Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

A bem da Nação

CRÓNICA DO BRASIL

Era uma vez o Plutão!

 

A sereníssima comunidade dos universais astrônomos em reunião magna decidiu, por maioria, e não por aclamação, que o pobre e miserável Plutão tinha que ser expulso da comunidade dos "autênticos" planetas solares. Foi rebaixado a planeta-anão, o que sem dúvida significa um enormissimo avanço para a ciência e uma imensa tranqüilidade para as crianças que terão menos um nome a decorar!

O Brasil já havia partido na frente, em 1993, nesses considerandos de “autênticos e anões”! O Congresso expulsou três anões que, como a fábula do boi e do sapo, estavam a inchar demasiado - os bolsos - para atingirem o tamanho dos "autênticos", os maiores, os grandões, que como disse um ministro na ocasião: "O que é bom, a gente fatura. O que é ruim, esconde".

Que saudades do tempo em que os primeiros reis de Portugal, à medida que iam alargando as fronteiras, na conquista do espaço ocupado pelos chamados mouros, concediam Cartas de Foral  aos povoados fronteiriços, para atrair moradores, mas impondo-lhes, além dum tipo de governo totalmente popular, pesadas coimas ou multas para quem prevaricasse.

Para os ladrões a multa era o pagamento ao lesado do dobro roubado e mais nove vezes esse valor para os cofres públicos! Não sei se havia muito ladrão naquele tempo, mas o que certamente havia era pouco estímulo para roubar.

Hoje inverteu-se a situação: quem rouba é xingado duas ou três vezes nos órgãos de comunicação, ficando famoso e invejado e logo as CPIs, os processos judiciais e até o povo o deixa no esquecimento.

Os famigerados anõesinhos do orçamento... o que lhes aconteceu? Nada. Absolutamente nada. Deixaram o congresso (letra mínima) ricos, milionários, sem terem devolvido aos cofres públicos nem um ceitil*!

Já pensaram se essa banditagem tivesse que devolver ao lesado - os nossos cofres - o dobro do que roubaram e ainda mais nove vezes isso mesmo como condenação? Se aos mensalões, sanguessugas, bingos, e mais um monte de outras ladroagens que a toda a hora estão a ser expostas ao público, se aplicasse aquela lei antiguinha do Rei Afonso Henriques... o Brasil, de país rico, ficaria riquíssimo.

Mas o Rei Afonso Henriques era Homem. Macho. Sério. Lutador e organizador.

E os governantes e políticos do Brasil?

Tem algum que escape? Pela opinião pública, é difícil. Mas permita Deus que sim, que não baixem os braços, sejam machos, e enfrentem a canalha até a esmagarem. O povo estará com eles.

Lá, nos céus, o Plutão foi corrido do pelotão dos grandes, enquanto aqui em baixo engrossa-se o pelotão dos "anões"!

 

* Ceitil: antiga moeda portuguesa que valia um sexto de real!

Rio de Janeiro, 28 de Agosto de 2006

Francisco Gomes de Amorim

Crónica do Brasil

Anatomia de um golpe (mais um!)

 

Toca o telefone. Alô? É o senhor F...? Sim! O senhor é sócio do Automóvel Clube há mais de 20 ou trinta anos, não é? ...sim, sou do Touring Clube do Brasil. E o senhor tem utilizado as regalias de sócio? Não. Há muitos anos que não faço uso algum e já nem me lembrava disso. Bom, se o senhor quiser vender há gente que paga até R$ 7.000,00 por cada cota. Hhhmmm!  É capaz de ser uma idéia. O senhor pode vir ao nosso escritório, na próxima segunda às ... 10h00? Sim. Combinado.

Primeiro passo: consultar o Touring Clube de Brasil, onde efetivamente sou sócio, e cuja cota vale, lá no Touring, mais de $10.000. Vou vender. Não uso aquilo e os tais $7.000 dão um jeito terrível.

Segunda feira. Um escritório aparentemente impecável, prédio bom, recepcionista, duas vovós aguardando para serem atendidas, e mais este vovô aqui.

Aparece um vendedor que some com as vovós e vem outro que me leva para um pequeno gabinete.

O senhor é sócio do Automóvel Clube (não disse qual) e nunca usou as regalias como ter hotéis de graça uma vez por ano (só pagando as refeições!), grandes descontos em outros, etc., etc., através do Motel Clube de Minas Gerais que está em vésperas de fechar. De acordo com os nos nossos arquivos o senhor tem seis títulos deste Motel Clube, cada um dando direito a uma mais três pessoas. Como isto vem acumulando há muitos anos e cada título tem um valor facial de $3.600, há quem pague até $ 7.000, porque com o Pan Americano no Rio vai haver falta de alojamentos e com estes títulos podem conseguir-se bons negócios, blá, blá, blá. Neste momento estamos a formar um grupo para comprar 200 títulos e o senhor pode encaixar-se neste grupo vendendo os seus por $6.200 cada um. Nós só cobramos 5% de comissão.

Parece um bom negócio. O que devo fazer?

Registrar em cartório os títulos nos 98 hotéis que fazem parte da nossa cadeia, e logo que isso esteja feito 20 dias depois o senhor recebe o nosso cheque no valor total, somente deduzido da comissão!

Vejamos: $6.200 x 6 = $39.200. Bem me saberia receber tal grana, mas...  como faço esse registro em cartório? Não posso chegar ao cartório e dizer para registrar não sei o quê em nome de não sei quem, tanto mais que é um registro de que? Só para ser reconhecido nos hotéis? O título não é suficiente?

O senhor tem um despachante para fazer isso? Não. Nós podemos fazê-lo. Quanto custa? $12 por cada hotel, o que dá $1.176. O senhor dispõe desta quantia? Não. Para facilitar e acelerar o fechamento do grupo comprador, nós podemos dividir isso em dois pagamentos: um cheque agora e outro para 30 dias.

Boa idéia! Faça-me um favor: arranje-me uma folha de papel para eu anotar todos esses dados, porque tenho que falar com a minha mulher e filhos.

O vendedor abre o armário que estava naquele gabinete e dentro só tinha três ou quatro garrafas vazias e um caderno escolar todo rabiscado! Ainda tentou arrancar uma folha do caderno mas saiu e voltou com uma folha nova, limpa!

Anotei tudo, e como ele se ofereceu para mandar pelo correio todo o histórico dos "meus títulos" e a perspectiva do negócio, assim ficou o assunto.

À saída voltei a perguntar: Isto é através do Touring? Não! O Touring nada tem a ver com isto. É do Automóvel Clube. Obrigado. Saí.

Eu nunca fui sócio de qualquer Automóvel Clube. Se entro com os tais $1.176 para o "registro em cartório", 20 dias depois... a "empresa" compradora já terá sumido, mas... vamos investigar.

Alô? É do Motel Clube de Minas Gerais? Sim. Eu recebi um telefonema para vender uns títulos desse clube... Isso é golpe! Bem parece, mas pode fazer o favor de ver se por acaso eu terei algum título daí? Nome? F.... Não tem nada. Isso é golpe! O funcionário do Motel Clube respondeu até de forma grosseira. Deve estar saturado de gente a perguntar-lhe o mesmo!

Como tem golpista neste país (e nos outros)!

A renda do povo cai e o desemprego sobe.

Até agora já foram rejeitadas, pelo tribunal, mais de mil candidaturas de bandidos às próximas eleições.

O que não deixa é de haver capacidade inventiva para dar golpes nos incautos... e no povo em geral!

A Polícia Federal deveria dar uma “olhada” em mais este, mesmo ocupada como anda com os sanguessugas, os vampiros, os mensaleiros, os bingueiros, os... ladrões e vigaristas!

Pobre país!

Rio de Janeiro, 25 de Agosto de 2006

Francisco Gomes de Amorim 

QUANDO IRÁ O FISCO AO LUPANAR?

 

 

“Os Governos são os grandes fomentadores da economia paralela”, eis o que alguns propalam por aí.

 

Tenho a economia paralela e sua quantificação como casos de Polícia. Daí a aceitar que ela seja fomentada pelos Governos é algo que à minha primeira vista não faz sentido.

 

Nada sabendo acerca da componente criminosa e fazendo apenas uma grosseira definição das parcelas não dolosas, encontro-me numa situação que presumo comum à generalidade das pessoas que não se dedicam ao crime nem à investigação criminal. Daqui à sua quantificação vai um espaço que não consigo cobrir sem aplicada ajuda policial.

 

Dentre as actividades que saíram da economia oficial por motivos não ligados ao crime enquadro as «maquizardes», ou seja, as que tiveram que passar à clandestinidade por não conseguirem suportar as obrigações legais quer no que respeita ao enquadramento regulamentar quer sobretudo à fiscalidade.

 

Se para as que se baseiam nas actividades criminosas só vislumbro soluções de cariz policial, para as do segundo grupo só vejo como solução a desregulamentação e a redução da carga fiscal.

 

Contudo, há um grupo de actividades que não são ilegais e que estão fiscalmente referenciadas mas que pura e simplesmente não emitem facturas para além do estritamente necessário à prova de que estão activas ou à não aplicação do artigo 35º do Código das Sociedades. Não me refiro à economia simplesmente biscateira desenvolvida à sombra de baixas fraudulentas da Segurança Social e do Subsídio de Desemprego mas sim a algo de mais substancial, nomeadamente a algum trabalho independente e até de “porta aberta para a rua”. A todas estas chamo translúcidas uma vez que não são opacas (criminosas) nem transparentes (porque fiscalmente evadidas).

 

E porque é que essas actividades assim procedem? Porque pretendem manter-se em níveis de rendimentos oficiais tão baixos quanto a decência permita e porque os clientes não têm qualquer interesse fiscal em possuírem um documento relativo à despesa que tenham feito. E, no entanto, bastaria motivar fiscalmente a clientela para que essas actividades tivessem que passar a emitir a documentação apropriada e concomitantemente a enquadrarem-se por completo na economia oficial.

 

Se não se pode descontar no IRS a despesa que se faz com o “conforto” do animal de companhia, então mais vale poupar no IVA . . . Bastaria que se pudesse descontar esse tipo de despesas no IRS (e já nem sequer me refiro ao desconto integral das despesas realizadas mas a uma percentagem de 50%, p. ex.) para que os recibos passassem a existir, o IVA a ser cobrado e o volume de negócios sectorial declarado a aproximar-se da dimensão que se diz possuir.

 

Afinal, até parece que é verdade: são os Governos que, com estas proibições, promovem a evasão fiscal e enviam inteiros sectores de actividade para fora da economia oficial.

 

É com base nestas realidades que nasce a tese que diz que se todos pudermos descontar todas as despesas no IRS, as receitas públicas aumentam. E como não poderia deixar de ser, também existe a antítese que afirma que os novos descontos no IRS ultrapassariam o aumento das receitas pelo que o encaixe público seria menor.

 

Como será?

 

O actual método de cálculo da matéria colectável – tanto para efeitos de IRS como de IRC – apenas permite o desconto de algumas despesas.

 

Imaginemos o seguinte cenário:

 

                          Matéria tributável no IRS                     =   100

                          Despesas dedutíveis        (30%)           =     30

                          Matéria colectável                              =     70

                                    Taxa aplicável = 30%

                          COLECTA                                          =    21

 

Admitamos agora que sobre metade das despesas não dedutíveis (35), o Contribuinte, ao não pedir recibo, permite que nessas transacções o lado da oferta se evada fiscalmente. Ou seja, no nosso modelo, a evasão fiscal assume a dimensão de 35 pelo que só 65 se enquadram na economia oficial: os 30 já “agarrados” pela dedutibilidade das despesas no lado da procura mais os 35 do lado da oferta que não passaram à clandestinidade apesar de corresponderem a despesas não dedutíveis.

 

Nestas circunstâncias, do lado da oferta, o mesmo modelo será como segue:

 

                          Matéria tributável no IRC                      =    65

                          Despesas dedutíveis       (30%)             =    19,5

                          Matéria colectável                              =     45,5

                                    Taxa aplicável = 30%

                          COLECTA                                           =  13,65

        

 

COLECTA TOTAL (IRS + IRC)           =      34,65

                          IVA, à taxa de 21% (sobre 65)       =     13,65

                    RECEITA PÚBLICA TOTAL         =     48,3

 

 

 

Imaginemos agora que o Governo fazia aprovar um novo método de cálculo do IRS permitindo o desconto de mais despesas, agora para 50% em vez dos 30% do exemplo anterior. Introduzindo apenas essa variação no modelo do lado da procura, sucederá o que segue:

 

                          Matéria tributável no IRS                      =    100

                          Despesas dedutíveis        (50%)            =      50

                          Matéria colectável                               =      50

                                    Taxa aplicável = 30%

                          COLECTA                                          =      15

 

Continuemos a admitir que sobre metade das despesas não dedutíveis (25) pela procura, o lado da oferta nessas transacções se evada fiscalmente. Assim sendo, a evasão fiscal assume a dimensão de 25 e ao universo tributável inicial (65), há agora que juntar aqueles que abandonaram a clandestinidade (25) para constituírem um novo universo tributável do lado da oferta já com a dimensão de 90 num total de 100.

 

                          Matéria tributável no IRC                      =    90

                          Despesas dedutíveis       (30%)              =    27

                          Matéria colectável                                =    63

                                    Taxa aplicável = 30%

                          COLECTA                                          =    18,9

                                COLECTA TOTAL (IRS + IRC)      =    33,9

                                IVA, à taxa de 21% (sobre 90)       =    18,9

                      RECEITA PÚBLICA TOTAL                   =    52,8

 

 

 

E assim sucessivamente até à exaustão da economia translúcida para o que bastará os Governos, à semelhança do que parece suceder nos EUA, permitirem que a procura – apenas os singulares para efeitos de simplificação do modelo – deduzam todas as despesas na declaração anual de rendimentos para efeitos de cálculo da matéria colectável.

 

Neste exemplo apenas permiti que os singulares deduzissem mais despesas aos seus rendimentos declarados e nada fiz quanto aos colectivos. Se procedermos de igual modo quanto a estes, poderemos trazer de volta à economia oficial as tais empresas «macquizardes» que não suportam a actual carga fiscal e se se voltar a legalizar a prostituição – com o inerente controlo sanitário que “in illo temporae” em Lisboa funcionava onde hoje se localizam as mais novas instalações do ISEG – poderá essa actual componente criminal passar do campo opaco para o translúcido e o Fisco a obter alguma receita a partir duma fonte que actualmente lhe está totalmente vedada. Mas restam as maiores dúvidas sobre se o Fisco tem vontade de ir ao lupanar . . .

 

 

Tavira, Agosto de 2006

 

Henrique Salles da Fonseca

CRÓNICA DE UMA REALIDADE OPACA - IV

 

A operação de “titularização” de créditos fiscais revisitada

Pelo que ficou escrito nos artigos anteriores, esta operação é demasiado semelhante a dívida pública, e demasiado corriqueira, para justificar prémios e sobrecustos – e, não obstante, eles aí estão.

Mas como é que o Governo pensava pagar tudo isto? Com o produto da cobrança dos créditos que estava a entregar, naturalmente. E chegaria? Que sim, segundo o Servicing Agreement (documento assinado por Sagres, SA, Fisco e Segurança Social, não divulgado na íntegra e que vem resumido no Prospecto, embora cuidadosamente despojado de dados). Aí se admitia, com louvável prudência, que, em dez anos, cobrar-se-ia cerca de 20% dos créditos entregues (€ 2.29 mil milhões), podendo a operação ficar totalmente liquidada até 2008. Estes primeiros quatro semestres e meio (até 28/02/2006), hélàs! contam-nos uma outra história.

Desde logo, revelam que o Estado tem vindo a entregar créditos que não estavam vencidos (se é que estavam constituídos) na data-limite adoptada para a operação inicial (30/09/2003). Apesar de os Relatórios semestrais serem omissos quanto a isto, é possível adiantar algumas estimativas sobre o que se tem passado com estes créditos mais recentes: dos 226 mil créditos entregues (no valor de € 1.8 mil milhões), 19 mil (no valor de € 591 milhões) voltaram à procedência e 119 mil (no valor de € 135 milhões) foram cobrados. Nestes dois primeiros anos, e neste lote de créditos, a eficiência de cobrança terá sido de 53% em número, mas só de 7% em valor. O rácio de exclusão, esse, terá atingido 8% em número e cerca de 1/3 em valor. Ora, o aparecimento destes créditos não dá lugar a dúvidas: estão a ser mobilizadas receitas que pertencem a exercícios orçamentais mais recentes para liquidar um compromisso que aproveitou, directa e exclusivamente, ao exercício de 2003. Se isto não descreve uma dívida que está a ser paga - como descrevê-la, então?

Quanto aos créditos que integravam a carteira inicial (ela própria constituída por 1.5 milhões de créditos no valor de € 11.4 mil milhões; mas nunca se soube quantos eram os contribuintes envolvidos, pelo que a concentração do risco continua uma incógnita), teriam sido devolvidos 914 mil (no valor de € 5.4 mil milhões), recebidos em substituição 128 mil (no valor de € 728 milhões) e cobrados 262 mil (no valor de € 496 milhões). A eficiência de cobrança, neste período, foi de 17% em número e de 4% em valor - muito longe, pois, do que inicialmente se admitira (o realizado não foi além de 22% do previsto). Mas o que mais surpreende é o nível que o rácio de exclusão terá atingido: 59% em número e 47% em valor. Porquê? É a pergunta que se impõe. Será que o Estado não consegue demonstrar os créditos que reclama (talvez, efeito colateral daquela prática que consiste em fixar anualmente, com burocrática presciência, objectivos de liquidação por Repartição de Finanças)? Ou será que do critério de exclusão também consta a acrescida dificuldade de cobrança (que o Prospecto não captou), o que tornaria o Estado, objectivamente, fiador dos contribuintes cedidos? Ou ambas, à vez?

Não cabe fazer aqui uma análise por imposto e contribuição do que se está a passar, mas essa análise é inegavelmente útil à administração fiscal. Quando decorriam os preparativos para esta operação, Fisco e Segurança Social, depois de alguma demora, lá facultaram estatísticas sobre a eficiência das suas cobranças no passado (que o Prospecto, aliás, transcreve). E é essa a face mais trágica desta operação. Dez anos não são suficientes para cobrar o IRS liquidado num qualquer ano - 28% ficam por cobrar. Pior no IRC, onde 68% dos valores liquidados num ano estão destinados a prescrever. E no IVA, em que extinguem-se incobrados cerca de 60%. Ou na Segurança Social, que só consegue receber 26% das suas receitas. Sabendo-se que, em teoria, todos os impostos e contribuições deveriam estar praticamente pagos entre o ano a que respeitam e os dois anos imediatamente seguintes (salvo os atritos usuais num processo de cobrança), as referidas estatísticas dão-nos o seguinte quadro das percentagens cobradas, em média, nesse lapso de tempo: IRS, 21%; IRC, 14%; IVA, 18%; e Segurança Social, 13%.

Perante isto, como não perguntar: Acredita-se ainda que a operação pode ser liquidada com os créditos inicialmente entregues? Existe alguma verdade nos processos de liquidação fiscal em vigor? Ninguém, alguma vez, esteve interessado em conhecer, mês após mês, os resultados mensais do esforço de cobrança e o porquê dos desvios? Alguém se apercebeu de que os dados da execução orçamental comparam o incomparável (as receitas orçamentadas para esse ano versus as cobranças de créditos que vêm do antecedente)? Não percebem os Ministros das Finanças, e os candidatos ao lugar, que pôr a casa em ordem, antes de se entreterem com a macroeconomia, é uma responsabilidade que só a eles pertence e que é para isso que são pagos? Enfim, que juízo fazer desta operação e dos seus interpretes?

 

Lisboa, Julho de 2006

A. Palhinha  Machado

CRÓNICA DO BRASIL

Perder  um  amigo

 

Cada vez que um amigo se vai é grande a nossa perda. E quando esse amigo, durante toda a sua vida, se preocupou com o nosso bem estar e segurança, jamais discordou com as nossas opiniões políticas, pessoais ou desportivas, respeitando sempre (quase!) o espaço que era devido a cada um, mais falta ele faz. Era um amigo especial.

Veio novo para nossa casa e aqui viveu sempre, nada mais exigindo do que a comida que se lhe dava, qualquer que ela fosse, e um canto para dormir. Nunca teve ganâncias de ser rico, nem se preocupava com os roubos dos mensalões e sanguessugas. E enquanto a família dormia despreocupada, porta da rua no trinco, o nosso amigo aparentava também dormir, mas não perdia um único movimento ou ruído que acontecesse por perto. Vigiava, ar tranquilo, bonacheirão, simpático.

Com esta descrição parece um amigo raro, especial. Especial era, raro não. Com cerca de sessenta quilos de peso, nos últimos dias de vida já não conseguia pôr-se de pé. Arrastava-se, ar triste e meigo, e à sua volta todos da casa se multiplicavam para lhe aliviar o sofrimento. Doente e velhinho, morreu com nove anos. Com todos estes predicados de bondade, respeito e amizade, dificilmente poderia ser um humano. Era o nosso guarda! Um cão.

Como disse Schopenhauer: “quanto mais conheço os homens, mais gosto dos cães”! Quase chega a ser uma verdade universal, quando assistimos, em permanência e permanente insistência, à ganância cega pelo poder, à política individualista, aos tribunais condenando ou absolvendo sem respeito pelas leis e pela sociedade, à ausência de dignidade no combate ao tráfico e ao banditismo, às guerras para vender armas, ao terrorismo louco, ao conformismo, à falta de ética e de cidadania, ao desprezo pelo Outro, e tanta vergonha mais.

Os cães têm outra, mais, dignidade. É triste chamar ao cão o melhor amigo do homem quando o melhor amigo do homem deveria ser o próprio homem!

Vinde, Espírito Santo, outra vez, e metei na cabeça dos homens que a Torre de Babel é coisa antiga, do Antigo Testamento. Já é mais do que tempo de falarmos a linguagem da Paz e da amizade.

Entre todos os homens. E os cães também.

 

Rio de Janeiro, 15 de Agosto de 2006

 

Francisco Gomes de Amorim

CRÓNICA DE UMA REALIDADE OPACA - III

A operação de “titularização” de créditos fiscais revisitada

Se os primeiros passos desta operação foram, no mínimo, confusos, o seu teor também não prima pela clareza. Tenhamos presente que o interesse de titularizar créditos (mas créditos com vencimento futuro, não já vencidos, como estes agora) reside no facto de financiamentos assim não envolverem endividamento adicional (diminui, sim, o activo de quem se financia). Para que assim seja, o originador (aqui, o Estado) não poderá ficar por fiador daqueles que têm a obrigação de pagar os créditos entregues, nem poderá assumir perante o “veículo de titularização” (e/ou os portadores das obrigações que este emitir) o compromisso de recomprar, mais tarde, os créditos que acaba de ceder. Caso contrário, tratar-se-á de um verdadeiro empréstimo, em que os créditos entregues servem, ou como de forma de pagamento (pro soluto), ou como garantia (pro solvendo).

Obviamente, se os créditos que são objecto de titularização não existirem (ou se, existindo, nunca puderem ser exigidos), a cessão é nula; o preço recebido terá de ser restituído; e, talvez, a conduta do originador deva ser apreciada em juízo. A excepção que aproveita ao Estado visava isto mesmo: não, libertá-lo da obrigação de restituir o preço que receba por algo que nunca poderia alienar; sim, poupá-lo à acusação de ter promovido um negócio nulo. Pelos vistos, o Governo - receoso de que alguns dos créditos que se preparava para entregar, ou não fossem exigíveis, ou não existissem – quis afastar, desde logo, por via legislativa, os incómodos que daí lhe poderiam advir. Mas não se percebe porquê.

Na realidade, o que o Prospecto refere são entregas pro soluto (isto é, entregas destinadas a pagar dívidas que ficam, por esse facto, liquidadas), o que pressupõe uma anterior dívida do Estado a Sagres, SA (o “veículo de titularização”). Porque nefas? Se os créditos fiscais tivessem sido efectivamente vendidos (isto é, cedidos) falar-se-ia, sim, da dívida que Sagres estava a contrair perante o Estado (e não o contrário), do preço da cessão, e de como este preço teria de ser pago - nunca de entregas pro soluto. Pelos vistos, o modo como Sagres contabiliza esta operação sempre tem algum fundamento.

E não haverá outras mais responsabilidades assumidas em nome do Estado, designadamente, quanto à boa cobrança dos créditos envolvidos na operação? Também neste ponto o Prospecto é pouco esclarecedor. É certo que nele se lê que o Estado não responde, nem pelos contribuintes, nem pelas promissórias com que Sagres financia a operação. Mas não enumera exaustivamente os factores que, a verificarem-se num qualquer crédito, o excluem da operação. Em contrapartida, dá a saber que o Estado se obrigou a substituir prontamente os créditos que Sagres viesse a excluir, ou a recomprá-los, ou a restituir o que por eles recebera. Há que ver como a prática interpreta este critério de exclusão (referido, mal, como “a questão dos incobráveis”). Com a certeza, porém, de que nenhuma informação foi, até à data, divulgada sobre o número e valor, já dos créditos excluídos (isto é, restituídos ao originador), que têm sido muitos; já dos créditos entregues em substituição, que não têm sido menos; já dos créditos recomprados e das indemnizações pagas, sobre o que também nada se sabe.

Intervêm nesta operação: agentes cobradores (Fisco e Segurança Social, que se fazem pagar pelo serviço prestado); alguém que cobre o risco a que Sagres se expôs ao emitir dívida com taxa variável; outro que, se necessário, adiantará liquidez para que juros e reembolsos possam ser pagos pontualmente; e uns tantos mais, a propósito deste ou daquele aspecto operacional. Enfim, o habitual em tais ocasiões. Aliás, as comissões a cargo de Sagres também não são por aí além, embora falte apurar ainda os encargos que o Estado tenha pago, ou esteja a pagar, directamente.

A parcela maior do custo efectivo dos fundos que Sagres colocou à disposição do Estado corresponde, porém, aos juros contados nas promissórias  – juros esses que reduzem o encaixe definitivo que o Estado terá a haver. Ora, ponderados os montantes das diversas séries e os respectivos prazos, o spread médio é de +0.70%. É muito? É pouco? Não existe nenhum instrumento de dívida pública que possa servir de comparação, já que esta operação reúne características nada usuais: taxa variável (excepto na série T), reembolsos variáveis (e não de uma só vez, no termo do prazo), capitalização de juros (na série T) e estruturação (as séries M, N, O só podem começar a ser reembolsadas depois de a série A1 ter sido integralmente paga). O que poderá haver de mais semelhante, em termos de spreads, são as emissões de Bilhetes de Tesouro com prazo igual ao do indexante (6 meses), cujas taxas efectivas, por norma, são inferiores às deste em –0.07%/-0.12%. Feitas as contas, o sobrecusto desta operação (€ 13 milhões/ano) é o preço que os contribuintes vão pagar durante anos para que o Governo de então pudesse proclamar, satisfeito: missão cumprida!

(continua)

 

Lisboa, Julho de 2006

A. Palhinha Machado

LIDO COM INTERESSE - 11

 

 

Título: AS IDENTIDADES ASSASSINAS (Les identités meurtrières)

Autor: Amin Maalouf

Tradutora: Susana Serras Pereira

Editor: DIFEL

Edição: 2ª, Janeiro de 2002

 

 

Da contracapa extrai-se que o autor nasceu no Líbano e que vive em Paris onde, entre outros cargos, desempenhou o de Chefe da Redacção do Jeune Afrique.

 

Logo pela badana se fica a saber que o livro consubstancia “uma lição de cólera e indignação contra a loucura que, todos os dias e por todo o mundo, incita os homens a matarem-se em nome da sua «identidade»”. Apoiado na sua condição de homem do Oriente e do Ocidente – de origem árabe, cristão melquita não especialmente praticante – tenta compreender porquê, na história humana, a afirmação individual leva à negação do outro. Meditação profunda, tem como finalidade convencer os seus contemporâneos de que se pode ficar fiel aos valores herdados sem que por isso se fique ameaçado pelos valores de que os outros são detentores. Poderosa mensagem de tolerância, procura fazer a paz.

 

De fácil leitura, recorda-nos a feroz intolerância do Cristianismo durante séculos enquanto nessa mesma época o Islamismo praticava uma efectiva tolerância mas constata também que as posições se inverteram totalmente e que na actualidade o Cristianismo está associado à abertura e o mundo muçulmano derivou para comportamentos totalitários.

 

Apologia do mútuo conhecimento, preconiza o estabelecimento de um sistema cultural de permanentes vasos comunicantes de modo a que cheguemos à globalização social, ao “tempo das tribos planetárias” mas reconhece que, apesar disso, é imprescindível “domesticar a pantera”, ou seja, aqueles que, mesmo nessa dimensão, se sentem discriminados e por isso se revoltam. Para o autor a solução está na prática democrática de modo a que todas as minorias se sintam representadas e que a democracia se não transforme na ditadura do número – sem o referir, imagino que prefira a solução portuguesa de aplicação do método de Hondt no preenchimento dos vários cargos de eleição.

 

«E nada proíbe pensar-se que um dia um negro venha a ser eleito Presidente dos Estados Unidos e um branco Presidente da África do Sul».

 

Editado pela primeira vez em 1998, compreende-se a preocupação do autor em realçar o bom exemplo da democracia libanesa . . . o que em 2006 vem demonstrar à saciedade uma das teses defendidas ao longo de todo o livro de que o que hoje é verdade, amanhã pode não o ser.

 

Isto, quanto ao que interessa, o conteúdo. Mas quanto à forma, a literária, vê-se bem que se trata de um escritor francês. De facto, a frequente – mas não excessiva adjectivação como sucede com Bernard-Henri Levy – e o repisar da ideia até que o autor tenha a certeza de que, pela insistência, tocou a memória do leitor, faz-me lembrar do paradoxo de a língua francesa não conter o feminino da palavra “professeur” quando, na realidade, se vê que estes antigos alunos aprenderam a escrever num estilo psicologicamente feminino e portanto, quase de certeza, com uma professora. Mais: a fluência em corrente contínua contrasta com a escrita tipicamente masculina, em vagas e cavas; o homem diz a “coisa” uma vez, não fica a moer nela até à exaustão e passa para outro tema que claramente separa do anterior, no mínimo, com um novo parágrafo.

 

Anuladas as repetições e moderada a adjectivação, em vez das 173 páginas de texto poderíamos ficar-nos seguramente por uma escassa centena. E mesmo assim já seria um belo ensaio.

 

Enfim, temo que a escrita francesa actual esteja a precisar de passar uns tempos num Quartel-general qualquer a fazer relatórios pois está com um estilo muito “civilizado”, nos antípodas do castrense.

 

Tavira, Agosto de 2006

 

Henrique Salles da Fonseca

Crónica do Brasil

Dividir  para  governar 

 

Grandes impérios acabaram divididos: sassânida, persa, egípcio, Macedônia de Alexandre, romano, árabe e inglês, União Soviética e Iugoslávia.

Em breve será a Espanha, com a Catalunha em vésperas de se desligar do governo central, seguindo-se a região basca, a Andaluzia, a Corunha e...

O Brasil é um imenso continente. E como tudo é grande, o roubo e a desgovernança são também imensos. Incomensuráveis. Em vésperas de eleições assiste-se à mais vergonhosa corrida aos arranjinhos entre políticos de todos os credos. Credos? Credo é um só: meter a mão no bolo. As mãos.

O povo pergunta e pergunta-se: como vamos sair disto?

Os antigos (e porque não os velhos?) têm sempre uma boa lição ou uma boa história para contar. Desta vez sobre impérios! O Brasil é um império que antes de o ser já desmorona! Houve entretanto várias tentativas de divisão: a Bahia, Pernambuco, Grão Pará e Maranhão, Rio Grande do Sul e até São Paulo em 1932.

Agora a ditadura lulista anunciou que vai convocar uma constituinte para a reforma política, à imagem do que fez o kamarada Chavez e está a querer fazer Morales na Bolívia. A Venezuela pode estragar dinheiro à vontade porque o povo já é pobre e o petróleo está super valorizado. Sobra. A Bolívia... vamos ver o quer porque o gás não dará para viverem todos à moda dos suíços. E o Brasil? Só quer a perpetuidade do PT no poleiro e na roubança.

Aqui vai a sugestão, para que “eles” fiquem a roubar lá em Brasília, e pouco mais. Dividir este imenso continente, cada vez mais ingovernável e mais espoliado, em vários países:

- o Sul com os três Estados sulinos,

- o Centro Sul com São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo, incluindo ou não Mato Grosso do Sul,

- o Nordeste com os Estados desde a Bahia a Piauí,

- no Norte toda a região Amazônica e que se virem para defender a “floresta do mundo”!

- e a “fatia central” que vai das propriedades sarneyentas a Brasília.

Cinco países! Qualquer deles maior do que a França (549.000 km2 - o Sul teria mais de 575).

Depois, todos “muy amigos”, poderiam entrar no Mercosul, como ou sem Chavez a dar ordens.

Pode parecer pouco patriótico sugerir soluções como esta, mas não será melhor do que ficar a assistir indefinidamente a este descalabro desgovernativo? A esta roubança? O tal futuro do Brasil não chega e por este andar não chegará jamais.

A população continua a aumentar. Aumentam sobretudo as favelas e a pobreza. Ninguém mais segura o exército do cartel da droga, o PCC, e menos ainda os 250 mil homens armados que o MST ameaça pôr na rua quando quiser. Forças armadas no Brasil são de Bracaleone, o que significa que nem sequer guerra civil pode acontecer.

Bem dividido o Brasil pode resolver muitos dos seus atuais problemas.

Porque não?

 

Rio de Janeiro, 10 de Agosto de  2006

Francisco Gomes de Amorim

CRÓNICA DE UMA REALIDADE OPACA - II

A operação de “titularização” de créditos fiscais revisitada

Em 19/12/2003, Sagres, SA (uma sociedade de direito português que o Citigroup criara meses antes) entregava no Terreiro do Paço € 1,760 milhões, o preço provisório (líquido das comissões à cabeça) convencionado no âmbito de uma operação dita de titularização de créditos fiscais vencidos. Mesmo a tempo de salvar o deficit público desse ano.

Foi só em 21/03/2005 que Sagres deu a conhecer as suas contas de 2003, mas em conjunto com as de 2004 (o que, convenhamos, está longe de proporcionar uma visão clara dos factos). Designada de Explorer, lá aparece esta operação: o empréstimo obrigacionista no passivo a longo prazo, como seria de esperar; a contrapartida classificada no imobilizado, como investimento financeiro, e não no activo circulante (onde, por esse mundo fora, é costume contabilizar os créditos vencidos, logo, imediatamente exigíveis). Dos créditos entregues pelo Fisco e pela Segurança Social (os tais que totalizavam € 11,441.4 milhões) é que nem traço. Coisa estranha esta de Sagres considerar que possui um crédito de longo prazo sobre alguém (sem explicar em nota quem seja) e dar a esse crédito exactamente valor igual ao da quantia que acabava de desembolsar. Mas a estranheza dissipa-se quando nos lembramos que as contas de Sagres são consolidadas no Citigroup, que este está sujeito à supervisão da SEC, nos EUA, e não consta que a SEC seja de facilitar. Para valer do outro lado do Atlântico, nada de titularização de créditos vencidos - antes um empréstimo puro e duro. Por cá, ia-se insistindo na versão oficial.

Mas as maiores surpresas reserva-as o Prospecto: desde logo, porque ele vem datado de 15/04/2004, não havendo vestígio do registo de nenhum outro anterior; depois, porque refere uma emissão de seis séries de promissórias com o valor facial total de € 1,663 milhões a ter lugar daí a cinco dias. Estaremos a falar do mesmo? Não, não estamos. Este Prospecto diz respeita à emissão das promissórias que hoje circulam por aí. E tudo indica que, inicialmente, ou não foram emitidas nenhumas obrigações (embora o Balanço de Sagres, no fecho de 2003, refira um empréstimo obrigacionista), ou foram, mas sem se fazerem acompanhar do Prospecto que a lei exige.

O que terá acontecido, então, entre o fecho de 2003 e Abril de 2004? Nada de mais: a emissão anterior foi liquidada antecipadamente (e poderia ser? como saber, se não há prospecto?) com o encaixe da nova emissão, à qual, para complicar, foi dada a mesma designação. Mas, e os € 102 milhões de diferença (para não falar já nos custos de emissão em duplicado), de onde saíram eles? Poderiam corresponder a cobranças entretanto efectuadas? Impossível saber – por duas razões principais: o primeiro Relatório semestral que Sagres deu à estampa abrange o período entre 01/10/2003 (!) e 31/08/2004, em bloco, sem qualquer detalhe temporal; nem deste, nem dos Relatórios seguintes constam dados que são indispensáveis ao acompanhamento da operação (como sejam: que créditos Sagres devolve, classificados por causa de devolução; e que créditos recebe ela em substituição).

Conhecem-se as cobranças naqueles primeiros onze meses: € 212.8 milhões (aprox.). Não sendo crível que os contribuintes em falta, num rebate de consciência, tenham acorrido a pagar as suas dívidas nos últimos dias do ano, nem tendo havido mudança nos agentes cobradores (o Fisco e a Segurança Social, como até aí), forçoso é concluir que em menos de quatro meses se teria cobrado sensivelmente o mesmo que nos sete meses seguintes. Só que em mais nenhum outro período semestral se voltaria a cobrar tanto.

Podemos não saber como tudo se passou, mas não podemos ignorar o que tudo isto indicia: a não ser que circulem por aí informações confidenciais (o que representaria grave discriminação contra os obrigacionistas), os dados divulgados não permitem, de todo, que ninguém controle satisfatoriamente a operação; aparentemente, ainda a operação não estava fechada e já o Governo lhe afectava cobranças, não se percebendo muito bem se essas cobranças terão valido a dobrar (para efeitos da operação e para efeitos da execução orçamental); parece que os € 1,765 milhões foram só para UE ver – apurado o deficit, prevaleceu o montante que interessava ao financiador; se os € 102 milhões não saíram da cobrança dos créditos inicialmente afectados à operação (e é legítimo duvidar, até evidência em contrário), o Governo teve de lançar mão de receitas fiscais mais recentes para reembolsar parte do que lhe tinha sido adiantado (mas não caracteriza isto uma verdadeira dívida?); fica a ideia de que, pelo menos para o arranque da operação, o Governo escolheu créditos que sabia serem facilmente cobráveis, em prejuízo da sua própria tesouraria. Enfim, fosse outra a entidade envolvida, que não um Governo, e dir-se-ia que este era um caso flagrante de window dressing.

 

(continua)

 

Lisboa, Julho de 2006

 

A. Palhinha Machado

CRÓNICA DE UMA REALIDADE OPACA - 1

 A operação de “titularização” de créditos fiscais revisitada

 

Em 2003, o Governo de então viu nos créditos vencidos que Fisco e Segurança Social não conseguiam cobrar a solução para um deficit orçamental que já se previa enorme. Houvesse quem quisesse ficar com eles, e seriam cedidos (isto é, vendidos) de pronto - fossem quantos fossem. O importante era que o encaixe da operação trouxesse o deficit previsto para níveis mais civilizados. Aliás, fazia-se uma ideia bastante aproximada de quanto convinha: para aí € 2 mil milhões. Só havia que dar uns retoques na lei fiscal para assentar, de uma vez por todas, que tratamento o IVA iria dar à cessão de créditos.

Por estranho que pareça (e, na altura, pareceu estranho), foi entendido que as disposições do Código Civil sobre cessão de créditos não satisfaziam. Melhor seria tipificar a titularização de créditos, conferindo-lhe uma natureza eminentemente financeira. E assim se fez, aproveitando-se o ensejo para criar um estatuto de excepção que protegesse o Estado, enquanto cedente (ou originador): contrariamente ao que o velho Código, com bom fundamento, estipula como condição sine qua non para qualquer cessão de créditos, o Estado ficou dispensado de demonstrar a exigibilidade, ou mesmo a existência, dos créditos que pretenda ceder. Hoje percebe-se bem o porquê de tanta cautela. Era, porém, o facto da contabilidade pública ter razões que a razão desconhece que permitia considerar receita corrente (e remédio santo para o deficit) o encaixe da titularização de créditos que tinham vindo a acumular-se, ao longo dos anos, nas gavetas da administração pública.

O que veio a lume sobre esta operação foi pouco e em cima da hora. Apresentada pelo Governo como um caso exemplar de sofisticada engenharia financeira, soube-se, quase no final desse ano: que aqueles dois organismos iriam ceder créditos vencidos no valor de € 11,441.4 milhões; que o encaixe provisório fora fixado nos € 1,765 milhões; e que o encaixe definitivo seria obtido adicionando os valores entretanto cobrados e subtraindo o custo de oportunidade (não revelado) destes € 1,765 milhões mais as comissões devidas pela montagem ( € 5 milhões à cabeça) e pelo acompanhamento (sobre estas nada se dizia) da operação.

Em boa verdade, operações destas já então eram comuns nos mercados financeiros: uma sociedade especialmente constituída para o efeito (o “veículo”) adquire os créditos que são objecto de titularização e emite obrigações no mercado de capitais para assim poder pagar o preço dessa cessão (no caso, o encaixe provisório) e suportar os encargos que certamente vai ter, daí em diante, seja com a gestão e a cobrança de tais créditos, seja com a divulgação periódica das informações a que ficar obrigada. Assim aconteceu também aqui, servindo de “veículo” uma sociedade do universo Citigroup, mas de direito português: Sagres – Sociedade de Titularização de Créditos, SA.

As críticas que se fizeram ouvir tardaram em aparecer, e não foram tantas assim. Políticos da oposição questionaram brandamente a razoabilidade da operação; protestaram alto e bom som contra a falta de informação; admitiram por palpite que talvez 20% dos créditos entregues ficassem por cobrar; e concluíram, sensatamente, que a obrigação de substituir os créditos considerados incobráveis impedia que se conhecesse de antemão, quer o prazo global da operação, quer o seu custo total. Os Bancos portugueses que não participaram na montagem da operação, pelo seu lado, lamentaram-se por não terem sido também convidados - e por aí se quedaram. No plano mais técnico, disse-se que o busílis de toda a operação residia no entendimento que fosse dado à palavra “incobrável”, e que a escassa informação vinda a lume sobre este ponto não podia deixar ninguém descansado. Enfim, houve quem se interrogasse sobre as reais razões que levaram o Governo a pôr de lado o Código Civil, e sobre a verdadeira natureza da operação: um financiamento que deixava intacta a dívida pública? ou mais dívida pública encapotada?

Para obtermos uma visão clara desta operação, e do modo como ela tem vindo a evoluir, dispomos de três fontes, apenas: um Prospecto, registado junto da CMVM e publicado; as Demonstrações Financeiras anuais de Sagres, igualmente publicadas; e o Relatório destinado aos investidores que Sagres divulga semestralmente. Dir-se-ia mais que suficiente. Infelizmente, não: o Prospecto é um denso texto de 155 páginas em inglês (é este o documento que se encontra no site da CMVM); os períodos cobertos pelos Relatórios semestrais não coincidem com o ano civil, logo, não há como compará-los com as Demonstrações Financeiras anuais; e Sagres é o “veículo” de várias outras operações de titularização, com diferentes originadores, algumas anteriores a esta. Do Ministério das Finanças, nada. Seja como for, os artigos seguintes procurarão revelar os aspectos fundamentais de tudo isto.

 

(continua)

 

Lisboa, Julho de 2006

 

A. Palhinha Machado

Pág. 1/2

Mais sobre mim

foto do autor

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2019
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2018
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2017
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2016
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2015
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2014
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2013
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2012
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2011
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2010
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2009
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2008
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2007
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D
  235. 2006
  236. J
  237. F
  238. M
  239. A
  240. M
  241. J
  242. J
  243. A
  244. S
  245. O
  246. N
  247. D
  248. 2005
  249. J
  250. F
  251. M
  252. A
  253. M
  254. J
  255. J
  256. A
  257. S
  258. O
  259. N
  260. D
  261. 2004
  262. J
  263. F
  264. M
  265. A
  266. M
  267. J
  268. J
  269. A
  270. S
  271. O
  272. N
  273. D