Burricadas nº 46
A RESSACA - I
v O facto de a crise financeira ter terminado não significa que “the days of wine and roses are back, again” (que o Leitor me perdoe o estrangeirismo). Do vinho, ficou-nos a ressaca; e rosas viçosas, agora, só na próxima estação (do ciclo económico).
v Para que uma crise destas não volte a acontecer, é preciso ter ideias claras sobre o que falhou. E, mesmo assim, outras crises hão de vir, certamente. Porque o modelo de mercado é isto mesmo: um processo de “tentativa e erro” sujeito a restrições de natureza nominal que constrangem todos e, de vez em quando, premeiam alguns.
v Contrariamente ao que por aí se diz, esta crise não foi o canto do cisne do modelo de mercado. Foi, apenas, o resultado inevitável de tentativas que só na aparência estavam a ser bem sucedidas, e de erros que perduraram tempo de mais. Acontece.
v Desmistifique-se, de vez, a complexidade dos instrumentos derivados - afinal, contratos melhor ou pior redigidos, como todos os contratos são. Difícil, sim, é determinar-lhes um preço teórico (ou de não arbitragem, obtido em mark to model), referência muito útil para quem queira operar com eles. Mas se não for possível, paciência.
v E absolva-se a inovação financeira, também ela exemplo do que seja “tentativa e erro”. Se não fosse muita da inovação financeira hoje corrente, o custo de capital para a generalidade dos agentes económicos teria sido ainda mais elevado, e a concentração do risco teria deixado na gaveta um bom número de iniciativas. Foi a inovação financeira, aliás, que tornou possível a acção concertada dos Bancos Centrais, nestes últimos meses – e que evitou males maiores.
v Por outro lado, esta crise desfez equívocos que vinham dominando o pensamento económico. Um deles era a neutralidade da moeda (ainda agora há quem continue a pensar assim). Na realidade, o volume da liquidez em circulação não aparece em fotografias isoladas – só em filme se deixa ver. Ou seja, importa não perder de vista o modo como a liquidez evolui, principalmente em prazos curtos, e se distribui.
v E se volume, distribuição e taxa de variação da liquidez primária (a moeda emitida pelo Banco Central), tal como o respectivo preço (as taxas directoras), condicionam, simultaneamente, a esfera real e a esfera nominal de uma economia, a outra componente da liquidez que circula, a moeda escritural (criada pelos Bancos nos empréstimos, quando creditam a conta do mutuário), acrescenta uma variável mais ao leque: o risco de crédito que esses empréstimos arrastam para o interior dos sistemas financeiros.
v Reguladores e Supervisores têm muito mais com que se preocupar, de ora em diante. Por exemplo, têm de equacionar permanentemente as variações da liquidez em circulação com o risco de crédito a que os seus sistemas financeiros se encontram expostos e, por aí, com os Capitais que as instituições financeiras possuem. Isto obrigá-los-á a ter ideias próprias sobre o risco – e a revelarem-nas. Afinal, gostem ou não, a disciplina do mercado também lhes bate à porta - e levá-los-á mesmo a redobrar de cuidados para não incorrerem tão amiúde em moral hazard (se tudo parece correr bem, colhem os louros; se as coisas descambam, apresentam a factura ao contribuinte).
v Outro era mais cegueira que equívoco: as posições dos Bancos domésticos nos mercados interbancários internacionais, coisa transitória, não interessavam para nada - por isso, ou não apareciam mencionadas nos relatórios de instituições internacionais e Bancos Centrais, ou apareciam como estatística sem comentário. Pois não! Desencadearam a crise asiática (1997) - e o FMI só num paper perdido entre mil lhes fez referência. Atiraram agora a Islândia para a bancarrota. E só não fizeram o mesmo a nós porque estamos na zona EURO e ainda conservamos um bom naco da “pesada herança”.
v Equivocados andavam também os Bancos Centrais (e a teoria) quando consideravam que crise financeira era sinónimo de pânico entre depositantes – tinham parado em 1929-33. Com os modelos de negócio bancário que irromperam após o colapso de Bretton Woods (1972), outros novos factores de crise foram entrando em cena: o risco cambial (que tem estado, por enquanto, surpreendentemente discreto); os mercados interbancários; o risco preço nos mercados de valores mobiliários; o risco de reputação com origem em séquitos cada vez mais alargados; e as estratégias credoras baseadas em instrumentos derivados e contra-fianças.
v Conhece-se agora bastante do que vai ser feito nos EUA através do TARP/Troubled Assets Relief Program (com crise ou sem crise, o mundo financeiro não perde ocasião para mais umas siglas inspiradas): (a) USD 2,316.76 é a factura apresentada a cada contribuinte norte-americano; (b) subscrição pelo Tesouro de acções preferenciais remíveis (mediante uma Call de estilo americano cujo prazo de exercício é de 3 anos) nos Bancos em dificuldades; (c) estas acções preferenciais conferem o direito a um dividendo preferencial de 5% durante os primeiros 3 anos e de 9% daí em diante; (d) o Tesouro mantém uma opção sobre 15% do Capital dos Bancos intervencionados; (e) a intervenção não poderá ser inferior a 1%, nem superior a 3% do Activo do Banco alvo, com um tecto de USD 25 mil milhões.
v Na UE, sabe-se que cada Governo vai pôr em jogo quantias sem paralelo para garantir os seus Bancos enquanto tomadores de fundos nos mercados interbancários internacionais - ou para reforçar o Capital dos mais fragilizados. Sabe-se que qualquer destas intervenções terá um custo para o Banco intervencionado, mas nada foi divulgado sobre que custo será ou se reflectirá o risco a que o dinheiro dos contribuintes ficará exposto. Quanto às Filiais europeias de Bancos sedeados noutros Estados Membros – nada (talvez ocorra uma intervenção conjunta dos Bancos Centrais envolvidos, o do país de origem e o do país de acolhimento – mas como?)
v Portugal adoptou o modelo europeu, como não podia deixar de ser. E são vários os indícios de que a estratégia governamental ficou assim delineada: (a) a CGD assegurará a liquidez do mercado interbancário nacional (suprindo necessidades pontuais dos outros 4 grandes Bancos e dando aos restantes um apoio mais continuado em matéria de liquidez); (b) as insuficiências de Capital dos 5 grandes Bancos (incluindo a CGD) serão encargo directo do Tesouro; (c) as insuficiências de Capital dos restantes Bancos serão solucionadas pelos grandes Bancos, se necessário com fundos que o Tesouro adiantar para o efeito; (d) ainda se deve estar a discutir como descalçar a bota se o Montepio Geral, uma associação mutualista, necessitar de aumentar o seu Capital (Espanha tem um problema semelhante, mas incomparavelmente maior, com as suas Cajas).
v Problemas de liquidez ou insuficiência de Capital nas Filiais de Bancos estrangeiros (sobretudo, Banco Santander/Totta, BBVA, Banco Popular e Barclay’s Bank) poderão não ser rapidamente solucionados (salvo se houve já o cuidado de articular linhas de apoio com o Banco de Espanha e o Banco de Inglaterra).
v O mais preocupante, nesta fase de ressaca, é a tentativa bem francesa de acabar com a regra da valorização em mark to market para grande parte dos patrimónios dos Bancos (Carteira de Crédito Bancário e Carteira de Valores Mobiliários para Negociação). “Deixem-se de modernices e voltem lá aos custos históricos para que os Capitais Próprios dos Bancos não andem aos sacões”, parece-me estar a ouvir Mr. Sarkozy.
v Os Capitais Próprios ficarão assim mais protegidos das tropelias dos mercados. Mas a história não acabará aí: (a) a mesma quantidade do mesmo activo financeiro nos Balanços de dois Bancos diferentes poderá ter dois valores diferentes – e lá se vai o level playing field, a disciplina do mercado e, em boa verdade, o Basileia 2; (b) a desconfiança entre os Bancos veio para ficar, salvo se o dinheiro dos contribuintes continuar em cima da mesa ad aeternum. Está a ver, Leitor, qual é o sonho secreto de Sarkozy? (cont.)
Lisboa, Outubro de 2008