Vista geral da região de Remexio, local estratégico
para a defesa de Dili
«… 1894, ano em que assumiu o seu governo … Celestino da Silva…
… as diversas tribos agremiadas em reinos mais ou menos importantes passavam os anos em guerras intestinas cujo fundamento era o desejo de roubarem aos seus vizinhos os seus gados, os produtos agrícolas, as mulheres e as terras. Não havia progresso compatível com tal desordem que era extensiva às centenas de milhar de timores, e ora se viam lutas formidáveis entre vinte e trinta mil homens de cada partido, ora elas se resumiam a pequenos mas numerosíssimos combates de centenas de guerreiros.»
Para o comerciante, tal estado de coisas era lucrativo, pois que o consumo de pólvora e de armas permitia-lhe auferir largos proventos; para o timor, tal ocupação era agradável, visto que dotado de índole guerreira, preferia os frutos das razias àqueles que pudesse arrancar à terra, mas mantinha-o selvagem; para Portugal esta situação embora vergonhosa, era inevitável, visto que uma ocupação imediata e sólida só se conseguiria à custa de pesados sacrifícios com expedições e com a permanência de quadros e efectivos que pudessem colher os frutos, sempre tardios de tais processos.
Por isso os nossos governadores consideravam-se muito felizes quando as ditas guerras entre os reis timores não se apresentavam com o carácter de francamente rebeldes contra a nossa soberania e quando os régulos se prontificavam a aceitar a fórmula, embora platónica do preito de vassalagem. Muitas vezes, um ou outro pedia o nosso auxílio, o qual quase sempre se procurava negar, ou a nossa intervenção como medianeiros, e numerosos eram os casos em que Portugal aparecia como árbitro entre as partes, que ou se conformavam com a solução proposta, ou preferiam recorrer às armas, e neste caso, o nosso papel limitava-se ao de espectador impotente para se impor aos milhares de contendores.
Bem cedo, Celestino da Silva nomeado Governador reconheceu que antes de ensaiar e levar a efeito tentativas de desenvolvimento económico, se impunha o terminar de contendas, quer de povos para povos, quer de rebeldias contra a nossa soberania, e por isso começou uma obra de ocupação, morosa sim, porque os seus recursos lho impunham, mas contínua e segura. Não se sentiu com forças para entrar logo numa campanha franca e aberta contra todos aqueles que não acatavam a nossa autoridade; e assim é que tendo desembarcado em Maio, manda em sete de Julho o alferes Duarte com cem moradores a fim de procurar conciliar os reinos do Piço e de Liquiçá que se encontravam em guerra.
A diplomacia do oficial, os presentes aos régulos intermediários e ainda a força de cem espingardas, fizeram com que terminasse a luta sangrenta e é de notar o trabalho do referido comandante, que antes de recolher a Dili, entendeu que devia completar a sua missão de medianeiro, com a solicitação, de resto atendida pelos povos, para uma limpeza geral às plantações de café, contíguas ao seu acampamento, e que eram propriedade dos referidos indígenas.
Este simples episódio é o despontar de uma nova política em Timor, que mais tarde haverá de ser generalizada com um grande sucesso, não só ali, como em outras colónias… o oficial deixava de ser o severo comandante de tropas e colunas, tudo raziando, devastando e fazendo consistir a sua glória no número de vítimas caídas, para se transformar no colonizador, que após os rudes combates a que obrigava a índole insubmissa dos povos que lhe mandavam bater, procurava encaminhá-los no sentido da riqueza e civilização. Ampliações de plantações, aberturas de estradas, limpezas de caminhos, etc., tudo isso eram trabalhos que faziam do Comandante Militar ou de Posto, o guia de todos aqueles que na véspera tratara com a severidade de um dominador.
As instruções dadas por Celestino a tal respeito eram as seguintes:
“É absolutamente indispensável que os comandantes militares subalternos se instruam sobre a língua dos indígenas, seus usos e costumes; que conheçam dentro da área da sua jurisdição, todos os caminhos ainda os mais recônditos, todas as povoações, todos os habitantes, os chefes indígenas e suas famílias; que lhes não passe despercebida a saída para fora, ou a entrada de qualquer; que tenham perfeito conhecimento de todos os casamentos, óbitos e nascimentos; que façam um arrolamento exacto da população; que não deixem derrubar florestas cuja destruição possa exercer influência nas condições climatéricas; que não deixem despir de arvoredo, as nascentes de água; que conservem sempre em bom estado de limpeza as suas plantações de café, e se fazem cultivos suficientes para a sua alimentação; se há transgressão dos regulamentos de polícia rural dos mercados; se o contrabando se exerce; se são respeitados os regulamentos que regem a venda do sal; e enfim se há quaisquer causas que possam vir a alterar o sossego público. É isto que os Senhores comandantes militares têm o dever de exigir dos seus subalternos, além do mais que especialmente lhes determinem, por isso que das faltas, dos desleixos, da incúria deles, são os primeiros responsáveis.”
Vejamos agora qual foi a sequência dos seus trabalhos de ocupação militar e administrativa, à medida que se ia sentindo com força suficiente para os pôr em prática.
Em Agosto, Celestino cria o comando do Remexio, a pouca distância de Dili, de onde podia ser socorrido com facilidade. Significava este facto, dada a situação da localidade no interior, a intenção firme de realizar a penetração; e tal comando é uma lança apontada contra Aileu e Manufai. Em Outubro vale-se do pedido de auxílio feito pelos povos de Ermera, Atsabe e Bobonaro contra os Lamaquitos que os atacavam, para lançar uma expedição contra estes rebeldes, a qual comandada por um major que levava dois oficiais, doze europeus e duzentos e sessenta moradores de Dili, os bate após vinte dias de lutas; aproveita-se então desta vitória e em Dezembro estabelece o comando de Ailéu, a meio da ilha, guarda avançada da do Remexio, criado cinco meses antes. Manufai sente-se cada vez mais ameaçado, mas o prudente e astuto Governador não julga ainda azado o momento de dar o golpe de massa que aquele reino, o mais poderoso de Timor e cronicamente rebelde, precisava. Mete-se a época das chuvas que dificultam as operações militares, mas o balanço guerreiro daqueles seis meses de governo da colónia é bem lisonjeiro, pois traduz-se em uma campanha vitoriosa e na criação de dois comandos militares no interior.
Em Março de 1895, isto é, no ano seguinte, uma nova coluna de um capitão, quatro oficiais, dezassete praças de primeira linha e duas companhias de moradores, é lançada contra os reinos de Oeste, os mesmos batidos no ano anterior e o seu bom resultado no fim de vinte e quatro dias, permite em Junho, a criação dos comandos de Cailaco e Ermera, e em Agosto, a do comando-geral da contra-costa, que é uma nova cunha que se vem juntar à de Aileu cravada em pleno coração de Timor. É neste mesmo ano que se lança contra Manufai uma poderosa expedição comandada em pessoa por Celestino e composta de três alas: a de Oeste chefiada pelo capitão Câmara, pai daquele artista que se distinguiria anos depois como brilhante caricaturista, tendo como base de abastecimento e operações o comando de Fatumeia; a de Leste apoiando-se em Alas; e a do centro dependente directamente do Governador, com base em Aileu. Como traço de união entre o centro e a ala direita muito destacada, há os arraiais do alferes Duarte que se apoiam na Ermera e Cailaco. São ao todo doze mil homens, dentre os quais apenas marcam umas dúzias de soldados europeus e uns centos de moradores, sendo o resto arraiais armados e combatendo à maneira indígena.
O plano de operações é de envergadura e dele devia resultar a asfixia dos rebeldes, estrangulados pelo abraço mortal das três colunas. Infelizmente o comandante da ala direita, dado o seu papel de relevo na colónia, aonde era Secretário do Governo, julgando-se por isso autorizado a proceder com certa independência, em lugar de se limitar ao papel de efectuar a demonstração de força que lhe fora recomendada de modo a conter os reinos de Oeste em respeito para que estes não pudessem prestar auxílio a Manufai e seguir então a colaborar nas operações contra este povo, avança para o Sul, em vez de o fazer para Leste, prende, vexa, espanca régulos e bombardeia a povoação de Forem, num estado de irritação e orgulho enormes, pela resistência passiva oposta ao fornecimento de carregadores. É certo que o estado de espírito daqueles povos não permitia depositar neles grandes esperanças para exigir uma possível colaboração, mas segundo as conclusões formuladas no inquérito ao desastre, isso devia ser mais uma razão para não se usarem meios violentos e para procurar que ao menos se não manifestassem ostensivamente.
A não observância de tal atitude teve como resultado um ataque formidável por parte de todos aqueles povos, uma luta desesperada que durou um dia e uma noite e uma retirada de Forem sobre Fatumeia quando começaram escasseando as munições. Ao chegarem porém aqui, encontraram o forte incendiado e a guarnição trucidada; o desânimo apoderou-se de todos e fazendo fogo aqueles a quem restavam cartuchos e fugindo os restantes num salve-se quem puder indescritível, são na sua quási totalidade, vítimas de uma chacina implacável.
As cabeças cortadas de quatro oficiais, de alguns sargentos, e de várias praças europeias e indígenas, são troféus que fazem delirar os rebeldes; as peças de artilharia, algumas centenas de espingardas e de munições servir-lhes-ão para a campanha do próximo ano contra as nossas forças e o forte de Batugadé abandonado pela guarnição espantada do morticínio é pasto das chamas. A repercussão em Dili de tal desastre é enorme e exige o regresso imediato do Governador, então em operações na baliza de Manufai; os europeus julgam voltados os velhos tempos em que a Capital era ameaçada de perto pelas hordas selvagens e antevêem as cabeças de todos constituindo já ornamento das cubatas dos vencedores. A serenidade volta, embora a muito custo, mas da parte do Governo há que pôr de parte o plano esboçado do envolvimento de Manufai e as operações limitam-se a ataques feitos pelas duas colunas subsistentes, a do centro e a da esquerda, que queimam povoações, cortam cabeças e fazem as presas habituais, sem que entretanto os resultados fossem os que se almejavam, quando se concebera e planeara a campanha.
Em Outubro criou-se porém o posto de Comoro e assim Díli fica cingida por três comandos: o do Remexio, o de Aileu e o de Comoro, que a põem a coberto de qualquer surpresa e eventualidade.
Espera-se que as forças australianas ora desembarcadas tenham estudado esta lição da guerra de 1894-1895 (a continuar)
Chrys Chrystello
Nota: - José Celestino da Silva foi Governador de Timor no período 1894/1908
Reza a história que quando os portugueses chegaram a Timor encontraram uns que ficaram calados quando os viram eram os timorenses ocidentais ou Kaladi enquanto os da Ponta Leste lhes viraram o cu daí serem os Firaku.
Posteriormente esta noção passou a distinguir os do leste Lorosae e os do oeste Loromonu. Mais recentemente surgiram designações como maubere que Ramos Horta tanto gostava e que viria a ser abolida em 1998.
Para entendermos melhor o que se passou no século XX debrucemo-nos no livro da Colecção Fórum “Ocupação e Colonização Branca de Timor” da autoria de Teófilo Duarte, ex-governador de Cabo Verde e de Timor, Vogal do Conselho do Império Colonial, da Editora Educação Nacional Lda., Estudos Coloniais, nº2, datado de 1944:
«… 1894 ano em que assumiu o seu governo…. Celestino da Silva…
A nossa acção de presença efectuava-se em Dily, por intermédio do funcionalismo e duma companhia de guerra com um efectivo de setenta praças, que durante quási todo o ano permaneciam no hospital ou nos presídios para onde os arrastavam os seus vícios e o seu carácter de incorrigíveis vindos de Macau.
Em todo o litoral norte, havia os comandos de Pante Makassar em Okussi e os de Batugadé, Maubara, Liquiçá, Aipelo, Manatuto, Baucau, Lautém; e no sul apenas os de Viqueque, Alas e Fatumeia. Estes comandos reduziam-se a uma paliçada, quási sempre de palapa, sem consistência nem condições defensivas de valor… A sua acção limitava-se à área contígua ao forte, e quando os ventos corriam desfavoráveis, desaparecia com a fuga no vapor, de todo esse pessoal escapo ás represálias dos reinos e que vinha refugiar-se em Dily, à espera que as habituais operações de reocupação lhe permitissem voltar aos seus postos. O interior encontrava-se assim sem um comando…
Certamente que a eleição dos régulos era sancionada pelo governo; também é facto que eles vinham prestar vassalagem a Dily, formalidade que pouco lhes custava cumprir, e que os interessava pelo espectaculoso de que era revestido tal acto; ainda é certo que expedições compostas de “moradores” e de reinos inimigos batiam umas vezes por outras, os povos mais insubmissos, mas os resultados práticos eram nulos, pois que vencedoras as colunas, logo que elas retiravam, os povos continuavam as suas vidas com umas centenas de búfalos e cavalos a menos, com a perda de luas de oiro, de panos, etc. e com uns milhares de habitantes mortos ou foragidos, e vivendo os restantes no mesmo estado de selvajaria e insubmissão que dantes.
… as diversas tribos agremiadas em reinos mais ou menos importantes passavam os anos em guerras intestinas cujo fundamento era o desejo de roubarem aos seus vizinhos os seus gados, os produtos agrícolas, as mulheres e as terras. Não havia progresso compatível com tal desordem que era extensiva às centenas de milhar de timores, e ora se viam lutas formidáveis entre vinte e trinta mil homens de cada partido, ora elas se resumiam a pequenos mas numerosíssimos combates de centenas de guerreiros.»
Esta introdução permite esclarecer – recuando cem anos no tempo – porque existem hoje em pleno ano de 2006 confrontos que se chamam de étnicos e que alegadamente assentam na discriminação das tropas entre Lorosae e Loromonu.
São centenas de anos de guerras tribais (das quais falaremos em próximos capítulos) que nunca foram resolvidas de forma satisfatória muito por culpa da colonização branca dos portugueses caracterizada sempre pela omissão em todos os quatro cantos do Império.
Durante todo o século XX houve revoltas e guerras tribais sendo as mais célebres as de Manu-Fahi e a de Uato-Lari, mas foram centenas delas embora se tivessem diluído após a II Grande Guerra. Queremos com isto deixar bem claro que a pretensa unidade timorense contra o invasor indonésio colocou de parte estes conflitos tribais nunca resolvidos. Quando o inimigo era só um e se chamava Indonésia as guerras tribais ficaram esquecidas. Depois de conquistada a independência e dados os primeiros passos duma democracia que não tem fundamentos históricos ou tribais onde assentar é chegada a altura de se acertarem as contas. Se não houver uma intervenção firme que permita sentar todos os intervenientes tribais de todo o território a situação ficará decerto fora de controlo, para gáudio da Indonésia e da Austrália que assim melhor partido podem tirar da sua exploração das riquezas de Timor.
Ainda será possível evitar mais confrontos mas terá de se criar um Conselho de Sábios como propunha Castro Seixas em “Pública” no jornal Público de 21 de Maio de 2006 e “criar mais do que uma rai-klaran (Terra do meio ou mundo)e torná-las património nacional. Regiões onde as pessoas afluem duas ou três vezes por ano. Sem esses rituais de nacionalidade será mais difícil construir adequadamente a nação”.
É apenas preciso que a elite dominante burguesa e educada em português entenda esta realidade raramente estudada e tenha a coragem de não entrar em vinganças mas antes crie uma atmosfera de conciliação que dê razão a uma nação para todos os timorenses e não apenas para as tribos que agora estão na mó de cima.
"PORTUGUESES DE OIRO" - Ten. Cor. A. Faria de Morais
«(…) Conforme o dissera um dia o Rei de Cochim, a Índia e o seu Império Português no Oriente, perder-se-íam logo que deixassem de ir de Portugal as três coisas com que os ganhara – verdade, espadas largas e portugueses de oiro.
Meditemos na sabedoria . . .
. . . do Rei de Cochim
Sob tal invocação deu o Tenente-Coronel Faria de Morais corpo e unidade às suas cinco conferências reunidas agora em volume.
A primeira – “Os planos que El-Rei quis ordenar” – lida em 1944 na Sociedade de Geografia, evocando as vicissitudes e a decadência do nosso efémero Império do Oriente, fez a crítica histórica dos audaciosos planos que referveram na mente dos seus dois grandes iniciadores, D. Francisco de Almeida e Afonso de Albuquerque, planos desmesurados, grandiosos de mais para a pequenez do acanhado e temerário reino mas de que outros, mais solertes, vieram aproveitar-se.
Na segunda, “Os primeiros europeus nas ilhas Molucas” aproveita um curioso estudo analítico sobre a prioridade dos portugueses na descoberta e exploração desse remoto arquipélago do Extremo Oriente para pôr o problema dos métodos de colonização dos portugueses em confronto com os métodos e critérios de outras potências coloniais.
A terceira, “Portugal Maior”, é num rápido escorço a análise do problema colonial português e da sua importância para o futuro da Nação, na hora que passa e no plano da futura vida internacional.
A quarta, proferida na sede da Revista Militar, evoca, a propósito de “Três Cartas de Mouzinho…” e dessa extraordinária figura de soldado, o problema da ética militar e de formação de espírito dos que abraçam a profissão das armas.
Finalmente a última, “Soldados de Além-Mar”, aborda o espinhoso e complexo problema do soldado expedicionário de todos os tempos e faz uma sugestiva e colorida evocação de que era a vida, hábitos, vícios, glórias e misérias dos soldados da Índia ao tempo dos Vice-Reis e das conquistas do Oriente. (…)» In “Revista da Cavalaria” de 1945, págs. 188 e seg.
Passados mais de 60 anos sobre as referidas conferências, é curioso verificarmos como se mantêm actuais as questões então evocadas em cada conferência, pese embora a imperiosa mudança na terminologia:
vA pequenez, o acanhamento e o temor de muitos que não conseguem alcançar a dimensão dos planos de expansão que apelidam de loucos, quando o problema está tantas vezes na incultura ou, mais triste, na pura inveja;
vA estratégia de internacionalização por nós seguida em comparação com as dos nossos parceiros;
vA alternativa entre europeísmo e atlantismo;
vA eterna questão da ética militar;
vAs condicionantes ao exercício de uma missão de Estado em terra alheia.
Parece-me também que nunca tanto como hoje devemos meditar nas palavras do Rei de Cochim pois nunca conseguiremos expandir os nossos negócios se não nos apresentarmos com “verdade” (a oferta de qualidade em vez das vulgares mexerufadas resultantes da competição pelos preços), com “espadas largas” (o apoio institucional em vez das voluntariosas iniciativas desgarradas sem pára-quedas nem rede), com “portugueses de oiro” (os verdadeiramente capazes e não mais os xicos espertos, simples pacóvios).
Lamentavelmente, eu não conhecia este Tenente-coronel A. Faria de Morais mas numa busca rápida que fiz na Internet apercebi-me de que tem importantes trabalhos no âmbito da História de Timor e, mais concretamente, do enclave de Ocussi Ambeno. A não perder de vista.
«Na Cavalaria, podemos dizer, procura-se manter – é tradição – o mais puro sentimento humano e por ele, o mais decantado espírito militar.
Utiliza, suscita, desenvolve e apura os nobres sentimentos do homem na sua versão integral do complexo físico, moral, mental e anímico que é o «Homo Sapiens».
Não há vigor ou sector da capacidade humana que a Cavalaria não use (e por vezes abuse – o esqueleto e o instinto de conservação que o digam).
Vigor e resistência física, elasticidade de músculos e articulações, prontidão de reflexos, frescura de humores, sangue vivo e forte a correr nas veias, mesmo quando o momento é de impedir que o sangue corra.
Moral atenta, pronta, potente para dominar primeiro o próprio indivíduo que se opõe e, quantas vezes, se revolta no seu íntimo, contra a rudeza ou perigo da tarefa deste combate que tem de ser tão rápido quanto enérgico, há que enfrentar a vontade fortemente servida do bucéfalo ou a dificuldade e complexidade da máquina que nos serve e, por fim a missão sempre diferente, sempre nova, em ambiente quase sempre desconhecido que obriga a tentar em tudo quanto nos rodeia e ser tão prudente em julgar cada caso como audacioso quando o momento é de aproveitar uma oportunidade que não se deve perder, embora o risco não seja de desprezar.
Mente flexível, esclarecida, apta e capaz a julgar de pronto, sem se impressionar com os somenos de todos os problemas.
Viver é agir, agir é decidir, decidir é também arriscar, é o seu lema.
Não há problema humano, técnico ou castrense a que ele não esteja atento mas também não há problema esquecido ou demorado.
Espírito, alma iluminada e enriquecida sempre no mais puro ideal.
O bem e o belo é a sua legenda embora não anunciada em gritos de voz ou de tinta, embora não anunciada nos códigos correntes, mas existente e vincada nas ideias, nos gestos, nos actos dos cavaleiros. A irradiante camaradagem; o espírito de sacrifício fácil; a ideia de grupo a apelar sempre; a atitude firme na presença física, na exposição das ideias, no critério de vida; o interesse pelos problemas dos outros, sobretudo dos seus servidores; a alegria na missão difícil; a prontidão na execução dos encargos; a confiança conquistada em todos os Chefes, sobretudo em momentos de crise; a conquista dos jovens e dos pequenos, são tudo sinais certos do seu valor.»
***
Poesia em prosa escrita pelo Coronel António Miranda Dias, publicada na “Revista da Cavalaria” de 1965 a págs. 198 e seg. sob o título “O espírito cavaleiro e os tempos actuais”.
Falecido há poucos meses, recordo com amizade o fino trato com homens e cavalos, a rectidão das atitudes, a paixão pelo ideal inspirado em Mouzinho de Albuquerque.
Desconheço que pragmatismo tenha tido em campanha pois nunca servi com ele – nem no meu percurso militar sequer nos cruzámos – mas guardo dele mais a imagem do doutrinador do que da do fuzilador.
v“O povo português paga e reza. Paga aos que o exploram e reza aos que o enganam” filosofou, há muito, Eça, num daqueles seus rasgos de preclara lucidez – e tantos foram.
O que diria o Duque de Palmela . . .
. . . da crítica queiroziana ?
vVeio-me esta sentença queiroziana à ideia quando lia a entrevista escrita que o Senhor Procurador Geral da República (PGR) concedeu ao Expresso do último fim de semana
vDiz o PGR (e percebe-se-lhe a satisfação pelo modo expedito como os seus serviços se desenvencilharam do berbicacho) que o mistério da origem da disquete posta a bom recato no célebre envelope 9 não resistiu um mês. E passa a agitar perante nós, leitores, a muleta rubra dos jornalistas que trouxeram o caso a público.
vOra, ora. Se a diligência levasse mais do que um bocado de uma manhã pouco esforçada, era porque, das duas, uma: ou a PT punha entraves à investigação; ou a bagunça na PT era tal que ninguém por lá sabia já a quantas andava.
vMas, e o resto? A disquete não chegou às mãos de investigadores e juizes? Que concluíram eles?
vDas duas uma: ou deixaram-na para ali, esquecida, sem lhe darem a menor atenção; ou analisaram-na, e nada fizeram
vSe não mais pensaram nela, das duas, uma: ou estavam já cientes de que nada do que lá viesse teria importância para a investigação em curso – e, nesse caso, deram mostras de displicência, de deficiente planeamento das acções que tinham de levar a cabo e, quiçá, de desconsideração pelo trabalho que iam causar a outros; ou não estavam – e, então, foram negligentes, por mais voltas que o PGR agora dê no seu discurso.
vMas se a abriram com olhos de ver, certamente não lhes terá passado despercebido (como não passou a jornalistas, bem menos versados nos parágrafos da Lei Penal) que, lá dentro, havia muito mais do que aquilo que tinham pedido – e que todo esse excesso, ainda que politicamente embaraçoso, era totalmente irrelevante para o que procuravam desvendar.
vAssim sendo, era dever deles, investigadores e juízes, destruir de imediato tudo o que não contribuísse, com um mínimo de razoabilidade, para o sucesso da investigação que lhes estava confiada.
vNão o fizeram e, pelos vistos, ninguém cuida de averiguar porquê.
Excelentíssimo Senhor Embaixador do Reino de Espanha
No dia 20 de Maio de 1801, há exactamente 205 anos, os exércitos de Espanha, conluiada com a França napoleónica, invadiram Portugal e ocuparam a vila portuguesa de Olivença.
Manifesta ofensa ao Direito das Gentes, assim foi entendido pelas Potências de então que, no Congresso de Viena de 1815, onde Espanha também teve assento, reconheceram absolutamente a justiça das reclamações de Portugal sobre Olivença.
Por isso ficou consignado no Tratado de Viena, seu Art.º 105.º:
«Les Puissances, reconnaissant la justice des réclamations formées par S. A. R. le prince régent de Portugal e du Brésil, sur la ville d'Olivenza et les autres territoires cédés à Espagne par le traité de Badajoz de 1801, et envisageant la restitution de ces objets, comme une des mesures propres à assurer entre les deux royaumes de la péninsule, cette bonne harmonie complète et stable dont la conservation dans toutes les parties de l'Europe a été le but constant de leurs arrangements, s'engagent formellement à employer dans les voies de conciliation leurs efforts les plus efficaces, afin que la rétrocession desdits territoires en faveur du Portugal soi effectuée; et les puissances reconnaissent, autant qu'il dépend de chacune d'elles, que cet arrangement doit avoir lieu au plus tôt».
Como melhor saberá Vossa Excelência, em 7 de Maio de 1817, há 189 anos, Espanha assinou o Tratado de Viena e reconheceu sem reservas os direitos de Portugal.
Decorridos dois séculos sobre a desonrosa ocupação de Olivença, o Estado que Vossa Excelência representa jamais respeitou o compromisso assumido perante a Comunidade Internacional. Do carácter honrado, altivo e nobre que Espanha diz ser o seu, não houve manifestação e, ao contrário, actuando com ostensivo desprezo pelo Direito e pela palavra dada, Espanha cobriu-se com o labéu da vilania.
Eis, singela, a «Questão de Olivença»: uma parcela de Portugal foi usurpada militarmente pelo Estado espanhol, há 205 anos, extorsão não reconhecida e ilegítima face ao Direito Internacional.
Não obedecendo ao Direito nem respeitando os seus compromissos, é Espanha, de que Vossa Excelência é Embaixador, que se desonra.
El honor español
Da ofensa feita à Justiça e ao Direito, bem como da desonra trazida pela quebra da palavra dada, pertence a Espanha e a Vossa Excelência conhecer do seu significado.
Quanto à ofensa que a ocupação de Olivença constitui para Portugal, compete aos Portugueses apreciá-la e julgá-la.
Atentamente, A Direcção do Grupo dos Amigos de Olivença Lisboa, 20 de Maio de 2006.
vEsta discussão de fecha-não-fecha blocos de parto no Portugal profundo é exemplar a vários títulos.
vJura o ministro que nada mais o move para lá do inalienável direito de parturientes e recém-nascidos a uma assistência médica à altura do acto delicado e difícil que é parir (e ser parido). E que maternidades com pouco movimento (o limiar algo cabalístico dos 1.500 partos/ano) não conseguem proporcionar ao respectivo corpo clínico experiência bastante em casos menos frequentes, mas de maior risco – pelo que terão de encerrar.
A discussão do parto quando a gravidez vai rareando
vContestam aqueles que se sentem afectados por tal medida que o ministro tem um único fito: poupar no orçamento à custa da incomodidade seja de quem for. E mais dizem que as maternidades cujos blocos de parto estão ameaçados de encerramento têm tido, à evidência, uma sinistralidade bem inferior àquela que outras maternidades, pretensamente mais experientes, registam.
vO ministro veio já replicar que este último argumento não tem ponta por onde se lhe pegue – e, em boa lógica estatística, o argumento só colheria se as parturientes tirassem à sorte o local onde iriam dar à luz. Não sendo assim, o que acontece é que há determinadas maternidades para onde são encaminhados os casos em risco, ou mesmo já em desespero de causa (apelidadas, em “burocratês”, de “maternidades diferenciadas”) - e ninguém de boa fé poderá mostrar-se surpreendido pelo facto de estas registarem, entre parturientes e recém-nascidos, taxas de mortalidade relativamente mais elevadas.
vQuanto à incomodidade, digo eu: aí está um argumento que uma multidão de portugueses poderá sempre invocar, seja qual for a arquitectura escolhida para a rede nacional de apoio às parturientes.
vVamos então à substância das razões em que o ministro alicerça a sua controvertida decisão. Não sem antes chamar à colação o facto de Portugal ter, de há vários anos a esta parte, uma das mais baixas taxas de mortalidade infantil (na mortalidade perinatal já não é assim) que o mundo conhece. Isto, diga-se em abono da verdade, com a contribuição estatisticamente significativa dos tais blocos de parto que o ministro, agora, à cautela, quer ver encerrados. Percebe-se mal o raciocínio do ministro, neste particular. E uma de duas: (i) ou o ministro tem dados convincentes que o levam a concluir que nesses tais blocos de parto, durante todos estes anos, se jogou diariamente com o perigo e só por um capricho da sorte as coisas não descambaram jamais numa série negra de tragédias – e, se os tem, guarda-os ciosamente para si; (ii) ou não tem, porque a realidade foi, é e provavelmente será outra – e, então, a razão cola mal.
vMas, admitamos por um momento que a razão cola bem - ou seja, que tem ocorrido uma singular conjunção de acasos felizes, mas que seria insensato presumir que tanta sorte junta continuará no futuro. Que se fechem, então, esses blocos de parto, e que todas as parturientes passem a percorrer, a tempo e horas, as distâncias que, ainda hoje, só os casos de maior gravidade percorrem, quantas vezes em aflição. Faria sentido...não fosse por dois detalhes (o diabo está sempre nos detalhes): (i) os partos distribuem-se, quase simetricamente, pelos que concedem o seu vagar e por aqueles outros que não se fazem anunciar com burocrática antecedência; e (ii) algumas situações de aflição acabarão, como sempre, nas tais “maternidades diferenciadas”. O que se ganha, então? Mais parturientes a percorrerem maiores distâncias, em situação de urgência, mas não de risco. Ah! E a revelação de que o ministro, afinal, deposita uma fé cega em que os acontecimentos nunca se precipitarão durante o trajecto para a maternidade de serviço.
vQue o pessoal clínico “perde a mão” se não lidar regularmente com casos raros e de risco, refere o ministro. Curioso argumento este. Alguém, em seu perfeito juízo poderá assegurar que, por cada 1,500 partos/ano, pendularmente, com a regularidade burocrática que o ministro terá em mente (mas que também não revela), ocorrerão esses tais casos que asseguram a proficiência de obstetras e enfermeiros? E se não ocorrerem, que medidas prevê o ministro para que a “mão” deles se não perca? Deverá cada parturiente certificar-se primeiro que, quem dela vai cuidar, já teve a sua dose de casos difíceis, nos últimos meses? E deverá o pessoal clínico (e as maternidades, já agora) publicitar o número de partos difíceis com que tiveram de lidar até então, sob pena de lhes ser cassado o título da especialidade? E se, por um mero acaso (improvável, mas possível), durante um ano ou dois, nenhuma maternidade do país registar um só desses tais partos tecnicamente exemplares, vai o ministro encerrá-las todas?
vAntes de prosseguir, convém aqui recordar no que é que deram algumas medidas “tecnicamente inatacáveis” que foram tomadas num passado ainda não muito distante. No final dos anos ‘80, o IANT-Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos, após décadas de trabalho e dedicação, graças à prevenção, à detecção precoce e ao tratamento eficaz, tinha conseguido trazer para números insignificantes a incidência da tuberculose, entre nós. “Acabe-se com o que já não tem razão de ser, como este relatório bem demonstra” decidiu uma ministra de convicções fortes “Os hospitais que tratem disto, a partir de agora”. E assim se fez. Menos de dez anos decorridos, voltámos a estar na cauda da Europa Ocidental também no campeonato dos bacilos de Koch, sem que ninguém tugisse nem mugisse - e sem que ninguém fosse chamado à pedra. Grande país este!
vVoltando ao assunto que aqui me traz. As razões que o ministro repete parecem ter pouco a ver com o diagnóstico que ele faz. Na verdade, o diagnóstico aponta directamente para um problema de formação continuada, de actualização e reciclagem profissional (não específico das maternidades, diga-se en passant) que só remotamente terá algo a ver com o critério dos 1,500 partos/ano. E, concedo, também com falta de equipamentos, ou com instalações deficientes aqui ou ali. Difícil assegurar o treino profissional continuado? Talvez. Mas haverá sempre o recurso a estágios nas “maternidades diferenciadas” e à rotação do pessoal clínico pelos diversos tipos de maternidade, conforme o programa de actualização (há-os?) que ficar definido para cada profissional.
v“Rotação do pessoal clínico?” perguntarão os habituais incréus, “Com o actual Estatuto do Funcionalismo Público (EFP)?”. Sim, porque não? E se o EFP é um empecilho, porque se espera para o modificar? Ou será que, também aqui, seremos nós a criar, e a manter com desvelo, os entraves que tanto nos espartilham?
vEstamos, finalmente, a tocar no fundo da questão - naquilo que a torna exemplar.
vNo fundo, no fundo, há várias “questões de Estado” neste vaudeville dos blocos de parto que a cisma de um ministro quer ver fechados. Questões, não do Governo, não da Administração Pública, não de meios - mas de fins. Refiro-me, concretamente: (i) à ocupação efectiva do território nacional como expressão da soberania; (ii) ao despovoamento do interior; (iii) ao “custo da interioridade”; e (iv) ao modo como tem sido gerida a formação inicial de médicos e enfermeiros, entre nós, de há muitos anos a esta parte.
vSe o interior está cada vez mais despovoado, se muitas vilas do hinterland estiolam à míngua de jovens, há que criar todas as condições possíveis para inverter a tendência. Há que atrair para lá pessoas, e tudo fazer para que elas lá se fixem.
vComo? A receita é simples de enunciar (mas, pelo que se vê, difícil de aviar): qualidade de vida e actividade económica. Ninguém negará, creio eu, que uma maternidade acessível e segura é peça essencial na qualidade de vida de uma qualquer família jovem. Se esta optar por viver numa grande cidade, contará com o apoio de um (se não de vários) blocos de parto de confiança à distância de minutos; mas se for viver para o interior, espera-a uma deslocação de dezenas de quilómetros para dar filhos à luz. Alguém de boa fé se surpreenderá por a pressão demográfica sobre as áreas metropolitanas não parar de crescer? Não há ministro que se preocupe com a insegurança (e com os sobrecustos sociais) que daqui decorre? E se a interioridade custa, porquê agravar esse custo com uma logística mais ou menos complicada no momento do parto?
vNaturalmente, não levo este meu argumento ao exagero de pretender uma maternidade em cada esquina, muito menos defendo o que está. Digo, sim: (i) que a rede de maternidades projecta-se claramente na esfera da soberania (logo é uma finalidade do Estado, não uma opção do Governo ou da burocracia estatal); (ii) que a expressão da soberania subordina tudo o mais, mesmo as condicionantes financeiras; (iii) que qualquer ministro, se reparar melhor, sempre poderá encontrar umas quantas despesas mais onde cortar, mas que lhe está vedado cercear a soberania; (iv) que este ministro em concreto, neste assunto em concreto, dá mostras de não ter percebido que a sua decisão se situa no plano da soberania (isto para não cometer a injustiça de dizer que o ministro mandou a soberania às urtigas); (v) que o ministro só deverá decidir com base num plano de ordenamento territorial e repovoamento do interior – para que, na sua distracção, não crie novos empecilhos às medidas que, mais cedo ou mais tarde, terão de ser tomadas neste capítulo.
vA realidade que subjaz à precipitação do ministro não é, nem a falta de dinheiro (que, todos sabemos, não abunda e é mal gasto), nem a deficiência de algumas instalações (nalguns casos será). A dura realidade é que faltam recursos humanos (obstretas e enfermeiros) para guarnecer todas as maternidades que a cobertura do território nacional, pensada com razoabilidade, não deixaria de reclamar. E faltam porque a formação académica de médicos e enfermeiros tem estado, há décadas, nas mãos de cartéis de interesses corporativos fiéis ao lema: “quantos menos formos, mais ganhamos”. Mas isso, pelos vistos, não preocupa este ministro.
vEm jeito de post-scriptum: tudo isto mostra à evidência que o actual modelo municipal (da divisão do território em municípios às competências municipais; das regras da gestão municipal ao regime fiscal) dá para aumentar estas barafundas, e para pouco mais.
(ou a importância de uma bochecha por escanhoar...)
vHá muitos, muitos anos, era eu então um jovem e garboso miliciano, caiu em sorte a um coronel lá do sítio redigir um ofício sobre já não recordo que assunto. Coisa urgente, que teria de estar pronta, sem falta, ao raiar da uma da tarde, logo no dia seguinte (pois era a essa hora que, com pontualidade britânica, a guerra recomeçava todos os dias úteis por aquelas bandas).
vNão havia dúvidas que a situação era de crise. O pobre coronel, com ar angustiado, levantava-se, passeava, mirava pela janela, voltava a sentar-se, mandava por cada vez mais pastas – e rabiscava sem parar apontamentos em folhas de papel que, amarrotadas, não tardavam a ir para o lixo. Suspirava e bufava que dava dó, presa fácil da “síndrome do papel alvo”.
vNo meio de tanta agitação, lá me chegou a vez de ser mobilizado para o acolitar no ofício. Com calma, entre os dois, saiu obra escorreita que foi dactilografada, revista, emendada, passada a limpo e assinada ainda a tempo de qualquer um de nós ir beber, sossegadamente, o seu copo antes do jantar.
vNo dia seguinte, a la una de la tarde (que me perdoe Frederico) ei-lo, coronel, a entrar com passo firme pelo gabinete do brigadeiro director do Serviço. Não fosse a roupa amarrotada, o cabelo algo desalinhado, a camisa ostensivamente da véspera e uma barba por fazer, e dir-se-ia, pelo ar decidido, a estampa de um militar.
v“Perdoe-me, meu brigadeiro, mas não preguei olho toda a noite para conseguir apresentar-me, agora, com a missão cumprida”. “Deixe lá isso” respondeu o brigadeiro, entre o bonacheirão e o ansioso “Então, o ofíciozinho?”. “Aqui está”. “Uf! Que alívio. Bravo, homem!”
vDias depois, o coronel foi muito cumprimentado pelo temerário feito de ter escrito um ofício tão intrincado, para aí de página e meia, em menos de uma semana, ao preço insuportável de uma noite de vigília. A bochecha barbuda estivera bem presente, a atestar urbi et orbi o sacrifício – e, ela sim, tinha cumprido a preceito a sua missão.
vEste episódio do coronel mal barbeado, mas matreiro, veio-me à lembrança quando li as declarações de um actual ministro a queixar-se das incontáveis canseiras que o lugar lhe trazia. De barba bem feita, sem olheiras que lhe chegassem aos pés, as fotografias a rescenderem sabonete e lavanda, o ar viçoso de quem acabava de sair de um banho reparador, o tal ministro não parava de insistir na tecla do cansaço – e lançava a confusão por cá.
v“Cansado, uma treta. Ele quer é dar às de vila diogo”, opinaram uns. “Qual quê? O homem é mas é um arrogante de marca, e acha que o país não o merece”, sentenciaram outros. Injustos, digo eu.
vCá para mim a explicação é outra: tal como o coronel da história, a preocupação suprema do nosso ministro foi, apenas, a de mostrar trabalho e zelo superlativo aos olhos do seu chefe. Exibir-se em sacrifício para suscitar a benevolência de quem manda. Na esperança de receber, em troca, um pouco de mais de atenção, algum carinho que lhe levantasse o ego e, quem sabe? sinais seguros de que continuava ainda nas boas graças do boss.
vEsta estratégia do desgraçadinho tem provas dadas entre nós: por cá, o desempenho mede-se mais em gotas de suor e ar sofrido do que em resultados palpáveis.
vPrecisamente por isso, ao ministro, apanhado desprevenido de camisa lavada e cara bem escanhoada, não restava outro recurso senão esforçar-se por colar uma legenda dolorida à sua imagem sonsa. Se ele tivesse sabido, ou se os seus consultores de imagem tivessem sido mais avisados, e lá contaria a História de Portugal com mais um glorioso episódio onde o herói aparece de barba por fazer.
Título português: “Meia-Noite ou o Princípio do Mundo”
Editora: GÓTICA
Edição: Setembro de 2004
Hino contra a escravatura, este novo livro do americano radicado no Porto e naturalizado português que compreensivelmente escreve na sua língua materna. Bom português, o da tradução.
O enredo começa no Porto em 1798, acaba em Nova Iorque em 1825 e entretanto dá-nos uma visão interessante sobre a vida dos cristãos novos na época que em Portugal antecedeu as lutas entre liberais e miguelistas e durante as invasões francesas bem como da vida dos escravos nas plantações sulistas americanas.
Pese embora alguma implausibilidade perfeitamente admissível num romance, lê-se com agrado, compreende-se bem a razão do endémico atraso português e porque é que os sulistas tinham mesmo que perder a Guerra da Secessão americana.
Retenho do final algumas frases conclusivas que me parecem dignas de menção:
“Não acredito que haja uma vida eterna a seguir a esta, nem que nos vamos todos erguer no Monte das Oliveiras quando o Messias chegar. Pois o segredo é este:
O Messias está aqui agora e nós já estamos a viver no Monte das Oliveiras.
(…) a vida é escrita no tempo presente com a tinta que nos foi legada pelo passado. A morte também. A Génesis e o Êxodo estão a acontecer dentro de nós neste preciso momento. Até a Paixão de Cristo. (…)
Foi o Anjo Rafael que disse a Tobias: «Escreve todas estas coisas que te aconteceram.»
E para agradecer, tal como Tobias, foi isso que fiz. (…)”
Dá para respeitar estas opiniões do Autor se essa é verdadeiramente a sua Fé, matéria que não se discute.
Manuel Pairó era um jovem advogado galego. Seria mais um destinado a perder-se na concorrência do mesquinho provincianismo ou trespassado por alguma bala na iminente guerra civil espanhola. Tentou a sorte em Portugal mas as coisas não lhe saíram famosas pois ser advogado espanhol não era recomendável na nossa ordem quer esta se escrevesse ou não com maiúscula. Casou com uma portuguesa cuja família era proprietária de uma famosa livraria de Lisboa e assim se manteve por cá como consultor editorial de matérias jurídicas e de temas espanhóis. Mas esta não era função que lhe agradasse e eis que lhe aparece um convite para leccionar na Universidade de Havana.
Zarpou do Tejo e saltitou de porto em porto até chegar ao destino. Instalou-se, começou a dar aulas e chamou a mulher. Tiveram dois filhos e a vida correu com tanta normalidade que se perderam histórias que nunca entraram na História . . . até que alguém por aquelas paragens decidiu fazer História e o “Tio Manolo” se ia vendo metido em sarilhos.
Fidel Castro tinha sido seu aluno e quando a revolução triunfou, o “Tio Manolo” não foi obrigado a fazer juras, não foi saneado da Faculdade de Direito onde manteve a cátedra de Direito Civil e foi-lhe permitido continuar a viver na casa que em tempos comprara mas que acabava de lhe ser expropriada. Conseguiu autorização para que a filha viesse definitivamente viver para Portugal e que a mulher cá viesse de vez em quando passar umas temporadas mas ele e o filho ficavam lá como reféns.
E que perspectivas podia haver para um jovem talentoso para o mundo empresarial num país que banira a actividade privada e expurgara o lucro dos objectivos? Tinham que tirar o filho daquela frustração: simularam-lhe uma doença e passado o prazo conveniente encenaram-lhe um enterro; o destino do féretro foi um cemitério ermo algures próximo de uma praia e na primeira noite o “morto” ressuscitou e como que por acaso ou mera coincidência pairava por ali uma traineira que o transportou para o Inferno do capitalismo abandonando o Paraíso socialista. Até hoje.
Os meus tios morreram mesmo de morte natural e sem simulações e quando fui a Cuba pensei neles mas não lhes procurei as campas não arranjasse algum sarilho com que um turista não sabe lidar.
Vim a saber mais tarde que o comandante do avião português que nos levou de Lisboa a Varadero era – e ainda hoje é – um comunista convicto que juntava a pensão de reforma da nossa companhia de Bandeira ao ordenado da “charter” em que entretanto pilotava e à solidariedade com o regime da sua predilecção para lá transportando “gado pagador”.
A chegada a Cuba foi semelhante à partida de qualquer outro aeroporto num país democrático: “o que trazem?” em vez de “o que levam?”. As máquinas de filmar pouco interesse despertaram à Alfândega; os filmes, esses, foram todos visionados não fosse alguém tentar introduzir no país qualquer veneno poluidor das puras mentes revolucionárias. À minha volta não houve problemas pois os filmes estavam todos como era previsível: virgens e em branco (o que é parecido com “virgens e de branco”, como a flor da laranjeira).
Apanhámos um transporte com uma “guia turística” que nos levou a Havana. Com as dimensões de uma guarda prisional, a fulana falava português com fluência e teve muita oportunidade de o evidenciar pois não se calou um momento durante as duas horas de viagem. A certo momento convenci-me de que o objectivo consistia precisamente em monopolizar a nossa atenção de modo a que não reparássemos em qualquer coisa que o Governo considerasse menos apropriado para ser visto por um estrangeiro, capitalista nojento para cúmulo. Liguei à terra e passei a olhar para tudo quanto era exterior.
Não vi nada que me chocasse e confesso que esperava ter um espectáculo semelhante ao que tive em 1961 quando percorri o corredor entre Braunschweig e Berlim com os campos a serem trabalhados à mão por gente demonstrando pouca ou nenhuma motivação. Não, em Cuba não vi nada disso. No que se refere à agricultura, não vi mesmo absolutamente nada. Depois lembrei-me de que a monocultura da cana-de-açúcar devia estar numa época intercalar entre a ceifa e a lavra e por isso o vazio completo a perder de vista até ao horizonte. Portanto, vi campos vazios com edifícios paralelipipédicos com dois ou três pisos e janelas corridas de uma ponta à outra no meio do nada que – vim a saber por outro “guia turístico” – eram escolas. Pode ser que um dia eu venha a perceber a razão pela qual se instala uma escola a quilómetros de distância do povoado mais próximo. Por agora, mantenho a incógnita.
Chegámos a Havana e a sensação que tive foi a de que chegáramos logo depois de um grande bombardeamento aéreo, de tão degradado o parque imobiliário. Pudera, as casas tinham sido entregues à ocupação popular a título quase gracioso e deixaram de gerar os rendimentos necessários à imprescindível conservação. Estas concepções políticas poderão ter grandes fundamentos filosóficos de justiça social mas a verdade é que conduzem a uma flagrante degradação da qualidade de vida e com isso se esvaem as lógicas engendradas em gabinetes de professores de filosofia política que nunca pensaram ganhar a vida em função do seu real contributo para o Produto Nacional Bruto. É claro que bastaria pouco tempo para reabilitar Havana mas duvido que isso fosse compatível com a manutenção do actual regime de propriedade. Aliás, nós em Portugal, temos um regime de arrendamento urbano tão especial que não podemos obviamente cantar de coxixo.
Mas há edifícios em bom estado de conservação, nomeadamente os que têm vocação turística pois aí estamos nós, os turistas, a pagar para que isso seja possível.
Ficámos no “Hotel Nacional”, os nossos quartos tinham acabado de ser renovados, tudo cheirava a novo e a qualidade era o timbre predominante. O que não cheirava a novo era o “botones” que nos ajudou a levar as malas para os quartos pois em qualquer outro país já estaria reformado há uns anos. É claro que não o deixei pegar nas malas mais pesadas e deixei-o com a carga leve para ter a certeza de que o velhote não caía para o lado com um enfarte do miocárdio. Mas quando chegámos ao quarto a minha mulher constatou que não tinha moedas e que a nota mais pequena era de dez dólares americanos. Foi aí que o velhote ia tendo um ataque de coração pois com essa gorjeta recebeu o equivalente a dois vencimentos mensais. É claro que nunca mais nos largou durante a nossa estadia no hotel e deve ter sido ele – e não o Comité Central do Partido Comunista Cubano – que espalhou a notícia de que éramos os maiores do mundo pois todo o pessoal se desfazia em sorrisos e mesuras.
"Hotel Nacional" - Havana
O jardim do hotel dá para cima do Malecón, a marginal mais badalada de Havana que passa por ser a montra das “relações públicas” da cidade. Este, o eufemismo para prostituição, expressão a que não deixo de reconhecer uma certa lógica semântica. Nesse mesmo jardim estão os canhões que em 1898 defenderam a cidade da invasão durante a Guerra hispano-americana e para ele dão as galerias envidraçadas que em tempos foram assiduamente frequentadas por Ernest Hemingway, Pablo Casals e várias estrelas do music-hall que ali têm fotografias dedicadas ao hotel. Nada lá consta quanto à presença ou ausência de Guilhermina Suggia assim como também nada se diz quanto à marca do chá preferido pelo célebre autor de “O velho e o mar”.
Sublime, o aspecto da alimentação mas alguns produtos totalmente sensaborões a dizerem-nos que tinham mais congelamento do que o previsto inicialmente. A pianista que acompanhava o jantar era da mesma geração do “botones” das malas, tocava muito bem, interpretava uma música a condizer com a nacionalidade dos turistas presentes mas, disseram as Senhoras que são disso observadoras, tinha as meias rotas. Não fora o grupo etário da artista e quem repararia nas meias seríamos nós, os homens.
Um dia, Havana voltará a ser uma cidade linda . . .
Voltámos para Varadero e instalámo-nos num hotel espanhol com tudo incluído e de fita verde no pulso a significar que éramos gado daquele curral e não de outro.
Varadero é uma península na costa norte de Cuba, está completamente lotada com hotéis e nela se passeia com total à-vontade. Só que no istmo há uma fronteira e só entra quem tem autorização para tal. Não é qualquer um que lá entra: ou se é turista encartado ou, sendo cubano, tendo um contrato específico de trabalho. Chocante, esta separação. É nestas situações que me lembro de que os comunistas quando cantam hinos à liberdade o fazem como um louvor à liberdade de nos mandarem prender, aos outros que não somos comunistas.
Nunca vimos tantos canadianos. Aliás, um pouco por toda a parte em que se via alguma cooperação externa, já tínhamos reparado numa profusão enorme de bandeiras canadianas. Foi aqui que começámos a admitir que estes deviam ser . . .“canadianos do sul” ou, por outras palavras, gente natural de algures a sul do Canadá. «A bon entendeur . . . ». E houve uma banhista dessas que achou conveniente falar comigo em francês para me convencer de que era canadiana. Só que os canadianos francófonos têm um sotaque inconfundível e então é que eu fiquei mesmo com a certeza de que todos aqueles canadianos eram mesmo desses, dos do sul.
Já em Havana tinha olhado para os cavalos dos trens dos circuitos turísticos e reparado nos pescoços formidáveis que todos tinham. O resto poderia ser um monte de ossos e peles mas os pescoços eram notáveis. E quem sabe alguma coisa de cavalos, sabe que o pescoço é uma parte fundamental da anatomia equestre não só na perspectiva estética mas principalmente na funcional. Em Varadero confirmei que as pilecas de aluguer tinham pescoços muito bons mas abstive-me de os alugar ou sequer de lhes tocar pois vi que tinham umas peladas muito pouco convidativas ao tacto. Bastava olhar para os cães completamente carecas com que nos cruzávamos na rua para sabermos que se tratava de tinha. Já não fui a tempo de impedir no hotel uma criancinha de afagar um cachorro adorável cheio dessas peladas e não consigo imaginar quantos turistas alugaram cavalos e ficaram com o rabo tinhoso. Pelos exemplos que ostenta, o regime cubano pode não propagandear muito bem o comunismo mas propaga por certo a tinha com grande eficácia.
Foi de Varadero que partimos para duas itinerâncias bem interessantes.
De autocarro fomos à Baía dos Porcos. Lembram-se da tentativa de invasão americana nos idos de 60 do século passado? Tomámos banho nessa baía, desistimos de perder o pé e ficámo-nos com água pelo meio do peito à conversa com os vendedores ambulantes que estão proibidos de fazer o seu comércio em terra mas que aproveitam uma lacuna da Lei que não os impede de o fazer dentro de água. E eu que julgava que nós, os portugueses, é que éramos os grandes mestres na descoberta das lacunas legais . . . Água excessivamente quente para conseguir ser agradável. Foi no regresso que passámos por uma “finca” modelo sem nada de assinalável a não ser um sumo não alcoólico da cana-de-açúcar exprimido à nossa frente e a possibilidade que se me ofereceu de escarranchar um boi zebu ali posto para a fotografia. Não posei mas, em compensação, pedi ao fulano que me deixasse dar uma volta à guia. O movimento é muito diferente do do cavalo. No cavalo nós montamos em cima dum arco côncavo; no boi não cheguei a perceber como era o movimento e nem sequer tive prazer.
De avião fomos a Caio Largo – ao largo (passe o pleonasmo) da costa sul de Cuba quase a meio caminho da República Dominicana – num trireactor «Yak 40» de fabrico russo com capacidade para uma trintena de passageiros. O catering servido a bordo consistia num copo de água e num rebuçado; como tive dois rebuçados e acabei por pedir segundo copo de água, tive catering duplo. O avião é bem giro mas vim a saber mais tarde que aqueles aviões foram pensados para voar sobre as nórdicas estepes russas e que as adaptações aos trópicos não foram muito bem sucedidas pelo que de vez em quando há um que vem cá parar a baixo mais depressa do que o previsto. Não foi o que aconteceu nesta viagem e até tivemos oportunidade de bordejar dois cúmulos, coisa que nunca tinha feito com tanta emoção. No destino navegámos num catamaran de grande luxo nada tendo a ver com qualquer regime socialista, almoçámos num restaurante sobre uma praia de coral que nos espantou porque achámos que a “areia” era fria e comemos lagostas acabadas de pescar que não vale a pena repetir.
Finalmente – até porque o relato já vai longo e não gosto de extensões narrativas – notei uma clara diferença entre os cubanos que trabalham na hotelaria e os outros pois vê-se que os primeiros almoçam e jantam todos os dias e os outros . . .comem as senhas de racionamento.
Ah “Tio Manolo”! Bem fez em salvar os seus filhos de tanta miséria. Infelizes aqueles que não tiveram um pai que visse à distância nem se deixasse embarcar em aventuras revolucionárias.
Nada disto aconteceu por sua causa mas apesar de si.
“Hasta luego, tovarichtch Comandante . . .“ enquanto isso for dessa maneira, não conte comigo.
Henrique Salles da Fonseca
Nota: tudo isto e muito mais se passou em Abril de 2000