Continuarão as armas nucleares a dissuadir a guerra?
Não é estultícia nem é novidade afirmar que a ordem internacional entrou numa escalada de risco desde que a situação no Médio Oriente se agudizou com a invasão anglo-americana do Iraque. No entanto, com este episódio pode ter-se apanhado um banho de humildade ante à prova provada de que os meios convencionais estão longe, por si só, de poder resolver todos os conflitos do planeta. Por outro lado, é de esperar que a mesma cultura de humildade elucide as democracias ocidentais que o pretexto da sua superioridade moral não basta para impor a outros povos os modelos e os conceitos inspirados pela matriz filosófica do seu sistema. Principalmente se tivermos em conta que as duas devastadoras confrontações bélicas mundiais foram provocadas por povos europeus e governos democráticos.
O fim da II Guerra Mundial abriu uma era em que as duas principais potências, EUA e URSS, seguraram os cordelinhos da situação internacional graças ao efeito dissuasor da arma nuclear. Se esta arma não pode invocar outro mérito, deve pelo menos ser-lhe reconhecido o de ter contribuído para evitar uma nova hecatombe, mas sabe-se lá com que angústia e suspense sufocados. À excepção de alguns conflitos regionais de consequências trágicas para os respectivos povos envolvidos, a verdade é que um certo equilíbrio geral sustentador da paz prevaleceu até à queda do muro de Berlim, marco histórico do fim da guerra-fria.
Mas logo a seguir, a visão unilateralista da política externa dos EUA veio cortar a raiz da oportunidade de uma reavaliação séria, ponderada e ampliativa dos problemas atinentes a uma nova ordem internacional. Pode dizer-se que a Al Qaeda ajudou a precipitar os acontecimentos, e é um facto, mas a uma nação poderosa e com as responsabilidades dos EUA exigia-se cabeça fria e auto-domínio, ao invés de retaliação tout court, com a tresloucada pretensão de querer resolver o problema do terrorismo internacional com recurso incontido aos meios convencionais. Melhores resultados teriam hoje sido capitalizados se tivesse sido empreendida uma verdadeira política de aproximação aos povos em crise, em paralelo com um serviço de informações competente, ramificado e concebido em franca e alargada cooperação. O terrorismo não tem qualquer justificação moral, não senhor, e há que procurar compreender o mais possível as suas tácticas e os seus ardis, no que um bom serviço de informações desempenha um papel de capital importância.
Estando por resolver o problema do terrorismo islâmico, neste momento as atenções centram-se na problemática do armamento nuclear, com os episódios do Irão e da Coreia do Norte a exigir aos fóruns de discussão a bitola certa sobre o que fazer e como fazer. A Coreia do Norte pode neste momento estar mais sustida no seu empolgamento, mediante as promessas de ajuda económica que lhe foram feitas e que possivelmente encerrarão o processo até um novo capítulo. Agora, o problema do Irão é de um cariz diferente e mais sinuoso, porque escorregadio como a enguia. Começa por não se saber como classificar a pretensão de Ahmadinejad, ele chefe de um governo eleito em regime democrático. É lícito considerar o Irão um país não confiável só por causa da sua localização geográfica, religião e desejo de hegemonia regional? Como assim se Israel, Índia e Paquistão já detêm essas armas estratégicas?
O que mais desconforta no problema iraniano é ele estar em banho-maria, mas um banho-maria que pode ir aos poucos escaldando à medida que a credibilidade dos EUA se esvazia cada vez mais com a evidência confirmada da sua desastrosa intervenção no Iraque. Ninguém ignora que não se pode assobiar para o lado quando um país que ameaçou apagar Israel do mapa e quer disputar o domínio da região não consegue disfarçar a sua ambição de possuir um arsenal de armamento nuclear, mesmo que o não diga à boca cheia. Veja-se o ainda recente incidente do aprisionamento dos militares ingleses para se perceber que o Irão não pretende deixar qualquer espécie de crédito por mãos alheias, tanto mais agora que uma conjuntura bem favorável lhe foi oferecida de bandeja pelos EUA, a partir do momento em que este anulou o seu inimigo estratégico regional.
Sensatos ou ... ?
Até quando vai continuar o tira-teimas do enriquecimento do urânio no Irão? Como não atentar no perigoso precedente que se abre se esse país conseguir os seus desígnios, estimulando o seguidismo de outras potências regionais?
O historial das armas nucleares não aconselha qualquer tergiversação, se tivermos presente a memória dos bombardeamentos do Japão e a angustiosa incerteza que ensombrará sempre o espírito da humanidade com a simples lembrança da sua letalidade. A decisão dos responsáveis pelo planeta só poderá ser uma. A abolição dessas armas e o início de uma política de desarmamento geral e controlado. Só assim será possível perspectivar uma nova ordem internacional e auspiciar uma era de paz.
Numa ilha parada e decadente, o turismo faz renascer uma pontinha de entusiasmo numa terra que já foi praça de escravos e palco de pelejas ferozes entre colonizadores portugueses e mercadores árabes. Pode ser o renascimento, mas são precisas ajudas e boas vontades, a começar pelas próprias autoridades locais
Fortaleza do Ibo
Não foi difícil ter informações sobre o sacristão da igreja de São João Baptista. O Sr. Calisto encontrou-me na rua que vai para o mercado e aí acertámos a hora e local da nossa conversa. Já sabia quem eu era e que queria falar com ele. É fácil no Ibo reconhecer um estranho. Habitam na ilha pouco mais de 3.000 pessoas. Muitos se mudaram para o continente há muitos anos. E a cada dia muitos são os que decidem procurar uma vida melhor em outros cantos do país. A vida não está fácil. A paisagem é desoladora. As casas são comidas pelas raízes das árvores. “Pouca gente habita aquilo que é comum chamar-se centro histórico, ‘conjunto monumental’ ou, moçambicanamente, bairro de cimento. Quem lhe define agora a urbanidade é a natureza exuberante. Ela vai-se apoderando de todas as pedras como coisa ávida de recuperar o que perdera”, escreveu Júlio Carrilho no seu “Ibo — a casa e o tempo”.
O Sr. Calisto é professor na escola primária de Cumbuana, no Ibo. Vive na ilha há dez anos e, desde a sua chegada, junta às funções de professor um outro ofício: celebra missa na Igreja de São João Baptista. “Não há padre aqui no Ibo. Eu celebro a missa há muito tempo, há dez anos, desde que resido aqui. Quando cheguei aqui já não havia padre. Havia uma senhora responsável pela igreja, mas logo a seguir foi embora para Portugal e então fiquei a tomar conta das orações.”
A Igreja de São João Baptista está a cair em pedaços. As portas escancaradas. As estátuas despedaçadas repousam o seu sono de abandono, na sacristia. Poucas flores artificiais mostram que ainda há alguém a querer manter vivo o edifício, mas o esforço parece ser em vão. Poeira, infiltrações e telhado desmantelado fazem o resto da paisagem.
“A igreja está totalmente decaída, não há apoio, muitos falaram com o bispo mas ele ainda não deu uma resposta. Até agora. As portas estão estragadas, as pessoas entram de qualquer maneira. O bispo novo ainda não veio aqui. O antigo, que foi transferido para Maputo, chegou a vir aqui e viu a situação lastimável da nossa igreja”, diz-nos o senhor Calisto que todos os domingos celebra a missa e dá a comunhão aos fiéis. “Numa missa consigo 5 ou 6 fiéis. A falta de fé é um grande problema. Somos muitos católicos, mas poucos vão à missa. Todos somos vindouros (sic). Eu por exemplo sou natural de Muidumbe, sou maconde. Os católicos do Ibo não são naturais daqui, vieram de fora, Montepuez, Namuno, de muitos lugares, só vieram trabalhar aqui.”
O Ibo é uma mistura de gentes e história, “homens e mulheres, ricos e pobres, de fora e de dentro”. E de religiões, embora a maioria dos habitantes seja muçulmana. Como a Roquia e a Salima, as miúdas que encontrei na praia a vender doces de coco e messiquiro. Frequentam a sexta classe na escola pública para aprender a ler e escrever, e vão à madrassa decorar o Alcorão.
O sr. Calisto queixa-se de não ter meninos para o catecismo. Ele acha que não é um problema de falta de católicos. Se houvesse um sacerdote a sério talvez as coisas mudassem…“Não faço catecismo durante os dias de semana porque não tenho meninos, é um problema de falta de fé dos pais. Somos poucas pessoas a comungar. Eu próprio, a minha família, o Sr. Alexandre e agora se juntou a nós uma parteira.” Pergunto-lhe como é que faz com as hóstias. “O padre Crisanto, que é pároco encarregue da igreja no Ibo e da de São Paulo em Pemba, traz as hóstias quando ele cá vem. Outras vezes vou a Pemba, falo com o padre, ele abençoa e entrega-me as hóstias para a Missa.”
Paraíso para turistas
A ilha do Ibo já foi um prazo, já foi terra de comércio de escravos. Quando a capital do grupo de ilhas Quirimbas foi mudada para Pemba, a ilha do Ibo já não foi mais nada. Ficou refém das marés vivas e do esquecimento do tempo, com as varandas sempre mais vazias e sempre mais decrépitas. Já se pensou fazer dela o centro de uma Zona Especial de Turismo, mas deu em nada. Hoje faz parte do Parque Natural das Quirimbas e está a ser redescoberta. O seu ar decadente e fascinante ao mesmo tempo começa a despertar o interesse de investidores nacionais e internacionais. Será que, timidamente e a muito custo, se tornarão realidade as palavras do arquitecto Carrilho “o presente ciclo de degradação e um certo marasmo será ultrapassado pela redescoberta da riqueza natural, de novas vocações para o relançamento económico e social e da importância do património tangível e intangível das ilhas no seu conjunto e do Ibo, em particular”?
Kevin Record acredita que sim. Investiu cerca de dois milhões de dólares na reestruturação do edifício Belavista, na rua homónima. O edifício que já foi sede do Registo Civil. Um hotel de charme, o Ibo Island Lodge, que está a funcionar há alguns meses. “Um investimento grande e um grande desafio. É preciso trazer tudo de fora. E de qualquer ponto, a distância é enorme e cara. Mas acho que vale a pena”, diz-nos, não escondendo algumas preocupações e descontentamentos com as autoridades moçambicanas que não ajudam muito. “Questões administrativas e contratuais com o Governo moçambicano não nos tornam a vida fácil. Queríamos muito ter mais apoio.” Até nós, jornalistas, tivemos que ouvir as descomposturas da administradora da ilha porque não fomos apresentar as saudações às autoridades locais quando chegámos.
Mas estão contentes os ourives. A cooperativa local que trabalha a prata em filigrana começa a vender aos turistas que aí chegam. E voltou-se a tomar café produzido nos cafezais locais. E os carpinteiros também voltaram a talhar a madeira para fazerem a maravilhosa mobília, tão característica da ilha. E os produtos das machambas são vendidos ao restaurante. “A nossa filosofia é de ajudar a gerar rendimento em vez de fazer doações. É a nossa maneira de contribuir para o desenvolvimento e para combater a fome e o desemprego que reinam nesta ilha maravilhosa”, diz-nos Kevin Record.
Uma piscina que dá para o infinito é um dos requintes do hotel que tem 14 quartos e suite e um spa para massagens com óleos da ilha, feitos pela dona Ancha que aprendeu a arte no Zimbabwe. O custo é puxado: 195 dólares para os nacionais e 295 para os turistas internacionais. “Temos que mandar vir tudo de fora: combustível, loiça, vinhos…”. Os detalhes da decoração (todos os móveis foram reproduzidos in loco no estilo do Ibo), as inúmeras actividades oferecidas, os manjares no terraço e nos jardins, os cafés nas varandas, têm o seu preço. O paraíso não é de graça...
O Sr. Calisto está esperançado. Manon troppo. “Agora começam a aparecer muitos turistas. Acho que é bom para verem a degradação do Ibo. Muitas casas estão em ruínas. Muitos abandonaram a ilha e foram para Pemba. Muitos estão no bairro Paquitequete. Tenho esperança que isto possa vir a mudar. Só que o problema é que as pessoas falam e depois não cumprem. Muitos dizem que vão resolver o problema da igreja, mas até agora não foram além das palavras.”
A burocracia que actualmente ocorre na área da saúde brasileira é, em muitas situações, um estorvo ao bom senso e à inteligência. Em vez de agilizar e facilitar a vida daqueles aflitos que procuram atendimento na área pública, parece brincar de gato e rato, empurrando as pessoas de um lado para outro, usando termos de vocabulário técnico, difícil de entender, dando uma falsa ideia de competência. São filas e telefonemas para marcação de consultas, exames e retornos, que só serão feitos daqui não se sabe quanto tempo, com sorte daqui alguns dias ou quem sabe daqui alguns meses, tudo ignorando a angustia do doente ou a gravidade do problema. São retornos que na realidade são consultas a novos médicos. São pacientes que se transformam em clientes (em geral pela falta de resolução do seu problema), são pedidos de exames sem consultas, ou solicitações de outros médicos para seus pacientes, que desejam fazer economia utilizando os serviços laboratoriais da rede pública. São pacientes que perdem as marcações e que mesmo assim ocupam o horário, sem estar presentes. São rotinas e regras de trabalho que, bitoladas, desconhecem as excepções e o improviso, ocasionalmente necessário. São os mutirões para isso ou para aquilo, organizados pelas Secretarias de Saúde para levantar estatísticas, nem sempre fiéis, para o Governo. Tudo isso atravanca o verdadeiro atendimento, transformando o médico, servidor público, num perfeito burrocrata, peça da máquina administrativa.
Burocracia médica ou ...
...medicina burocrática?
Os tempos mudaram dizem os modernistas, a medicina também mudou, mas não sabemos se foi para melhor. Se por um lado houve facilitação ao acesso da população à tecnologia e às novidades médico-farmacêuticas, por outro lado o atendimento ao indivíduo perdeu no sentido de humanidade, eficiência e qualidade.
A função da medicina, como nas demais áreas sociais, é se adaptar às necessidades da sociedade. Médico e paciente fazem uma equação que procura a qualidade de vida.
Quando a medicina é socializada, como no Brasil, para o bom atendimento médico é preciso que o Estado dê uma boa formação aos seus profissionais, controle a qualidade de ensino das escolas públicas e particulares e lhes dê condições dignas de trabalho em local seguro e equipado, com apoio laboratorial complementar.
O profissional da área de saúde é um cidadão como outro qualquer. Ele tem direitos e deveres inerentes ao seu ofício e à cidadania. Deve executar suas tarefas em ambiente adequado, recebendo salário correspondente à sua qualificação e responsabilidade. O respeito por parte dos pacientes e colegas é código de ética que só aumenta o empenho profissional e traz benefício ao doente. É preciso que a burocracia que rege o nosso sistema de atendimento não destrua a liberdade do médico e com isso, a sua consequente responsabilidade. É preciso que haja flexibilidade para o bom atendimento. Ainda é possível olhar o paciente como uma pessoa com sensibilidade e necessidades únicas e não como mais um número nas listas e nas estatísticas do Governo. Acreditemos que, apesar de tudo, o homem (atendente ou atendido) seja capaz de preservar a sua maior virtude: a humanidade.
Cigana, quase tão larga quanto de altura, perfeito batoque de buço e pelo saliente no queixo, Cristalina rondava aquela idade incerta que todas as mulheres têm depois de casadas e antes de serem velhas.
Saia a roçar o chão, lenço a tapar o cabelo que se adivinhava negro, mão na anca para estabilizar humores ou dar ênfase aos argumentos, poisava por Chaves e seus arredores, ali bem perto da passagem para o outro lado. Não que lá houvesse soltura que por cá faltasse mas qualquer cigano sempre prefere a fronteira do que o enfeudamento a um sítio. E o salto fronteiriço dá a liberdade que a passagem na Alfândega priva. Cigano quer-se livre, noite ao relento, à luz da fogueira, deambulando por aí além, fingindo que compra aqui para vender ali, na realidade vivendo de esmola e expedientes quando não do tráfego ilícito ou mesmo trasfegando o ilícito.
Nada consta quanto à prole de Cristalina, só se lhe conhecia marido. Magro, baixote, patilha descaída, chapéu inclinado sobre o olho esquerdo sugerindo inspiração no Borsalino que ele nunca viu, bigode mal amanhado, toda aquela grande figura de pouca gente cheirando a fumo. Ou será que é o fumo que cheira a cigano? Nome? Ah, sim, claro que era conhecido por Cristalino. Não por mérito próprio mas por ser marido de quem era. E constava que a mulher o zurzia.
Sai fora da dignidade cigana o trabalho assalariado. Um cigano não trabalha por conta de outrem: negoceia, isso sim. Bom produto de transacção é esse, o das relações públicas, a conversa. E também não pede esmola: conversa. Fundamental apresentar-se de fato e colete mesmo que à torreira do Sol. Dá senhorio e o que veda do frio também tapa o calor, sobretudo se o corpo não se esfalfa. Cigano cheira a fumo, não a suor.
E naquele dia a porta da Casa senhorial foi espremida com toques de campainha até alguém acudir à grande aflição.
- Oh Cristalino, o que é que sucedeu assim de tão grave?
- Nada, menino Antoninho, nada. Só queria saber de si, se está bonzinho e se tudo vai bem com o menino Antoninho.
- Oh criatura de Deus! Claro que estou bem. Mas isso é maneira de tocar à porta? Não imaginas que pudesse estar a fazer outra coisa mais longe e não estivesse aqui a trás da porta?
- Oh menino Antoninho, eu só queria saber de si …
- Pois sim, obrigado pelo teu cuidado, está tudo bem, tudo bem. Olha: já comeste alguma coisa hoje?
- Ah …
- Bem, vem daí comigo lá adiante às cozinhas que se há-de arranjar alguma coisa.
E assim era que o Cristalino aceitava o convite para comer alguma coisa, com a dignidade própria de quem condescende petiscar depois de ter ceado como um Abade. Fiquem as aparências, os subentendidos, os silêncios; sobrem os cumprimentos e os salamaleques.
Sossegado o fastio, beberricando um segundo copito para acompanhar a conversa, cigarro de mortalha lambida, eis que chega a Cristalina em busca do marido.
- Oh menino Antoninho. Então o meu homem veio cá cumprimentá-lo?
- Olá Cristalina! Sim, o teu marido é muito simpático e veio cá ver-me. Olha: come também tu alguma coisa apesar de já teres almoçado.
E assim era que também a Cristalina fazia o favor de comer alguma coisa para “fazer o jeito” ao dono da casa.
Acalmados os estômagos e descontraídos os espíritos, era a vez de ser o menino Antoninho a tomar a dianteira da conversa:
- Oh Cristalina. Diz-se por aí que chegas pancada ao teu marido …
- Ah menino Antoninho, ele é mum iducado, mum iducado …
E por esse “mum iducado” se ficava a Cristalina sem deixar de responder mas nada dizendo que se aproveitasse. O Cristalino encolhia os ombros como que a disfarçar do embaraço e o silêncio caía com enorme estrondo sobre a cena da conversa.
Passados dias, correu a notícia que o Cristalino iria a França “fazer pela vida”. Mas o negócio não estava brilhante e a Cristalina ficava ali por Chaves à espera que ele voltasse. Mas a estética da cigana era motivo da chacota popular e um qualquer folgazão perguntou ao marido:
- Oh Cristalino: deixas cá a tua mulher? E se ela foge com outro homem?
- Ah, sim, ela é tão bela que se eu a amarrasse ao tronco do ferrador, era certo que quando voltasse ninguém havia de a ter ido lá soltar.
A cultura cigana é assim: prenhe de virtualidades, de faz de conta, de fingimentos. Vive das aparências, da solidariedade do clã, da faca de ponta e mola ou mesmo da pistola, negando a integração. Mas também há os que passam pelas fábricas de confecção a comprar fins de colecção ou peças com defeito e seguem para as “Feiras de Carcavelos” espalhadas por esse mundo fora. Só que dessas peças com defeito passaram para as de contrafacção e ei-los, radiantes, no seu elemento mais tradicional, a ilegalidade.
Mas há quem acredite que cigano tem que se integrar. Meteram-nos em casas mas eles vivem nas soleiras, todos na rua à conversa e a vender relógios aos parantes nos semáforos. Há os que substituem os relógios e canetas por pequenas embalagens de papel de prata com um pó branco que não sei para que serve … E quando a professora se zanga com o jovem cigano que na escola assumiu alguma atitude menos conforme com as dos “gadjos”, todo o clã se apresenta e espanca a professora, os contínuos e todos que lhes apareçam pela frente.
Mas dentro de algumas gerações, entre 300 e 500 anos no futuro, os ciganos estarão integrados. Isso significará que passaram a comportar-se como nós, os “gadjos”. Perderam as características que há quem tanto aprecie e não hesite em me chamar racista porque não gosto deles. É que esses democratas que tanto apreciam a cultura cigana, esquecem-se de que é essa cultura que os leva a comportamentos desconformes com a nossa cultura, que a convivência não é possível porque eles nos desafiam sistematicamente como aquela criança pequena no supermercado que à minha vista se dirigiu a uma arca frigorífica, agarrou num lombo de vaca impecável e o atirou ao chão só para me incomodar. O pobre do Segurança ali de serviço teve o azar de presenciar o acto de puro vandalismo e viu-se em palpos de aranha para não levar uma facada.
Os democratas integracionistas querem os ciganos com as características deles bem vivas … para os observarem como aos bichos no jardim zoológico.
Integração? Sim, claro! Nos confins da Arábia ou no sul de Espanha em cima de um “tablau”, o zoo a que acorrem os turistas.
Lisboa, Abril de 2007
Henrique Salles da Fonseca
Nota: foi o meu amigo António Teixeira Homem que me contou as histórias da Cristalina e as cenas passaram-se em Samaiões, Chaves, lá pelos anos 80 do século passado, o XX