LEITURAS DE VERÃO 2
Na minha ampla ignorância sobre temas filosóficos, vou tentando diminuir o fosso que me separa entre o imediatismo a que muitas vezes os factos nos conduzem e o cerne das questões que lhes estão subjacentes.
Desde o ataque às torres gémeas do World Trade Centre de Nova Iorque que me parecia que aquilo não era coisa fácil de analisar. Dessa dificuldade tem sido prova a desorientação em que nos encontramos. Estava eu prestes a escrever que é no Ocidente que nos encontramos desorientados mas lembrei-me a tempo da Chechénia e correspondentes bombas em Moscovo, dos ataques suicidas em Sharm el Sheik, das já quase velhas guerras no Afeganistão, no Iraque e no Sudão e não esqueço os constantes problemas nas Molucas indonésias, no Mindanau filipino e nesse verdadeiro barril de pólvora que é o Paquistão dificilmente controlado pelo General Musharraf.
Sempre me pareceu excessivamente evidente que o ataque ao World Trade Centre de Nova Iorque fosse uma consequência exclusiva da primeira guerra no Iraque desencadeada por Bush I em defesa dos poços de petróleo na Península Arábica; não tenho dúvidas de que a segunda guerra no Iraque foi desencadeada por Bush II em retaliação ao dito ataque ao WTC. Mas e o resto? Nas Molucas, trata-se de um litígio religioso directo entre muçulmanos e cristãos; na Chechénia, trata-se da independência daquela comunidade islâmica relativamente a Moscovo; no Sudão, é a resistência dos negros do sul contra o esclavagismo a que os muçulmanos do norte os querem submeter; etc. Todos estes pólos de conflito têm as respectivas justificações mas tendo sempre um denominador comum: um pouco por toda a parte, há muçulmanos em conflito com não muçulmanos. Se a estas realidades juntarmos os constantes conflitos de origem claramente teológica entre muçulmanos xiitas e sunitas, então temos que concluir que alguém está zangado com o Mundo.
Comecei há anos por ler um livro editado pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa da autoria do Professor Hélder Costa intitulado O revivalismo islâmico e considero esse um texto indispensável para quem queira começar a perceber um mínimo sobre o que distingue os vários teólogos islâmicos. De leitura acessível para quem esteja completamente fora do tema, fica contudo distante das respostas que queremos obter às questões que já hoje se nos colocam e que muito provavelmente não faziam sentido na época em que foi escrito. Mas foi a partir daí que comecei a compreender o que pensam certos teólogos mais mediáticos tais como al Wahhab o tal que em meados do nosso séc. XVIII fez aquilo que denominou a última interpretação do Corão (literal, aliás) ameaçando de morte quem ousasse avançar com novas interpretações nem que apenas pelas simples traduções do árabe ou al Banna que não se cansou de apregoar que o punhal, o veneno e o revólver são as armas do Islão contra os seus inimigos. Como considerava inimigos todos os não sunitas, está bem de ver que xiita era tão inimigo como cristão, hindu ou budista. Quando o 5º versículo da IX Surata do Corão manda perseguir e matar todos os idólatras e infiéis, está-se a ver que a interpretação literal do texto não sossega muitos povos por tudo quanto seja latitude.
E nestas leituras me tenho amiúde entretido sem contudo conseguir descortinar uma saída airosa para o problema em que estamos metidos. Ouso a certo passo reflectir que o mundo islâmico ainda não teve a sua Revolução Francesa mas reconheço que as experiências laicizantes de Nasser, Afez al Assad, Boumedienne e outros que tais provocaram enormes frustrações de índole económica pelo apego que tiveram às políticas socialistas. Atatürk, esse sim, foi «réussi», não praticou o socialismo de índole soviético mas não chegou para as encomendas de todo o islamismo. Andava eu a pensar que os Deuses não se guerreiam mas os Cleros sim, que não perdem a mais pequena oportunidade para manipularem os respectivos devotos e lançarem carnificinas medonhas quando a revista Atlântico, no seu nº 5, sob o título geral Londres sob ataque publica 3 artigos muito interessantes sobre o assunto que nos preocupa. São eles: o primeiro de João Marques de Almeida («E antes do Iraque, quais eram as razões?»); o segundo de Vasco Rato («Terrorismo: da novidade à normalidade»); o terceiro de Henrique Raposo («Totalitarismo islamita, outro mundo sem porquês»). Não ponho em dúvida a qualidade das opiniões dos dois primeiros autores e recomendo a leitura daqueles textos (não acredito muito na solução de Vasco Rato) mas foi o terceiro que me deixou perfeitamente cilindrado sob o peso do conteúdo.
Bastará transcrever algumas frases para se ter uma ideia do artigo cuja leitura completa não pretendo substituir, até porque não transcrevo as fundamentações de cada expressão nem as tramitações lógicas entre elas: As guerras vencem-se com o neurónio e não com a lágrima; Bin Laden não executa caprichos privados de serial killer. Executa, isso sim, um plano retirado de uma determinada ideologia colectiva»; A vitória do islamismo depende da anulação do Ocidente; Não sofremos atentados por causa do que fazemos politicamente. Somos atacados devido ao que somos eticamente; o islamismo importou ideologias europeias; os mais relevantes importadores foram Hassan al Banna (Egipto, 1903-1949) e, acima de tudo, Sayyd Qutb (Egipto, 1906-1966), o grande mentor dos actuais terroristas; Importaram conceitos e estratégias de duas correntes germânicas: o vitalismo romântico que desembocou no totalitarismo fascista e o marxismo que originou o totalitarismo comunista; na cosmovisão islamita reencontramos o velho duelo de Tönnies readaptado ao contexto: a «Gemeinschaft», a pura e orgânica comunidade islamita, versus a «Gesellschaft», a impura sociedade contratualista, individualista e pluralista do Ocidente. Por outras palavras, os islamitas ressuscitaram o ódio romântico à «Cidade»; Londres ou Nova Iorque não são encarados como centros cosmopolitas mas como manicómios; O burguês individualista é visto como uma aberração patológica; O suicídio ( ) desembocou no irracionalismo niilista; Os qutbistas deixaram de ser reaccionários defensivos e passaram a ser revolucionários com uma predisposição ofensiva; No islamismo também encontramos ecos de marxismo-leninismo; o paquistanês Mawdudi fundou um partido islamita à imagem do partido leninista típico; al Banna vivia impressionado com a URSS de Estaline; Osama (Bin Laden) é o novo Che Guevara. A Al Qaeda é precisamente um instrumento vanguardista ( ) jacobino e leninista: refazer o mundo através de actos de terror dantescos; As influências marxistas-leninistas foram evidentes na revolução de 1979 no Irão ( ) Shariati concebeu o Islão como uma espécie de socialismo de aplicação prática. O Alcorão deixou de ser um mero guia religioso e passou a ser uma espécie de manual de acção, de conquista do poder. ( ) Tal como os bolcheviques, os islamitas iranianos subjugaram o Estado sem ficarem sujeitos ao controlo desse mesmo Estado. ( ) o Hezbollah funciona como uma espécie de Comintern islâmico; O implante leninista separa o qutbista revolucionário do wahhabista reaccionário; O wahhabista vive literalmente na Idade Média ( ) é um profeta desarmado. O qutbista é um profeta armado ( ) procura apoderar-se do Estado. ( ) não vive na Idade Média. Usa instrumentos da modernidade revolucionária para inventar uma nova Idade Média, um califado mundial que tudo harmonizará; Qutb elaborou uma síntese das correntes alemãs que produziram Auschwitz e Gulag e aplicou-a ao Islão; O qutbismo é um «ismo» como o fascismo e o nazismo; uma utopia totalitária de ambição universal; É esse o segredo das utopias totalitárias: fazer o mal a homens reais, enquanto se abre a boca para proclamar o Bem de um Homem que não existe; a pulsão pela morte como arma política é o denominador comum das grandes ideologias exterminadoras: nazismo, comunismo e islamismo; se o segredo da utopia totalitária é fazer o Mal dizendo que está a fazer o Bem, o segredo do Ocidente liberal é bem mais simples: é a interrogação; Não podemos negociar com valores totalitários. Só os podemos destruir. Olhar para o lado não é solução.
E mais não transcrevo porque cheguei mesmo ao fim do artigo. Para já, fiquei a saber um pouco mais sobre o que eles pensam e porque lançam o terror. Só não cheguei ainda a uma conclusão sobre o que se deve fazer com os que habitam entre nós, nomeadamente no Espaço Schengen. Expulsá-los? Eu quero acreditar que nem todos sejam radicais, revolucionários e terroristas potenciais mas estou a ficar um bocado preocupado e a olhar de viés aqueles que se apresentam à 6ª feira nas ruas de Lisboa vestidos com aqueles balandraus brancos até aos pés quase a roçar o chão e de cofió na cabeça a lembrar-lhes onde acaba o homem e começa o espaço de Allah. Temo que estejamos a chegar a um ponto em que nos vejamos obrigados a medidas mais radicais, ao estilo daquelas contra as quais julgávamos já estar vacinados. Neste momento lembro-me dos espanhóis Fernando e Isabel e desejo ardentemente não testemunhar uma nova edição de D. Frei Tomás de Torquemada.
Tavira, Agosto de 2005
Henrique Salles da Fonseca