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A bem da Nação

A ESPANHA E O BRASIL


Há alguns meses o Prof. Cavaco Silva apontou a Espanha como devendo ser o principal mercado de exportação das empresas portuguesas. O crescimento económico sólido da economia espanhola, a proximidade geográfica e até a semelhança linguística são condições favoráveis para a penetração dos produtos portugueses nos mercados espanhóis.
Mais recentemente o Governo tem tido um discurso semelhante e apronta-se para abrir delegações do IAPMEI em diversas cidades espanholas. Embora não seja claro a inter-relação com o ICEP, a ideia em geral parece muito interessante.
Quanto ao potencial que o mercado espanhol representa para Portugal existe portanto um consenso na sociedade portuguesa. O crescimento das exportações portuguesas vai depender consideravelmente das estratégias delineadas pelo Governo para os mercados espanhóis e da resposta das empresas portuguesas exportadoras.
No entanto, um outro mercado parece não merecer tantas atenções. Refiro-me ao Brasil.
O Brasil pode representar para Portugal aquilo que os Estados Unidos representam para a Irlanda: a plataforma dos investimentos norte-americanos na Europa.
Mas os irlandeses não tiveram que desenhar nenhuma estratégia de atracção do investimento americano. Tudo aconteceu graças sobretudo ao uso de uma língua comum e da existência de uma diáspora irlandesa importante nos Estados Unidos.
Não podemos esperar o mesmo do Brasil. Se é certo que as empresas brasileiras que investem em Portugal têm em mira os mercados europeus, o volume e as perspectivas de investimento são muito baixas e insignificantes perante o potencial existente. Além disso, sendo a economia brasileira o que é, pode efectivamente acontecer que o investimento brasileiro seja modernizador da economia portuguesa e inovador quanto a métodos de gestão, de processos de fabrico e de lançamento de novos produtos.
É pois urgente atrair o investimento brasileiro para Portugal. As notícias recentes quanto à implantação de uma plataforma brasileira em Espanha confirmam a necessidade de Portugal desenvolver uma estratégia coerente e persistente de atracção do investimento brasileiro em Portugal.
E neste sentido, cremos existirem três meios a utilizar.
Em primeiro lugar as missões empresariais, que poderiam ser mais frequentes e orientadas quer para determinados sectores económicos, quer para certas regiões do Brasil.
Em segundo lugar, a Agência Portuguesa para o Investimento poderia abrir uma ou várias delegações permanentes no Brasil, iniciando aí uma continuada acção de promoção e até de preparação de dossiers. Isto parece-me essencial e urgente.
Em terceiro lugar e para aproveitar todas as oportunidades abertas com o acordo recentemente firmado entre a União Europeia e o Brasil permitindo a participação de empresas e centros de investigação brasileiras nos Programas-Quadro de Investigação e Desenvolvimento da União, as Universidades e Centros de Investigação portugueses deveriam entrar em parcerias com instituições similares brasileiras. Também por aqui se poderia efectivar o desejado choque tecnológico.
Assim poderia Portugal desempenhar uma função de plataforma das empresas brasileiras que contribuiria para a modernização da economia portuguesa e permitiria aumentar as exportações para a Europa. Exactamente aquilo que necessitamos urgentemente.
Mas para isso o Governo deveria ter uma estratégia de atracção do investimento brasileiro, empenhada e consistente. Que não existe. Mas que será urgente aplicar antes que os espanhóis nos tenham mais uma vez ultrapassado.

António Calado Lopes

BANALISTAS ou O DIABO É “COMO FAZER”


Imagine, leitor, que o jornal desportivo da sua predilecção, um belo dia, titulava logo a abrir, em texto cifrado e letras gordas, o seguinte: “Treinador aponta estratégia para ganhar próximo campeonato: ter mais pontos que os adversários”. Em dia sim, a notícia talvez provocasse uns sorrisos. E provavelmente viria à lembrança dos mais entradotes a célebre boutade de Bjon Borg, quando lhe perguntaram qual o segredo para levar de vencida, nos courts, todos os adversários. “Dar sempre mais uma pancada que eles” respondeu Iceborg – dando por adquirido que a sua bola, nessas decisivas pancadas, nunca falhava o campo (aos génios, tudo se perdoa, quanto mais estas minudências...). Agora, se fosse num daqueles dias em que exigimos valor por qualquer cêntimo gasto, a sua reacção, estou certo, não seria muito diferente da minha: “Estão a gozar! Apresentarem como solução bem meditada o que não passa, afinal, do mesmo, dito apenas de maneira diferente”. Simples jogos de palavras, que nada acrescentam, nem à acção, nem à compreensão: tautologias, diriam os eruditos; lapalissadas, banalidades, rematávamos nós.
Ora, é exactamente a isto que temos assistido nestas últimas semanas quando, a propósito da crise em que Portugal caiu, membros proeminentes da nossa elite vêm a público revelar que a salvação está, unicamente, na capacidade competitiva das empresas portuguesas nos mercados externos. Será que estas afirmações tão categóricas adiantam alguma coisa?
A ideia salvífica é, obviamente, “empresas competitivas”. Que o sejam cá dentro ou lá fora é completamente indiferente: Portugal está numa união económica e nada protege o seu mercado interno da concorrência internacional. Quem não aguentar a concorrência ao pé da porta, também não irá prosperar lá longe. Em suma: há empresas competitivas, ponto final.
Dir-se-ia, pelo teor de tais afirmações, que as empresas são uma das vias possíveis para o crescimento económico. Outras vias existiriam - mas ficaram, desde logo, descartadas, sem sabermos muito bem porquê. Acontece que essas outras vias não existem. Para produzir bens (e serviços) com tecnologias acima do rudimentar são indispensáveis organizações dedicadas exclusivamente a tal fim – isto é: empresas. Poucos serão aqueles de nós que, sozinhos, conseguem participar directamente nos circuitos comerciais (até os jogadores de futebol necessitam de clube, os artistas, dos seus grupos, etc.). E os que o fazem, salvo raríssimas excepções, nada mais têm para oferecer senão bens modestos, destinados a um círculo restrito de compradores que vivem pela vizinhança – ou seja, engrossam o sector dos bens transaccionáveis (bens que não entram no comércio internacional). Falar de actividade económica, a crescer ou a cair, é, pois, falar de empresas. Contudo, aquelas afirmações deixam entrever, ainda que de forma discreta, uma mudança radical no pensamento económico, de raiz keynesiana, que tem moldado a economia portuguesa desde finais dos anos 60: não mais estímulos dirigidos à procura, onde a despesa pública assume papel preponderante; venham de lá, agora, as medidas totalmente voltadas para o que condiciona a actividade empresarial (supply-side economics). Ficou apenas por dizer quais medidas, pormenores sem importância...
Quando, glosado até à exaustão, este tema da competitividade se esgotar (como aconteceu já com o da produtividade), seguir-se-lhe-á o da inovação (somos assim: encantamo-nos com palavras que soem bem, mas deixamos displicentemente para outros a aborrecida tarefa de ver como se faz). Entretanto, continuaremos a ignorar que competitividade, e a inovação que a revigora, são entes delicados, que pedem ambientes propícios – ambientes que não encontram em Portugal. Inovar significa experimentar, correr o risco de não ser bem sucedido; competir é expor-se ao risco de perder. No modelo de mercado, a ideia chave é oferecer bens que outros apreciem e pelos quais estejam na disposição de pagar bom dinheiro – mas nada nele garante (salvo as imperfeições de mercado, a viciação das regras, as intromissões abusivas do poder político ou a corrupção) que uma empresa tenha sucesso, ou continue a ter sucesso, indefinidamente. O modo como se trata o insucesso, a insolvência, como se regula a “destruição criadora” é, assim, determinante da inovação e da competitividade. Entre nós, porém, instalaram-se, há muito, duas ideias perversas: a de que as empresas existem para sempre, imunes aos altos e baixos dos mercados; e a de que o empresário, como quem conduz um automóvel, cria risco para terceiros e, consequentemente, deve ser considerado culpado até conseguir provar a sua inocência. Duvida, leitor? Um exemplo: a lei portuguesa, quando confere ao juiz de falências poderes investigatórios, como se ele estivesse perante um crime, está a tratar com suspeição o empresário mal sucedido. Nestas condições, arrisca quem já estiver por tudo, ou quem tiver assegurado de antemão que nunca irá falhar – motivações que, ou não levam longe no comércio internacional (a primeira), ou são impossíveis de aí concretizar (a última).
Competitividade e inovação florescem, apenas, em ambientes de permanente exigência - o que, nas empresas, é sinónimo de boa governação e de exaustiva prestação de contas. A lei fiscal, porém, ao discriminar a distribuição de resultados (tributando-os, primeiro, em sede da empresa que os regista e, depois, no património de quem os recebe) relativamente ao serviço da dívida (os juros e outros encargos financeiros suportados são considerados custos fiscais), favorece objectivamente as “empresas de patrão” fortemente endividadas, onde a prestação de contas é uma formalidade inútil e o risco criado se multiplica. A existência de sócios minoritários interessados, acima de tudo, nos resultados distribuíveis é, sabemos hoje, um factor incontornável da competitividade. Estranho que quem se preocupa legitimamente pela crise que o País atravessa conviva pacificamente com o quadro jurídico-fiscal castrador que as empresas aqui estabelecidas são chamadas a observar. Talvez porque nunca se viu na contingência de ser empresário.
Esta insistência na competitividade externa é curiosa, quando se sabe que a política monetária (sim! pode haver estratégias monetárias locais no âmbito de uma união monetária) prosseguida por omissão (ou será demissão?) desde a entrada na zona euro consiste, exclusivamente, na estimulação da procura interna, com especial carinho pelos bens não transaccionáveis. E que nenhum Governo cuidou ainda de promover esquemas minimamente eficientes para a cobertura do risco de crédito nas exportações, como se qualquer tropeção neste domínio fosse, ou imputável à azelhice de quem exporta (e não há que premiar os azelhas), ou à fatalidade (que não está ao alcance dos simples mortais contrariar, como se sabe).
Tudo isto nos ensina que as nossas elites se encontram ainda na fase primordial, oulanoviana, do “Que fazer?” A inovação e a competitividade, porém, só se oferecem a quem sabe como fazer, arrisca - e faz.


A. Palhinha Machado
Maio 2005

O REFERENDO EUROPEU


Vou votar NÃO no próximo referendo sobre o projecto que nos é proposto de Constituição para a União Europeia.
Uma primeira razão fundamental é o modo como está redigida a alínea 2 do artigo I-3 sobre os objectivos da União que diz:
"A União oferece aos seus cidadãos um espaço de liberdade, de segurança e de justiça sem fronteiras interiores, e um mercado interior onde a concorrência é livre e não falseada."
Se neste artigo não estivesse incluída a expressão " não falseada", ponderaria.
Com esta redacção não aceito dar o meu aval. Não se trata de uma questão de somenos.
Todos estamos de acordo em que a União deve ser um Estado de Direito. Tal significa que os litígios devem ser decididos pelos tribunais. Sem a expressão "não falseada" no citado artigo, em caso de litígio entre uma entidade pública e um conjunto de empresas interessadas em defender interesses privados, um tribunal para decidir terá de ponderar convenientemente o caso. Com a referida expressão, um tribunal decidirá quase automaticamente em favor dos privados.
Cito um exemplo, as Câmaras Municipais, entidades públicas, são responsáveis pela conservação e manutenção dos cemitérios. Para isso são obrigadas a manter um corpo de coveiros que abrem as covas. Mas habitualmente não se encarregam dos funerais. Quando alguém morre, uma série de empresas privadas (e ao que parece já bastante internacionalizadas em Portugal) apressam-se em oferecer aos familiares os seus serviços para os fazerem.
Tem uma Câmara o direito de, usando os meios de que dispõe, assegura aos seus munícipes funerais dignos com preços modestos, que poderiam ser iguais para todos?
As empresas funerárias aceitariam esta actividade das Câmaras sem a contestar em tribunal?
Esteve em curso, e não sei se já terminou num tribunal português, um litígio em que as empresas funerárias contestaram às confrarias o direito de fazer os funerais dos seus próprios membros.
Como decidirá amanhã sobre esta matéria um tribunal europeu se, para assegurar as regras de um mercado livre e não falseado, neste caso da exploração da morte, ficar incluída na Constituição europeia a referida expressão "não falseada"?
Este projecto de Constituição europeia toca as nossas vidas muito mais de perto do que à primeira vista pode parecer.
[O Dr. Ludgero Pinto Basto, de 96 anos, comunista e anti stalinista, como lhe chamou um jornal, foi a enterrar há dois dias. Era amigo ele e era uma das pessoas com quem mais gostava de falar. Este artigo começou, de facto, quando olhava os coveiros que lhe lançavam terra na campa. É quase a continuação de uma fala com ele e é uma homenagem muito sentida que lhe presto.]
O actual projecto não tem a limpidez da Constituição dos Estados Unidos que, liminarmente, afirma que todos os homens são iguais. Não o eram quando foi adoptada. Até havia escravos. Mas a afirmação ficou a meta da qual, através de longas lutas, os Estados Unidos se têm aproximado.
Os nossos "constituintes" fizeram um projecto com 448 artigos e alguns textos anexos, em que procuraram regulamentar praticamente em definitivo, as liberdades, os direitos e as regras de funcionamento. Contaram com a desatenção dos cidadãos para o fazer aprovar, e há quem ameace com o caos se for rejeitado.
Se a França, a Holanda e eventualmente outros países votarem NÃO, será simplesmente necessário fazer uma revisão do projecto, o que não tem nada de espantoso. A União tem um Parlamento que pode perfeitamente nomear uma comissão para elaborar uma versão que possa ser aceite. No actual projecto há partes que praticamente ninguém contesta, nomeadamente, a parte que diz respeito à composição dos órgãos europeus, que parece uma proposta equilibrada e inteiramente aceitável por Portugal.
Há, no entanto, um artigo que nos diz muito directamente respeito, e para o qual o país deve estar atento se houver uma revisão.
É o artigo I-13 que diz que União tem competência exclusiva nos seguintes domínios:
"……………………..
d) na conservação dos recursos biológicos do mar no quadro da política comum da pesca;
……………………… "
Concordo com este artigo, mas não com a interpretação e utilização que, com antecipação, lhe está a ser dada. A política comunitária da pesca é definida em absoluto paralelismo com a política agrícola nos Artigos 225 a 232 sem, em parte alguma, ser referida uma transferência para a Comunidade, da soberania dos países sobre os seus territórios continentais, …ou marítimos.
A disposição do artigo 13, que devia ser entendida como uma condição a respeitar pelo estado soberano e pela política comum sob controlo da Comunidade, tem, no entanto, sido entendida como a indicação de uma transferência de soberania dos estados para a Comunidade.
A situação é igual à das riquezas do fundo do oceano, que continuam a pertencer aos países que têm, naturalmente, de respeitar normas ambientais comunitárias.
No caso de haver revisão do projecto, entendo, assim, que Portugal, para deixar o assunto bem esclarecido, deve exigir que a alínea d) acima transcrita, tenha o acrescento:
"…… sem pôr em causa a soberania dos Estados".
Sem isto, arriscamo-nos a ver a Comunidade, "em nome da conservação dos recursos biológicos", a atribuir licenças de pesca a países quer já delapidaram os seus.

Lisboa, 27 de Maio de 2005

António Brotas

UM PIONEIRO DO LIBERALISMO ECONÓMICO EM PORTUGAL.

NOTAS DE LEITURA SOBRE A GUERRA E O COMÉRCIO LIVRE
DE FREDERICO DE LA FIGANIÈRE (*)

Sendo possível acabar com a guerra no mundo, estabelecendo a paz universal, o meio não consiste em aumentar os terríveis efeitos das armas de destruição, mas sim e unicamente em conciliar e ligar de tal modo os interesses materiais das diferentes nações, que eles apresentem uma barreira impenetrável contra quaisquer dissensões. (A Guerra e o Comércio Livre, p. 4)

1. Enquadramento Biográfico e Contextual
Frederico Francisco Stuart de la Figanière e Mourão, fidalgo-cavaleiro da Casa Real, é uma figura injustamente esquecida da cultura portuguesa do século XIX.
Desde logo, pouco se conhece da sua biografia.
Dos parcos elementos disponíveis, sabe-se que nasceu em Nova Iorque a 2 de Outubro de 1827, que se distinguiu como diplomata e publicista e que foi graduado em visconde a 25 de Maio de 1870. Não se conhece sequer a data exacta da sua morte.
Contudo, o seu trabalho, designadamente em economia política, que aqui consideramos, mereceria outro interesse, atento o facto de ser, sem contradição, o mais informado e consistente arauto do liberalismo económico entre nós e o mais precoce dos seus epígonos.
Entenda-se, pois, este contributo, breve e assistemático, como um primeiro exercício de restituição de um pensamento fecundo e de reabilitação de um autor imerecidamente ignorado.
Sem dúvida que o seu lavor intelectual vai mais além das estreitas margens sob as quais o consideramos aqui.
Na sua obra principal, A Liberdade e a Legislação vistas à luz da Natureza das Cousas, de 1866,(1) encontramos todos os principais tropos do liberalismo oitocentista, na sua variante moderada e reformista, como o primado do indivíduo e dos seus direitos imprescritíveis sobre as formas de organização da sociedade e do Estado, a solidariedade irrefragável entre a igualdade civil e a desigualdade social, a importância do equilíbrio entre o elemento aristocrático e o elemento democrático, etc., mas também interessantes tomadas de posições acerca de tópicos controversos então em debate, como o municipalismo ou a organização do sistema eleitoral.
É, porém, especificamente no aspecto económico que hoje nos queremos deter.
Como é sabido, os pensadores liberais portugueses de Oitocentos são-no, em regra, também no domínio económico e, portanto, optam genericamente pela doutrina livre-cambista.
Herculano é-o decididamente. (2)
Mouzinho não se debruça especificamente sobre a questão, mas a sua postura a respeito da propriedade rural é marcadamente liberal.
É essa desde logo a posição que expressa no Relatório do Decreto de 13 de Agosto de 1832, que consagra a emancipação da terra pela transformação dos forais em bens próprios dos donatários e onde se lê emblematicamente:
Sem a terra ser livre em vão se invoca a liberdade política.
E uma vez mais, quase dez anos passados, em estilo de epigrama parlamentar: (3)
Sr. Presidente, parece-me indispensável para quem quer estabelecer a liberdade num país, estabelecer a liberdade do solo. Quando um homem está na presença de um facto de restrição, a sua alma faz-se restrita e pequena: é impossível que um homem seja morgado e não tenha na cabeça ideias mesquinhas; é impossível que um indivíduo seja foreiro e não tenha ideias mesquinhas na cabeça. (...) Por consequência, é preciso que a terra seja livre: demasiada terra temos escrava.
Mas o mais abalizado e desenvolvido contributo nesta matéria vem-nos precisamente do visconde de la Figanière, que é, simultaneamente, o mais original paladino do liberalismo económico no Portugal de Oitocentos.
Encontramos nele, a título de tese principal, a defesa do livre-cambismo como princípio indissociável e decorrência necessária do liberalismo político: (4)
Na nossa sociedade, o princípio da liberdade individual existe e tem garantias; todos estão portanto no caso de concorrer para o equilíbrio das riquezas; para todos há um benefício no trabalho, benefício variável e que depende dos esforços do indivíduo; todos os homens prestam-se serviços reciprocamente e todos tiram o correspondente proveito. Neste princípio de liberdade, que abrange o de livre concorrência, está a salvaguarda da organização moderna; produz uma reacção contra os maus efeitos que, faltando esta condição, não deixaria de causar a acumulação das riquezas.
Esta tese é exposta no opúsculo A Liberdade e a Legislação vistas à luz da Natureza das Cousas (1866), mas sobretudo em A Guerra e o Comércio Livre (1854), (5) que lhe é integralmente dedicado, dentro do espírito do seu objectivo confesso, que consiste em mostrar que “o princípio do comércio livre”, se for “adoptado lealmente por todas as nações”, é “o único meio de tornar impossível a guerra”. (6)
Em conformidade, a doutrina aí preconizada é a de que a generalização do comércio entre as nações, na medida em que tenha por consequência a criação de interdependências estreitas, recíprocas e globais, é a única prevenção segura, e esta absolutamente eficaz, contra a guerra.
O argumento do ensaio é, resumidamente, o seguinte:
1. A influência do interesse recíproco é mais eficaz do que o sentimento de medo e do que o poder da persuasão na discussão da guerra entre as nações.
2. Assim, se for simplesmente possível “acabar com a guerra no mundo, estabelecendo a paz universal, o meio não consiste em aumentar os terríveis efeitos das armas de destruição, mas sim e unicamente em conciliar e ligar de tal modo os interesses materiais das diferentes nações, que eles apresentem uma barreira impenetrável contra quaisquer dissensões”. (7)
3. Com efeito, suponha-se que duas nações estão “tão estreitamente ligadas nos seus interesses comerciais que uma não possa dispensar as produções que lhe fornece a outra sem terríveis consequências”. Neste caso, “se esta situação for recíproca, a guerra entre elas será quase impossível”. (8)
4. Ora o modo de generalizar à escala mundial essa rede de interesses recíprocos é “o comércio livre, concepção grandiosa, nascida do génio enérgico e altamente positivo do século em que vivemos”. (9)
5. Assim, na medida em que a maior parte dos “países da cristandade” são complementares do ponto de vista dos produtos que cultivam, extraem ou transformam, bastaria que cada país se dedicasse exclusivamente “àqueles ramos de indústria que lhe indicassem as condições especiais do seu território, abandonando todos aqueles cuja existência dependesse da protecção ministrada pelo sistema restritivo” (10) para que “os povos, não podendo nem querendo prescindir de cousas que se lhes têm tornado necessárias pelo uso e não as achando em casa”, fossem “buscá-las fora”, (11) generalizando deste modo o comércio, de que é um resultado “a dependência recíproca de todas as nações entre si”. (12)
É certo que nem o núcleo fundamental da tese nem o argumento são inteiramente novas, uma vez que a importância do comércio internacional e o papel da paz na sua universalização constituem um legado essencial dos fundadores da economia política.
Mas a verdade é que a ideia de uma relação directa e necessária entre o comércio livre e a paz mundial, a antecipação da doutrina em prol da globalização e da crítica aos meios convencionais de dissuasão, designadamente por recurso aos arsenais de destruição massiva, são inteiramente novas, mesmo em termos da filosofia e economia políticas coevas.
Estes factos chegariam para fazer dele um pioneiro do pensamento político, dentro do campo teórico em que se inscreve, não fosse dever-se-lhe o mérito suplementar de ter sido ele, isolada e solitariamente, a introduzir a tematização e discussão destes temas em Portugal.

2. Notas de Leitura
Defende este pensador oitocentista, acabamos de o ver, que o comércio internacional seria o cimento da paz – na Europa, sans doute.
A tese é original, quando situada na época em que foi defendida.
Desde o século anterior, com Adam Smith, e, décadas mais tarde, com Stuart Mill e David Ricardo, o comércio internacional aparece no centro do desenvolvimento económico.
Mas nem mesmo Ricardo sustentou a relação directa e necessária entre comércio internacional e paz. Para todos estes autores, o caminho traçado pelo comércio internacional seria longo e levaria a muitas paragens, não sem antes proporcionar desenvolvimento económico e prosperidade a todos aqueles que conseguissem fazer prevalecer as suas próprias vantagens competitivas.
Uma dessas paragens seria, precisamente, a prevalência da paz entre os Estados porque, premissa de que não duvidavam, povos prósperos não se guerreiam. As teses sobre o imperialismo, ainda que distorcidas por lunetas ideológicas, aí vieram para demonstrar que entre a paz e a guerra havia mais que estômagos satisfeitos.
Esta ideia de que paz e prosperidade vão de par, fortemente enraizada ainda nos anos '60 (com a década para o desenvolvimento da ONU), suscita várias reflexões.
A primeira é a de ilibar os referidos pensadores da acusação de miopia (irremediavelmente burguesa, segundo Marx), se não mesmo de confiança cega em preconceitos vitorianos. Quem não tenha o hábito de pensar o futuro para mais tarde se rir das suas próprias ingenuidades, que atire a primeira pedra. Porque, nos primórdios da revolução industrial – esse solavanco que iniciou um processo de desenvolvimento sustentado, como hoje se diria – duas realidades se iam tornando cada vez mais nítidas:
1. Uma, as profundas diferenças em matéria de bem-estar e, em especial, a miséria daqueles que, arrancados à servidão da terra e desapossados de tudo, já não tinham economia de subsistência onde se refugiar.
2. A outra, a erosão das barreiras que, até então, tinham isolado o poder e a riqueza.
Na verdade, as mudanças de fundo não aconteciam tanto na possibilidade de acumular riqueza, pois isso era já comum desde a Baixa Idade Média, mas na protecção que o soberano passava a conferir, em geral, à riqueza acumulada, permitindo que ela fosse pacificamente obtida, pacificamente fruída e pacificamente transmitida.
Dito de outro modo, começava a ficar ao alcance de quem não beneficiava dos favores pessoais e imprevisíveis do poder soberano a oportunidade de acumular um património preferentemente não-fundiário e, em seguida, de iniciar uma linhagem que assegurasse a continuidade desse património.
É certo que, já antes, o jogo político passava pela trilogia: riqueza-poder-linhagem. Mas, até então, a riqueza era sobretudo fundiária, logo dificilmente divisível; a sua posse dependia principalmente do poder que exibisse quem a detinha; e a sua transmissão estava longe de ser facilitada (o regime dos morgadios revela, por antítese, como era difícil preservar e transmitir intacta a posse da terra).
O aparecimento de uma riqueza de raiz mobiliária que podia ser dividida facilitou as coisas – e, de algum modo, contribuiu para alicerçar o Estado de Direito, no qual o poder era cada vez menos uma vontade arbitrária e cada vez mais um corpo de regras gerais e abstractas, as iniciativas que levavam à acumulação de riqueza não conheciam entraves e as linhagens, agora de cavaleiros-de-indústria e de comerciantes-de-dinheiro, podiam ser iniciadas pacificamente.
Esta conjugação de afluência e de mobilidade social ascendente (em que o casamento desempenhou um papel fulcral, dando àqueles que só dispunham de riqueza ou poder recentes o acesso imediato a linhagens de longa data, e restituindo riqueza e poder àqueles que já nada mais possuíam excepto as suas linhagens) criou uma dupla convicção
Em primeiro lugar, só não ascenderia socialmente quem, de todo em todo, fosse despojado de mérito pessoal, quem fosse a excepção (daí as tentativas de Pareto, Walras, Jevons para provar a existência, já não de uma “mão invisível”, mas de um “óptimo social” indissociável da livre iniciativa).
Em segundo lugar, todos os que ascendessem seriam réplicas perfeitas daqueles que já tinham atingido a prosperidade (esta convicção ainda hoje persiste nas mentes bem-pensantes, como se a evolução social fosse um carreiro de formigas).
A conclusão de que a paz seria o resultado lógico da prosperidade seguia-se, como é bem de ver. (13)
Uma outra reflexão leva-nos a detectar um erro de perspectiva histórica.
Na altura, não houve a percepção de que a prosperidade tinha ainda uma base eminentemente territorial (os processos industriais eram ainda rudimentares e os ciclos de produção demasiado curtos) e que, por esse facto, aumentaria com a ampliação do território que para ela contribuísse.
Foi a fase dos impérios coloniais, da expansão geográfica, do desenvolvimento económico extensivo e da formação de blocos económicos de cariz nacional, fase que veio revelar à saciedade como os prósperos podiam ter interesses divergentes, se não mesmo conflituantes.
Esta fase teve três andamentos distintos. Um primeiro, de alastramento, que não punha ainda em causa a premissa, levou as potências expansionistas a capturarem para os respectivos territórios de exclusividade povos e territórios periféricos, subjugando os interesses locais que se lhes opunham. Um segundo, de contenção, em que as potências expansionistas entravam em choques pontuais, por vezes muito violentos e quase sempre por entrepostos actores, nas franjas dos respectivos territórios de exclusividade (Guerra da Crimeia, Campanhas Afegãs e Guerra Russo-Japonesa, por exemplo). Por fim, o choque frontal entre potências expansionistas, visando a eliminação radical de competidores (Guerra Civil Americana, Guerra do Ópio e Grandes Guerras europeias; a Guerra do Pacífico foi iniciada pelo Japão como um segundo andamento, mas foi conduzida pelos Estados Unidos como um terceiro andamento).
A paz – aquilo que a simples prosperidade manifestamente não conseguiu garantir, como esses quase cem anos que se iniciaram com a Guerra Civil Americana demonstravam sem cessar – foi procurada pela ONU em diversas vertentes, uma das quais justamente o comércio internacional, através da OECE/OCDE, do GATT e, mais recentemente, da WTO.
A teoria sobre a contribuição decisiva do comércio transfronteiriço para a prosperidade mundial é abundante. Mas só muito recentemente o comércio internacional tem sido visto, não pelos teóricos da economia, naturalmente, mas pelos teóricos da política, como um instrumento da paz (de que as adesões da Rússia e da República Popular da China à WTO são excelentes exemplos).
Ora, neste aspecto, o visconde de la Figanière é de facto um percursor.
Todavia, tal como os pensadores que acima referi se equivocaram, por não terem visto com clareza todas as cambiantes da prosperidade, também este aristocrata se equivocaria se visse no crescimento do comércio internacional um indicador seguro da paz.
Uns não ponderaram devidamente o facto de as tecnologias conhecidas terem ainda um ciclo demasiado curto para fazer com que a malha das interdependências económicas se apertasse. E também descuraram o que significava uma distribuição demasiado desigual dos níveis de desenvolvimento económico e das matérias primas que os proporcionavam – cenário que incentivava a criação de áreas de exclusividade.
Ao outro, escaparia o facto de, sob a designação de comércio internacional, se acolherem realidades muito diversas: desde as correntes comerciais típicas do período de desenvolvimento extensivo (fluxos paralelos entre metrópoles e territórios exclusivos, pondo em circulação daquelas para estes últimos bens que incorporam tecnologias de ponta e capitais, recebendo, em retorno, matérias primas, bens produzidos com tecnologias rudimentares ou já maduras, e rendimentos de capitais) até aos padrões de comércio próprios de economias que se interpenetram em todas as fases dos respectivos processos produtivos e na movimentação dos capitais.
Só neste último cenário é que se pode admitir que um tal grau de interdependência “simétrica” faria com que qualquer agressor estivesse a dar um tiro no pé – na medida em que não conseguiria ficar imune aos danos que infligisse no seu adversário.
Este, aliás, um argumento forte para quem propugna pela globalização – pois só ela poderá conduzir a um cruzamento de interesses interestaduais de tal modo denso que seria insensatez rompê-lo.
Duas notas finais.
A tese do Visconde de la Figanière vem afirmar que, num cenário de intensas trocas de bens, serviços e capitais (e implícitamente de pessoas), não é sensato iniciar uma guerra – mas a arte da guerra é, justamente, a ciência da insensatez.
A insensatez pode, também, ser sensata – o que no caso da tese em apreço significa fazer a guerra sem a destruição do adversário, ou seja, mantendo intacta a capacidade produtiva do oponente e preservando os seus meios de pagamento internacional.
Não é preciso, portanto, grande imaginação para ver como, no quadro de uma economia global, a guerra poderia (poderá?) ser conduzida sensatamente. No entanto, nada disto diminui o mérito que a Figanière pertence por inteira justiça. Foi ele, como parece, o primeiro a ver que é preciso, no plano relacional, algo mais do que a prosperidade para nos aproximar, a todos, da paz.

Algés, Março – Junho 2003

ANTÓNIO PALHINHA MACHADO e ANTÓNIO PEDRO MESQUITA
(*) O presente artigo é constituído por duas partes, da responsabilidade, respectivamente, de António Pedro Mesquita e António Palhinha Machado. A primeira será amplamente retomada no capítulo relativo ao pensamento político do século XIX, a sair no IV volume da História do Pensamento Filosófico em Portugal, que se encontra no prelo.

(1) A liberdade e a legislação vistas à luz da natureza das cousas, Petropolis, Typographia de Bartholomeu Pereira Sudré, 1866.
(2) Ver, em especial, “Liberdade e Restrição ou a Questão dos Cereais” (1856) e “Cartas ao Conselheiro Carlos Bento da Silva a propósito da emigração portuguesa” (1873-1875). Mas atente-se também nos seus artigos em prol da extinção do proletariado rural pela generalização da enfiteuse: “Projecto de Decreto de 1851”; “Sobre a Questão dos Forais” (1858); novamente “Cartas ao Conselheiro Carlos Bento da Silva a propósito da emigração portuguesa” (1873-1875).
(3)Discurso de 15 de Abril de 1839 sobre o Projecto de Lei da Comissão dos Forais, Obras, II, ed. Miriam Halpern Pereira, Lisboa, FCG, 1989, pp. 1660-1661.
(4) A Guerra e o Comércio Livre, pp. 27-28.
(5) A guerra e o commercio livre: ensaio, Lisboa, Typographia do Panorama, 1854.
(6) Op. cit., p. 3.
(7) Op. cit., p. 4.
(8) Op. cit., p. 8.
(9) Ibid.
(10) Op. cit., p. 22. Mas não deixa de acrescentar prudentemente que “o equilíbrio seria talvez mais perfeito se a divisão das nações fosse outra e se em vez de se achar, como hoje, feita segundo o capricho dos homens, fosse ordenada conforme as grandes divisões naturais” (p. 24).
(11) Op. cit., p. 23.
(12) Op. cit., p. 22.
(13) É interessante notar que a esta ideia de que os prósperos só têm interesses comuns sucedeu a premissa, bem marxiana, de que os proletários nunca mais lutariam uns contra os outros. A realidade desmentiu ambas.

Divagando pela utopia – 12ª parte

Resumo da 11ª parte: o objectivo de quem quer acabar com o FMI é o de pôr um fim à concorrência que este faz à banca privada; o monetarismo puro não é suficiente para debelar as crises por que passam alguns países, nomeadamente os que recorreram aos mercados internacionais de capitais; o FMI desempenha um papel relevante nas políticas de estabilização dos países em dificuldades; a flutuação das taxas de câmbio não provoca a melhoria directa da competitividade das exportações; as desvalorizações discretas são absurdas; devem ser constituídos Fundos Monetários regionais; a taxa de câmbio do Yuan é fictícia.


Plausível – Ora cá estamos de volta. Desta vez o intervalo foi bem mais curto. Estávamos a conversar sobre a China e o câmbio do Yuan.
Utópico – A China nada tem a ver com a democracia nem formalmente reconhece autonomia à economia de mercado. Continuam naquela de “um país com dois sistemas” o que, a bem dizer, acaba por não ser carne nem peixe. São uma economia em vias de ocidentalização mas com uma envolvente política completamente anacrónica com a opção económica aparente. Estão a fazer um percurso completamente contrário ao da Rússia.
Plausível – Como assim?
Utópico – A Rússia começou por se abrir politicamente e deixou a economia ao abandono; a China está a mudar a economia mantendo a estrutura política.
Plausível – E o que é que resultou em cada caso?
Utópico – A economia russa foi absorvida pelo rodopio político, perdeu o norte e foi com alguma rapidez que “bateu com a barriga no fundo”. Está a recuperar lentamente desde que se reinstalou uma certa autocracia. A China comunista tem-se deixado ir invadindo controladamente pelos chineses de Taiwan, de Hong-Kong e de Macau que vão instalando os negócios que o poder central autoriza e, por conseguinte, não têm sofrido solavancos do tipo russo.
Plausível – Na sua opinião, então, o que salva as situações é a autocracia.
Utópico – Não, não penso nada disso. Acho mesmo o contrário. Os povos têm o direito de viver em democracia pois não há ninguém que tenha nascido com um estatuto especial que lhe permita mandar nos outros. Eu sou filosoficamente republicano e democrata cristão. As perspectivas cristã e republicana são totalmente congruentes neste sentido que tem a ver com o direito natural, com a democracia, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Portanto, não acho de todo que a autocracia seja a salvadora da situação. O que eu acho é que é necessário um nível mínimo de civismo para que se possa construir a democracia. A democracia aprende-se, não se decreta. Portanto, as pessoas têm que ir vivendo em micro-ambientes democráticos para que a sua profusão acabe por construir um macro-ambiente democrático. Isto, partindo do pressuposto de que o conjunto de micro-ambientes induza à constituição de um macro-ambiente.
Plausível – À semelhança do que se passa com as dimensões micro e macroeconómicas?
Utópico – Sim, acho que sim. Todos sabemos que o somatório de muitas microeconomias não faz uma macroeconomia mas temos que reconhecer que não pode haver uma sã macroeconomia se as microeconomias incluídas não dispuserem de boa saúde. Portanto, voltando aos casos russo e chinês, o que eu noto é que aquelas sociedades passaram do feudalismo dos boiardos russos e dos Senhores da Guerra chineses para outros regimes igualmente castradores da responsabilidade individual. Trata-se, portanto, de povos que desconhecem em absoluto o que significa a palavra liberdade. Daí a confundirem liberdade com libertinagem vai um passo. Os russos demoliram os sistemas de controlo social a que a população estava habituada desde tempos imemoriais e a economia foi arrastada para o abismo da ruptura social, dos impérios mafiosos; os chineses mantiveram os sistemas de controlo social e têm estado a permitir a profusão dos tais micro-ambientes de responsabilização progressiva, as empresas privadas, de tal modo que até ao presente não se instalou a ruptura social e os mafiosos vêm sendo fuzilados com alguma regularidade. Eu tenho a esperança de que o progresso social, a criação de uma relevante classe média, acabe por determinar uma progressiva libertação social e, finalmente, a instauração de uma democracia de sentido ocidental.
Plausível – E acha que isso pode acontecer ainda no nosso tempo?
Utópico – Em qual tempo? No seu, que ainda não fez 30 anos, ou no meu que já tenho 60?
Plausível – Nos próximos 50 anos.
Utópico – Em princípio esse já não será propriamente o meu tempo mas isso é o que menos importância tem. O factor tempo tem no Oriente um significado muito diferente daquele que nós, os ocidentais, lhe atribuímos. Cem anos é um período relativamente curto na História do Império do Meio. Claro que, neste processo de ocidentalização de alguns conceitos que a China vem promovendo, é natural que o conceito “tempo” também possa sofrer alguma ocidentalização. Mas eu admito que dentro de 50 anos a China já nada tenha a ver com o que ela é hoje e muito menos com o que ela era há 10 ou 20 anos. Eu julgo que Taiwan é a amostra do futuro da China.
Plausível – Acredita na reunificação?
Utópico – David dominou Golias.
Plausível – Essa é uma figuração mitológica.
Utópico – Muito bem, assentemos os pés na realidade actual: as Zonas Económicas Especiais que a China fez instalar já hoje são praticamente dominadas por empresários chineses de Taiwan, Hong Kong e Macau. A reunificação política é menos importante que a económica. Se se tiver o útil, para quê esticar a corda e obrigar um dos lados a ter que se dar por vencido?
Plausível – Acha que não se vai repetir um processo à alemã?
Utópico – Não tenho uma bola de cristal que me revele o futuro mas, mais do que achar se isso vai ou não suceder, eu acho é que não vale a pena enveredar por esse tipo de caminhos. Repare que, dadas as diferentes dimensões, Taiwan não teria capacidade para fazer à China o que a Alemanha Federal fez à República Democrática Alemã. Os alemães ainda estão hoje a pagar a factura que lhes foi apresentada por “comprarem” um país inteirinho. Trata-se de um peso excessivamente pesado mesmo para a Alemanha que teve que fazer tudo de uma só vez. Na China, a coisa vai-se fazendo progressivamente, o que dói muito menos.
Plausível – E o câmbio do Yuan, tem alguma coisa a ver com o do Deutsche Mark?
Utópico – Com o do DDRMark, quer Você dizer.
Plausível – E isso significa que . . . ?
Utópico – Era o nome da moeda leste-alemã: Deutsche Demokratishe Republik Mark. Como se imagina, o DDRMark tinha um valor puramente político enquanto o DM, o da Alemanha Federal, tinha uma cotação definida em mercado. Ainda hoje se discute a decisão do Chanceler Helmut Kohl de ter feito a unificação monetária em vez de ter faseado o processo.
Plausível – E o que é que dizem esses críticos?
Utópico – Acham que os Neue Länder deviam ter passado a funcionar com uma moeda que começasse por valer cerca de metade do DM dos Alte Länder e que a pouco e pouco os valores se fossem aproximando.
Plausível – Mas dessa maneira, a unificação não se fazia.
Utópico – Exactamente. A unificação era um objectivo político e as perspectivas económica e financeira eram perfeitamente secundárias. Sob o ponto de vista económico, a RDA dispunha, como se viu, de um monte de sucata a que chamavam indústria e o resto da economia não tinha qualquer expressão no contexto internacional, nomeadamente o sector financeiro. Portanto, não foi por motivos económicos que a reunificação se fez mas sim – e apenas – por motivos políticos. E os problemas políticos têm que ter soluções políticas e não técnicas. Os críticos invocam uma solução tecnicamente muito interessante mas que impedia que se alcançasse imediatamente o objectivo político fundamental: a reunificação. E esta tinha um “timming” indiscutível. Tinha que ser feita imediata e completamente sob risco de se transformar num imbróglio muito complicado na cena internacional. Mas o mais curioso é que quem preconizava que na Alemanha reunificada deviam funcionar duas moedas, apoiou a criação do Euro como moeda única da UE. Então como é? No que ficam?
Plausível – E no caso chinês, o que vai suceder?
Utópico – Volto a dizer que não tenho nenhuma bola de cristal. Chamo, contudo, a atenção para a perspectiva completamente diferente deste caso em relação ao alemão. A RDA pertencia a um bloco que se desmoronara, era um país à deriva e tinha uma dimensão muito mais reduzida do que a Alemanha que estava do lado sólido. A China não está à deriva e é muito maior do que Taiwan. A Alemanha Federal conseguiu “engolir” a RDA mas ainda não a “digeriu” por completo ao fim de 15 anos. A substituição do DDRMark pelo DM traduziu-se num processo de emissão monetária sem o correspondente reforço do PIB. Bastaria isso para induzir um processo inflacionista muito arriscado. Está a ver o Banco de Taiwan com fôlego para uma operação semelhante para com o Yuan?
Plausível – Não, não estou a ver.
Utópico – Nem o Dólar de Hong-Kong somado ao Dólar de Taiwan e à Pataca de Macau. O que é importante no caso chinês não é que ocorra um processo de reunificação política mas sim de integração económica progressiva. E é bem de ver que quem tem que se adaptar é o gigante.
Plausível – Adaptar económica e politicamente?
Utópico – Exacto. Espero que o aparecimento duma grande classe média chinesa possa induzir uma mudança social significativa com resultados a nível dos direitos humanos, da liberdade de associação – nomeadamente sindical e patronal – para que num futuro mais ou menos próximo se possam constituir outros tipos de associações cívicas, nomeadamente partidos políticos.
Plausível – Estamos mesmo a divagar pela utopia, não estamos?
Utópico – Quando em Agosto de 1961 assisti localmente à colocação dos primeiros tijolos do Muro de Berlim, nunca julguei que pudesse vir a não me perdoar por não ter lá voltado para ver o derrube. Em 1961, o derrube do que estava nesse momento a ser construído também parecia uma utopia e, no entanto . . .
Plausível – Estou a ver que as Coreias é que poderão, então, vir a sofrer um processo ao estilo alemão.
Utópico – A ver vamos . . .
Plausível – Quando?
Utópico – Assim como a RDA era uma ficção soviética, também a República Democrática da Coreia é uma ficção chinesa. Ruiu a URSS e acabou a RDA; quando a China se deixar de proselitismo revolucionário, acaba nesse mesmo dia a Coreia do Norte.
Plausível – Voltando um pouco atrás, acha que é possível vir a ter um Yuan com câmbio decente?
Utópico – Desejo que sim, mesmo que isso signifique uma desvalorização do Dólar americano e, consequentemente, uma valorização do Euro. Trata-se de adaptações que têm historicamente que ser feitas e mais vale que o sejam controladamente do que por variações discretas. Mais vale um conjunto de pequenos tremores de terra com as placas tectónicas a ajeitarem-se pouco a pouco do que um terramoto do género deste que provocou o tsunami e deslocou a ilha de Samatra cerca de 20 metros. As variações cambiais discretas podem constituir autênticos flagelos; há que os evitar se estiver na mão do homem. E a adaptação do Yuan à plausibilidade cambial está perfeitamente ao alcance.
Plausível – Acha então que a China vai enveredar por uma política monetária?
Utópico – Mas a China tem uma política monetária! O que não significa é que consideremos essa política compatível com a globalização.
Plausível – O monetarismo, o liberalismo?
Utópico – Não sei. Duvido. Mesmo no mundo ocidental há quem não alinhe muito por esses diapasões. Mas o que eu acho mesmo é que cada um há-de arranjar sempre argumentos e mais argumentos para defender as teses em que acredita. Eu já tive um blog chamado “A convivência cultiva-se; a Fé não se discute” e esse é um “must” em que acredito mesmo: a Fé não se discute.
Plausível – Não acredita no ecumenismo?
Utópico – O proselitismo é muito mais forte.
Plausível – Mesmo na política?
Utópico – Sim, mesmo na política.
Plausível – Mas há quem mude de partido político . . .
Utópico – Há quem coma alheira para fingir que come chouriço.
Plausível – Muito prosaico, neste final.
Utópico – Diz muito bem: neste final. Sugiro-lhe umas férias pois agora tenho que me dedicar a uns trabalhos inadiáveis.
Plausível – Vai apagar algum fogo?
Utópico – Até final de Junho tenho que acabar o livro que estou a escrever.
Plausível – Muito bem, bom trabalho, até então.

Lisboa, Maio de 2005

Henrique Salles da Fonseca

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