as crianças se deitavam para esperar o São Nicolau chegar. Logo dormiam, veladas pelos mais idosos.
Meus pais, tios e os jovens da família iam para igreja, a pé, em alegre algazarra, bem agasalhados, para assistir a Missa do Galo. Confraternizavam com quem encontravam. A missa era linda, cantada, durava mais de duas horas. Voltavam de madrugada, da mesma maneira, a pé e com fome. Em casa a mesa simples, mas farta, esperava-os para a ceia. Eram inhames, linguiças, carnes assadas, torresmos, batatas. No aparador as sobremesas. Massa cevada, pudim de veludo, bolo de nozes, frutas cristalizadas, figos secos recheados, amêndoas açucaradas, vinho tinto da casa, do ano passado, e licores de frutas do Pico.
Quando chegavam, os presentes eram colocados, em silencio, sob a árvore.
Concluída a tarefa, meus tios acordavam as crianças com grande alarde, batendo panelas. Corram, diziam eles, São Nicolau está na sala, deixando as prendas. Era uma balburdia. A criançada, ainda atordoada, se precipitava para o aposento onde estava a árvore de Natal. Com os olhos esbugalhados, olhavam a janela, propositalmente aberta, insinuando que São Nicolau fugira. Os maiores já desconfiavam da história, mas os menorzinhos ainda acreditavam no Bom Velhinho. Cansados de tanto procurar, voltavam as atenções para os coloridos embrulhos, que abriam com sofreguidão. Afinal eles comportaram-se bem o ano inteiro. Agora era brincar até o dia clarear, enquanto os adultos iam para mesa, cear.
O nosso rei D. Afonso V (1432 – 1481), primo de Cristiano I da Dinamarca, sabia das viagens dos vikings pelos mares nórdicos. Também lhe tinham dito que por esses lados se deveria conseguir chegar à China. Assim foi que os primos se associaram numa expedição luso-dinamarquesa com o intuito de desbravarem terras que se dizia poderem ser bom caminho para o Oriente e, melhor ainda, o de descobrirem o caminho marítimo que passaria ao longo da costa ocidental da Gronelândia já então conhecida dos dinamarqueses. O comandante dinamarquês dessa expedição – realizada por volta de 1472 – foi Didik Pimmy enquanto a parte portuguesa era comandada por João Vaz Corte Real; os segundos comandantes eram Poythorst e Álvaro Martins Homem.
E o que conseguiram estes aventureiros? Várias coisas: começaram por repetir as viagens dos vikings mas desta vez usando as velas latinas das caravelas e não mais as quadrangulares dos drakkars assim conseguindo navegar à bolina e alcançarem lugares a barlavento. Ou seja, depois de concluírem que não conseguiriam romper os gelos eternos que se formam no estreito entre a Gronelândia e a «terra firma do Norte», rumaram a Sul à descoberta de terra nova: se o caminho marítimo setentrional era impraticável, havia que descobrir uma alternativa. E a isso se dedicaram os portugueses pois os dinamarqueses estavam mais interessados em povoar a Islândia e a Gronelândia. Mesmo assim, foram descobertos vestígios dinamarqueses em L’Anse aux Meadows no actual território canadiano mas tudo aponta para que os Melungos sejam descendentes dos primeiros cruzamentos entre portugueses e índias nativas da costa leste e que com o desenrolar dos anos se tenham espalhado pelos Apalaches onde actualmente mais se concentram.
Só que tudo isto eram matérias a manter no maior secretismo devido à cobiça alheia. Para Portugal a conclusão era uma: a passagem do Noroeste não era praticável. Por isso mesmo D. João II não perdeu tempo com aquele a que actualmente se chama Cristóvão Colombo e o deixou «pendurar-se» nos reis de Espanha que assim se entretinham com coisas que por cá se sabia não servirem o propósito de se alcançar o extremo oriente.
João Vaz Corte Real repetiu a viagem – agora na companhia de João Fernandes, o lavrador de Angra que queria expandir as terras de cultivo – e transmitiu aos filhos a ideia da busca do desconhecido, da obtenção de novas terras, de novos comércios. Foi já nos Açores como Capitão Donatário de Angra que soube do desaparecimento do seu filho Miguel naquelas costas frias e foi na sua nova ilha que soube do desaparecimento do seu outro filho, Gaspar, que para lá zarpara em busca do irmão. O rei D. Manuel proibiu que o terceiro filho de João Vaz, Vasco Annes, seguisse em busca dos irmãos por vários motivos: primeiro porque o próprio Vasco Annes desempenhava o cargo de Vedor do Reino (algo parecido com o actual Ministro das Finanças), segundo porque o caminho para Oriente não era possível por aquelas latitudes e em terceiro lugar porque povoar aquelas terras faria que faltassem povoadores ao longo da alternativa viável que já se conhecia, a de África.
E quando hoje ouvimos falar de New Foundland não podemos deixar de traduzir por Terra Nova, a que os Corte Reais possuíram por as terem descoberto para os reis de Portugal e que por isso mesmo ficaram referidas na cartografia da época por Terra dos Corte Reais; quando ouvimos falar da península do Labrador logo nos lembramos desse João Fernandes lavrador dos Açores que expandiu a sua actividade para aquelas ricas terras e quando sobrevoamos S. João da Terra Nova não podemos esquecer os pescadores portugueses que ainda hoje por lá insistem na labuta constante que deu à terra o nome de Terra dos Bacalhaus.
Sabendo que hoje demoramos 3 horas a sobrevoar o percurso de S. João da Terra Nova a Nova Iorque e duas horas apenas no sentido inverso, compreendemos bem a impossibilidade que os vikings tinham em navegar nos drakkars para sul da Gronelândia; quando hoje sabemos que os pescadores de S. João da Terra Nova tiveram que trocar a sua actividade de gerações pela de mineiros de lamas betuminosas no interior do Canadá, compreendemos que o nacionalismo canadiano não queira mais pescas portuguesas de bacalhau nas suas águas territoriais mas sabemos que as espécies que alimentavam os canadianos foram devoradas pelos bacalhaus entretanto promovidos a espécie protegida mas não proibida de manter as características de predadora que sempre a caracterizaram.
E foi pensando em tudo isto e em todos esses bravos que chegaram àquelas terras numa época em que nem sequer se conseguia calcular a longitude que cheguei à Terra Nova e reverenciei D. João II que substituiu o Tratado das Alcáçovas pelo de Tordesilhas e mais tarde corrigiu este de modo a ficar com o Brasil mas sem terçar armas por esta terra fria. É que Cantino não tinha razão. E, pelos vistos, o rei sabia.
Planisfério de Cantino colocando a linha do Tratado de Tordesilhas de modo a que a Terra dos Bacalhaus ficasse portuguesa.
Lisboa, Janeiro de 2009
Henrique Salles da Fonseca
BIBLIOGRAFIA:
TAVIRA – TERRA DOS CORTE REAIS – Fernandes Vaz, Adérito – Edição Jornal do Sotavento, Tavira