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A bem da Nação

VOLTA NICK LIESEN, ESTÁS PERDOADO!


Há coisa de uns anos, no Oriente longínquo, lá para os lados de Singapura, um rapaz esperto e cheio de expediente levou à falência o Banco onde trabalhava – que, por sinal, era o Banco onde a Raínha de Inglaterra depositava umas poupanças.
Tudo se passou mais ou menos assim. O tal rapaz, apesar de ser vivo como poucos e de ter palpites que só ele, começou a contabilizar algumas perdas incómodas nos dinheiros que lhe estavam confiados. Circunstância duplamente aborrecida: punha em risco o bónus que ele contava receber no final do ano, e embaciava um tanto a imagem que ele, de si mesmo, fazia. Por isso, em vez de reconhecer essas perdas e mudar de estratégia – atitude recomendável quando se trabalha em terrenos tão escorregadíos como são os mercados financeiros – o bom do nosso rapaz (Nick de seu nome) resolveu esconder umas, persistindo na outra. E assim, de uma só penada, pensava manter intactos o bónus e a imagem.
Dissimular prejuízos nos mercados financeiros não é fácil, mas não é impossível – por uns tempos, pelo menos. Se não fosse a obrigação de divulgar, de quando em quando, a conta de ganhos e perdas, o problema até nem se punha – e o Nick poderia dormir descansado. Tanto mais que os mercados onde ele operava ofereciam já instrumentos (os derivados financeiros) que permitiam cobrar "à vista" proveitos (prémios), com o pequeno senão de exporem à possibilidade de grandes desembolsos, meses mais tarde (as chamadas "estratégias credoras", em tudo idênticas à actividade tradicional das companhias de seguros: cobra-se prémios, hoje, mas pode-se ter de pagar indemnizações, amanhã). Tratava-se, é certo, de desembolsos contingentes, que poderiam ser exigidos ou não, consoante o que viesse a acontecer, mais tarde, nos mercados – mas o que o nosso Nick tinha de sobra eram fézadas. Hélàs! Se uns desmancha-prazeres quaisquer lhe exigiam contas, as estratégias credoras vinham mesmo a calhar: geravam desde logo proveitos que cobriam os prejuízos apurados no dia-a-dia, e dispensavam o embaraço de pedir aos accionistas do Banco mais capital. Depois, bastava não contabilizar as dívidas contingentes – afinal, quem poderia afirmar, por então, que elas iriam ser exigidas? Contas equilibradas, problema resolvido. Venha de lá esse bónus – e podem "bater" umas fotos para a posteridade.
Porém, se o bom do Nick tivesse o seu Grilo Falante, este ter-lhe-ia segredado que, em qualquer estratégia credora, o prémio é a compensação que se recebe por assumir, de forma irrevogável, uma dívida, ainda que contingente. Ter-lhe-ia lembrado também que, se uma tal dívida fosse exigida, pagá-la implicaria um desembolso muitas vezes (para aí umas vinte vezes) superior ao prémio antes recebido. E concluiria, sábio e prudente, que estratégias credoras são só para quem sabe, e pode, dominar muito bem o risco a que se expõe – e, mesmo assim…
Como sempre, o que poderia acontecer, aconteceu – e o Banco do imprudente Nick não teve capital para tantos e tão vultuosos desembolsos. Faliu. Em sua defesa, o pobre Nick bem clamou que outros tinham feito o mesmo que ele – e, certamente, continuariam a fazê-lo. Insensível, o tribunal, com britânica fleuma, considerou que talvez – mas só ele, Nick, tinha mandado um Banco para a falência. Por isso: prá prisão, a ver se ganha juízo.
Esta história veio-me à ideia quando soube da solução hábilmente congeminada sabe-se lá por quem com o fim de trazer o deficit orçamental deste ano para níveis um pouco mais apresentáveis. Imaginem só. Uma estratégia credora! em que o prémio (o património dos fundos de pensões absorvidos, ou simplesmente integrados, na Caixa Geral de Aposentações) é contabilizado como receita firme, e as responsabilidades assumidas (umas firmes, outras contingentes) são atiradas para trás das costas, ficando a dívida pública miraculosamente intacta!
Ah! Nick, Nick. O que é que te passou pela cabeça, rapaz, quando decidiste ir trabalhar para tão longe?

A. Palhinha Machado
Consultor Financeiro
apm.bankinsight@oninet.pt

Divagando pela utopia – 5ª parte


Resumo da 4ª parte: a descoberta de petróleo está a mudar S. Tomé e oxalá que as instituições democráticas se reforcem num processo tão radical de passagem da miséria para a abundância; a monocultura do cacau em regime de trabalho intensivo não faz mais qualquer sentido e o país deve viabilizar-se pelo Turismo deixando que as receitas do petróleo sirvam para acções extraordinárias; para evitar a cubanização agrária, S. Tomé deverá ter uma política liberal de preços que permita ir substituindo as importações alimentares.


Plausível – Então, lá foi a enterrar o Zao Ziyang . . .
Utópico – Sim, com 85 anos de idade e depois de ter entrado em coma num hospital de Pequim.
Plausível – O que é que recorda dele?
Utópico – Não muito; praticamente só dei por ele quando soube que alguém muito alto na hierarquia da PC chinês se tinha oposto à repressão na Praça Tien An Men aquando das manifestações a favor da democracia.
Plausível – E não acha que foi uma pena ele ter sido corrido por causa disso?
Utópico – Tenho dúvidas . . .
Plausível – O quê? Tem dúvidas? Como assim?
Utópico – Eu acho que o nosso modelo de democracia é o único que nos serve, na civilização ocidental e lembro-me sempre da frase de Churchill em que ele dizia qualquer coisa do género de que “a democracia é um sistema muito mau mas ainda não foi inventado outro melhor”. Mas o que é bom para nós, ocidentais, pode não servir a outros que tenham civilizações diferentes. Isto da democracia não é um pronto-a-vestir que sirva a toda a gente.
Plausível – E a quem é que não serve?
Utópico – Eu acho que não serve a sociedades medievais como todas as que seguem modelos teocráticos, nomeadamente o islâmico e acho que não é com um toque de magia que se passa de uma tirania de séculos para uma democracia à moda ocidental. A democracia é uma obra da burguesia, da classe média, resulta da estabilidade económica e da maturidade social. A ordem dos factores não é minimamente arbitrária: em primeiro lugar, há que criar uma ampla e saudável classe média e só depois é que se pode ter uma democracia. Impor um sistema democrático a uma sociedade medieval ou a uma que, embora já não sendo medieval no nosso sentido europeu, não disponha de uma classe média estável e preponderante, é dar um presente de mão beijada aos oportunistas, aos manipuladores, às máfias. Veja a Rússia e a China.
Plausível – Que semelhanças têm?
Utópico – Na perspectiva que refiro, a única semelhança é a de terem ambas estado submetidas a regimes comunistas. Mas a Rússia passou em 1917 dos czares de inspiração divina e seus apoiantes boiardos feudais para um regime totalitarista que nivelou todos por baixo durante 70 anos como proletários sem direito à imaginação, para uma desordem política e um salve-se-quem-puder económico do qual saíram vitoriosos os oportunistas e que só marginalmente tem criado uma classe média que eu desejo que tenha um mínimo de sustentação. Puseram o carro à frente dos bois: democracia política “soit disante” primeiro e reformas económicas depois. E no reino da bagunça, prosperam os marginais. A China tem feito exactamente o contrário: as reformas económicas estão em curso e ninguém sabe quando chegam as reformas políticas; a preocupação parece ser a de construírem uma classe média de génese económica antes de lhe darem direitos políticos. É para mim evidente que, dentro deste esquema, Hong-Kong e Macau foram um grande empecilho para a política chinesa e – como temos observado – tem havido algumas fricções políticas pois o regime político chinês não se quer transformar antes que exista uma classe média preponderante que possa implementar uma democracia que nós, os ocidentais, consigamos entender. A democracia é bem recente em Taiwan e, mesmo assim, com algum músculo do Kuomintang apesar de se tratar de um país onde não há miséria e de há décadas dispor de uma classe média muito empreendedora e com relevo a nível internacional; a quase-democracia em Hong-Kong – para não lhe chamar pseudo democracia – sempre funcionou sob a égide de um Governador britânico e os partidos políticos só vingaram plenamente sob a orientação do último Governador, Chris Patten; em Macau, a democracia é ou foi tão jovem quanto o 25 de Abril de 1974. Os problemas económicos chineses são suficientes para que não haja tempo para tratar dos temas políticos. Cito só uma vertente na China actual: a política monetária e a gestão conjunta da Pataca de Macau, do Dólar de Hong-Kong, do Yuan convertível e da outra moeda que funciona lá dentro para o povo, que nem sequer é convertível e a que nem conheço o nome. Acho que não passa de uma emissão de senhas de racionamento a que pomposamente dão o nome de moeda.
Plausível – E vão quantas?
Utópico – Se às senhas de racionamento reconhecermos a qualidade de moeda, são quatro a funcionar naquilo que dizem ser uma unidade económica.
Plausível – Não deixaria de ser curioso fazer uma comparação com a UE.
Utópico – Você não me espicace . . .
Plausível – Não, agora não o espicaço; prefiro que continue a falar da democracia e de Zao Ziyang.
Utópico – Não tem muito mais de que falar. O homem morreu de velho depois de ter dito que não achava bem que se repreendesse a democracia. Aos nossos olhos foi uma vítima mas aos olhos da realidade histórica chinesa foi um perdedor que julgou por bem introduzir um conceito que eventualmente está muito longe dos parâmetros civilizacionais – e, talvez mesmo, de conveniência circunstancial – do país de que era chefe por nomeação de uma clique que, por sua vez, também é autonomeada. Mas aqui, afinal, também estou eu a utilizar parâmetros da nossa civilização europeia para julgar uma circunstância nascida numa civilização diferente. Terei eu razão nos meus juízos? Eu acho que sim mas a dúvida permanece . . .
Plausível – Isso significa que o que é válido para nós pode não o ser para os outros.
Utópico – E vice-versa: o que é válido para eles pode não ter nada a ver connosco.
Plausível – Mas isso não é compatível com a globalização.
Utópico – A globalização em curso é um processo completamente selvagem que não faz qualquer sentido por este tipo exacto de razões. As regras do jogo são diferentes para os vários intervenientes.
Plausível – E então como é que devia ser?
Utópico – Eventualmente nem sequer devia ser . . .
Plausível – É contra a globalização?
Utópico – Para que não restem dúvidas, caso algumas ainda subsistam, declaro formalmente que sou contra esta globalização.
Plausível – É contra um facto histórico.
Utópico – Sou contra uma construção artificial inventada por quem quer entrar na China a toda a pressa porque não aprendeu nada com a Guerra dos Boxers.
Plausível – E isso significa?
Utópico – Significa que é muito alto o preço que todos temos que pagar para que as multinacionais tenham um manancial de mão-de-obra extremamente barata, quase inesgotável, a quem não têm que pagar férias nem o respectivo subsídio, onde não têm que aturar Sindicatos nem contratos colectivos, onde tanto a Segurança Social como a legislação ambiental primam pela inexistência. Mas isto que as multinacionais consideram um El Dorado, vai tender a desaparecer e não faltará muito para que as condições de trabalho na China tenham que começar a ser regulamentadas. Basta que o ∆ (delta) chinês do crescimento comece a abrandar ou o índice de preços a passar as marcas stalinistas e não tardará que o Governo se veja obrigado a produzir legislação que de algum modo satisfaça as necessidades da classe média nascente. Esse El Dorado deixará então de ser tão dourado como parecia mas, entretanto, já nós no ocidente voltámos à estaca zero no emprego e no conforto. Ou seja, esta globalização está a ser feita nivelando por baixo. Em vez de obrigar os chineses a uma evolução mais rápida no sentido da melhoria das condições de trabalho, está a obrigar-nos, a nós, a baixar ao nível dos chineses. E quando os chineses começarem a achar que há um excesso de protagonismo estrangeiro dentro das suas muralhas, então vamos vê-los a relembrar que eles é que são o Império do Meio e que os outros são uns bárbaros. Isto já sucedeu uma vez nos tempos modernos mas parece que o Tio Sam e seus amigos do G7 estão um bocado esquecidos . . . Para o conceito oriental de tempo, passaram pouco mais que 15 dias . . .
Plausível – Acha isso mesmo?
Utópico – É evidente que estou a fazer uma caricatura mas acho que não devemos titubear na crítica que tem que ser feita. Se estou a exagerar, então que venha alguém que me corrija os excessos e traga a crítica para o nível do razoável. Para já, como utópico, sinto-me na obrigação de bradar contra a infâmia a que o Ocidente está a ser sujeito. Você, que é plausível, diga agora de sua justiça.
Plausível – Eu limito-me a ficar um pouco chocado com a sua crítica tão assanhada.
Utópico – A utopia tem a vantagem de definir um limite; o outro limite é o seu contrário absoluto, o nihilismo evolutivo, ou seja, o arcaísmo. A bissectriz entre estes dois limites já é do seu domínio.
Plausível – Do meu domínio?
Utópico – Sim, da plausibilidade.
Plausível – Então, o que propõe?
Utópico – Proponho que a Organização Mundial do Comércio deixe de praticar o capitalismo selvagem e que os políticos europeus assumam as ideias que dizem perfilhar.
Plausível – E quais são elas?
Utópico – Que os socialistas assumam que o são em vez de andarem por aí a dizer que meteram o socialismo na gaveta, que os social-democratas pratiquem a social-democracia e que os democrata-cristãos não se esqueçam da doutrina social da Igreja. É fundamental um retorno aos princípios doutrinários para se concluir que a Europa tem consistência e que não anda por aí nos “fora” internacionais a “fazer o frete” às multinacionais, essas, sim, apátridas e talvez mesmo associais.
Plausível – Está a esquecer-se dos comunistas.
Utópico – Ah!, sim. Esses devem estar a rir-se e à espera da miséria que aí vem para aproveitarem o descontentamento generalizado que os actuais governantes andam a semear.
Plausível – Muito bem. E no plano concreto, o que é que propõe?
Utópico – Proponho que a abertura europeia aos produtos chineses se faça na medida exacta em que os chineses aprimorem as condições gerais de trabalho, nomeadamente as férias anuais de 30 dias, o direito à greve e à reforma, autorizem a constituição de sindicatos livres. Já não vou ao ponto de condicionar as negociações comerciais ao reconhecimento efectivo dos direitos do homem, à abolição da pena de morte, ao fim do regime de partido único. Como vê, sou um mãos largas e peço pouco.
Plausível – E acha que os chineses estão abertos a essas coisas?
Utópico – E acha que nós temos que nos afundar porque os chineses nos querem nivelar à sua imagem e semelhança?
Plausível – Muito bem. Vamos fazer um intervalo?
Utópico – Sim. Boa ideia. Mas eu vou tomar um chá de Moçambique ou do Sri Lanka que não querem afundar a Europa e que, como nós, também são vítimas desta escandalosa globalização.
Plausível – Como é que esses países são vítimas da globalização?
Utópico – Falamos disso depois do intervalo.

Lisboa, Janeiro de 2005


Henrique Salles da Fonseca

A Natureza do Mal

 

É verdadeiramente assombrosa a capacidade que temos de nos distrair do essencial e perdermo-nos com o acessório (...).

 

No passado fim-de-semana, esteve em Lisboa Josep Carod-Rovira, o líder da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC). O senhor Rovira veio a Portugal falar-nos da Ibéria. Nem mais nem menos.

 

Como o mesmo Rovira declarou ao semanário "Expresso", também na passada semana: "Devemos passar de uma concepção unipolar do Estado para uma outra multipolar, que passe por Lisboa, Barcelona, Bilbau, certamente por Sevilha, e juntos poderemos acabar de alguma forma esta península que nunca foi concluída." E assim de uma assentada, Lisboa, capital de um Estado independente, foi colocada, pelo senhor Rovira, ao nível das capitais das regiões e comunidades espanholas.

 

É de uma inconsciência assombrosa a bonomia com que em Portugal se escutam este tipo de afirmações. Duvido, aliás, que sejam escutadas.

 

O "Jornal de Notícias", no artigo que dedicou à conferência de Rovira, em Lisboa, fez um título que deve ter ido buscar aos tempos em que o generalíssimo Franco era vivo - "Rovira diz que chegou a hora da Catalunha livre". Quem oprime a Catalunha nesta ano da graça de 2005? Não só a Catalunha é livre como o que de facto Rovira disse é que chegou a hora de Portugal se tornar uma região da Ibéria. E note-se que o senhor Rovira não estava a discursar num encontro obscuro ou na sede dum movimento extremista. O senhor Rovira veio a Portugal a convite da Fundação Mário Soares, que, como se sabe, foi Presidente da República deste país que Rovira trata como uma região da Ibéria.

 

Nada disto mereceu destaque na nossa campanha eleitoral.

 

O que pensam, por exemplo, os nossos candidatos a chefes de governo do anúncio feito por Rovira, na Fundação Mário Soares, de que vai propor a Zapatero que a Catalunha participe nas próximas cimeiras luso-espanholas? Sócrates vai dar o estatuto de chefe de Estado aos governantes da Catalunha? E do País Basco? E da Galiza? E vai fazê-lo enquanto a Espanha discute este assunto? Sobre Santana Lopes não vale a pena perguntar o que fará: não só não vai ser primeiro-ministro como, quando da cimeira luso-espanhola em que representou Portugal, aceitou ser colocado ao nível dos presidentes das comunidades autónomas da Espanha.

 

A presente situação espanhola diz-nos respeito: porque os líderes independentistas procuram obter em Portugal o reconhecimento tácito do seu estatuto de chefes de Estado.

 

Porque uma Península com três ou quatro Estados independentes é política e economicamente diferente para Portugal. Porque o processo de desgaste das instituições democráticas fomentado pelos independentistas em Espanha é exemplar dos logros em que as democracias caem. Começou por se fazer equivaler antifascista a democrático, o que está longe de ser verdade. Movimentos como a ETA são profundamente reaccionários, mas o facto de os seus membros terem combatido Franco serviu-lhes de capa de legitimidade para continuarem a matar em plena democracia.

 

À extorsão que praticam chama-se imposto revolucionário. Simultaneamente, pactuou-se com o culto dos mortos em que os nacionalismos e os terrorismos são férteis. O corpo de cada vítima dos nacionalistas, nos anos 70, 80 e 90 do século XX, valia sempre menos que os independentistas mortos pela Falange ou pelas tropas de Isabel, a Católica.

 

Durante anos, olhou-se para o fenómeno da violência de rua e perseguições a não nacionalistas com a mesma tolerância com que os burgueses enfrentam os desmandos dos filhos: aquilo passa-lhes. Não passou. Em Espanha, agora, na urgência do inevitável, arranjam-se argumentos que visem impedir os bascos de organizar um referendo sobre o seu futuro estatuto. Em Portugal, nós já escutámos Rovira dizer-nos qual é o nosso futuro estatuto.

 

Esperemos que não seja demasiado tarde quando tivermos percebido o que ele, de facto, disse. Não sobre a Espanha. Mas sobre Portugal.

 

(...)

 

in "PÚBLICO" – Sábado, 29 de Janeiro de 2005

 

 HELENA MATOS

SOBRE O CHOQUE TECNOLÓGICO DE SÓCRATES


A palavra choque é completamente inadequada para qualquer referência a uma alteração de paradigma da economia portuguesa. Pode-se compreender a ideia de Sócrates: a economia portuguesa atravessa uma crise de ajustamento a uma nova realidade, e os actores actuais, os agentes económicos que todos os dias tomam as suas decisões, vingam ainda num ambiente intelectual, numa percepção da realidade económica e social mais característica do passado recente do que do futuro.
Que pode querer dizer um choque tecnológico, senão um corte abrupto com um passado económico sem futuro? É sobre esta noção de choque que nos movemos. Não há, não pode haver, e não haverá nada parecido com o quer que seja choque tecnológico. Porque precisamente o passado é importante, é crucial para qualquer evolução societária.
Os economistas do desenvolvimento endógeno têm afirmado, com crescente consistência e confirmação, que o crescimento económico de um país depende de um conjunto de factores inerente a esse país. O desenvolvimento é endógeno, porque vem de dentro, das estruturas existentes, das realidades do dia a dia. Pretende demonstrar exactamente o contrário daquilo que veio a ser designado pelo elemento exógeno da equação de Solow.
Segundo o pensamento neo-clássico, o crescimento económico deveria ser explicado pela abundância relativa dos factores de produção, o capital e o trabalho. Mas na realidade estes factores não explicavam quase nada. Solow designou esse factor, exógeno, explicativo em grande medida do crescimento económico, como a medida da nossa (dos economistas) ignorância. Solow foi o autor de um outro não menos intrigante e estimulante paradoxo: “os computadores estão em toda a parte excepto nas estatísticas de produtividade”.
O que os autores do desenvolvimento endógeno procuram explicar é que o crescimento económico se justifica por factores endógenos, como a capacidade de inovar, de organizar os factores de produção, de aumentar o seu potencial produtivo e não por quaisquer razões exógenas, alheias ao real trabalho da sociedade. É uma abordagem com enorme potencial explicativo da moderna economia.
Em que é que isto tem a ver como o referido choque?
A ideia de choque reflecte precisamente a ideia de um elemento exterior, exógeno, como motor do crescimento económico português. Como se uma simples varinha mágica nos colocasse num mundo novo, onde a inovação e as tecnologias de informação e de comunicação comandassem o crescimento económico português.
Seria óptimo que assim fosse. E porventura alguma coisa de positivo poderá trazer o dito choque.
Mas a inconsistência, e meu pessimismo, vêm do segundo paradoxo de Solow. Os computadores só passaram a aparecer nas estatísticas da produtividade passados largos anos de estarem em toda a parte. Que quer dizer isto? Muito simplesmente, que a sociedade americana teve que se adaptar aos computadores, antes que a sua adopção produzisse efeitos económicos. A América sofreu uma transformação, está a sofrer uma transformação, não está simplesmente a adoptar novas tecnologias. O choque da introdução dos computadores, factor exógeno, só foi produtivo quando a sociedade americana atingiu a maturidade suficiente para ter a capacidade de os utilizar e obter todos os seus potenciais, isto é quando a introdução dos computadores se transformou em factor endógeno.
Por outras palavras. É preciso tempo. Como se diz entre nós com grande sabedoria é preciso dar tempo ao tempo. De nada vale ter um choque tecnológico se a sociedade portuguesa não estiver apta para o absorver.

Lisboa, Janeiro de 2005

António Calado Lopes

NOVA COLABORAÇÃO


Após convite que há muito formulei, é com o maior gosto que publico hoje um artigo do António Calado Lopes. Desejo que este seja o primeiro de uma longa colaboração que nos traga mais motivos de meditação e de aprimoramento dos raciocínios que vimos desenvolvendo.

Com o Doutor Palhinha Machado, já somos três a escrever e sei que os comentários continuarão com a elevação que têm tido par’ “A bem da Nação”.

Lisboa, Janeiro de 2005

Henrique Salles da Fonseca

AS CONFERÊNCIAS DE LISBOA – 3



Foi no passado dia 18 de Janeiro de 2005 que a jovem Associação de Jornalistas de Economia (A.J.Eco) e a Associação Industrial Portuguesa (AIP) assinaram um Protocolo de cooperação ao abrigo do qual se prevê, nomeadamente, que os jornalistas organizem no Centro de Congressos de Lisboa uma conferência anual que logicamente abordará temas económicos do interesse de Portugal. A assinatura deste Protocolo ocorreu no final de um Seminário intitulado “Inovação e Competitividade” no qual se abordou o tema da política de inovação e se apresentaram algumas experiências empresariais. Fiquei sem saber qual o acto principal e qual o acessório: se o Seminário, se a assinatura do Protocolo.

O debate sobre a política de inovação acabou por se partidarizar com alguma esterilidade entre saber se a investigação desenvolvida pelos Institutos públicos e pelos Laboratórios do Estado deve ser pura ou aplicada, se deve haver um Ministério da Ciência e do Ensino Superior ou da Ciência e Tecnologia, se os tais Institutos Científicos devem depender do Ministério da Ciência ou do da Economia, que características devem ter os Programas específicos de orientação do investimento, etc. Na minha opinião, tudo de uma grande vacuidade pragmática e distorcendo grandemente a acção que ao Estado deve competir.

Retive, contudo, algumas afirmações que me mereceram anotação; não as transcrevo literalmente mas cito as ideias e comento-as; creio desnecessário atribuir-lhes as autorias respectivas pois o que interessa é discutir as ideias e não as pessoas.

Afirmação – “O empreendedorismo não se ensina, aprende-se”.
Comentário – Há duas qualidades de pessoas: as que são empreendedoras e as que o não são. Mas há técnicas de planeamento e gestão que são imprescindíveis no mundo empresarial moderno e nada nos diz que um empreendedor conheça essas técnicas. Estamos afinal e apenas perante um erro de semântica pois não ensinamos empreendedorismo mas sim técnicas de planeamento e gestão. Se o aluno de um curso de empreendedorismo não tiver ideia nenhuma sobre um negócio para levar a cabo e só pensar no ordenado ao fim do mês, então bem pode aprender todas as técnicas que nunca passará de escriba a registar os actos dos empreendedores. Portanto, quando se ensina aquilo a que se convencionou chamar empreendedorismo, corre-se o risco de não receber como alunos só os que são verdadeiramente empreendedores e pode-se dar mesmo o caso de continuar a haver empreendedores que nunca venham a frequentar tal tipo de cursos. O erro de pontaria poderá ser grande mas o mais grave seria que não houvesse a preocupação de ensinar este tipo de matérias a quem as procura, principalmente àqueles cuja formação académica lhes seja estranha tais como engenheiros, arquitectos, advogados, médicos ou àqueles que não tenham quaisquer habilitações académicas mas sejam empreendedores natos. Não é, pois, nas escolas de gestão que devem ser instalados os cursos de empreendedorismo – pura redundância – mas sim nas outras que nada tenham a ver com esse tipo de matérias. O nome “empreendedorismo” poderá não ser muito feliz e de dicção difícil mas dá uma ideia muito clara do objectivo e esse é um princípio essencial do “marketing” que lá se ensina também.

Afirmação – “Os Institutos públicos investigam coisas importantes pelas quais as empresas não se interessam”.
Comentário – Há que distinguir a investigação pura e a aplicada pois, quanto mais não seja por uma questão de imediatismo, às empresas interessa por certo mais a aplicada que a pura. À falta de melhor solução, a medição do mérito científico tem que ser feito por critérios internacionais mas, mesmo assim, poderemos vir a verificar que temos cientistas fantásticos que não servem em nada o desenvolvimento da nossa sociedade. Creio que não fará qualquer sentido estabelecer quotas de investigação pura e aplicada e por isso só vejo como solução que as próprias instituições científicas se governem a si próprias pois estamos a tratar de gente respeitável e responsável. Ou seja, há que conduzir o processo de modo a que as instituições científicas se virem cada vez mais para as empresas e que estas passem a ter-lhes acesso (o “dia aberto anual” não faz qualquer sentido pois as instituições devem estar sempre abertas aos interessados; quando muito, que haja um “dia fechado” para limpezas anuais mais profundas). Estou convencido de que este problema só se resolve a médio prazo e a solução está na passagem de todos estes Institutos para as Universidades uma vez que estas se terão cada vez mais que financiar fora do Orçamento do Estado e terão que gerar receitas próprias, nomeadamente nas propinas pagas pelos estudantes e nas patentes que vendam aos interessados.

Afirmação – “A informalidade causa muito atraso económico a Portugal”.
Comentário – Questiono-me se a “Informalidade” é uma causa do atraso ou se, pelo contrário, é uma consequência do defeituoso enquadramento legal e regulamentar a que as actividades produtivas portuguesas estão submetidas. E questiono-me também se estará correcta a forma pela qual a “Informalidade” é apresentada pelo Ministério da Economia na sequência do estudo da McKenzey, atribuindo-lhe uma característica essencialmente viciosa. Claro está que lidamos neste tema com algo que é quase incomensurável ou, “in limine”, é defeituosamente quantificável exactamente por se tratar do subterrâneo, do paralelo, do clandestino, do não declarado. Qual a dimensão do vício e do seu complemento, a simples fuga para a sobrevivência? Não será o excesso ou defeituoso enquadramento regulamentar um motivo para que as empresas de menor “expertise” tenham que passar à clandestinidade? Não será a carga fiscal e de encargos sociais excessiva face à rentabilidade interna dos negócios de uma parte significativa da produção nacional? Por outras palavras: terá este Estado alguma coisa a ver com a economia que o suporta? Temo que a resposta seja negativa e que o legislador português viva num mundo que não é Portugal.

Afirmação – “Há um excesso de licenciados em humanidades”.
Comentário – Num país como Portugal com 9% de taxa de analfabetismo adulto (quase 1 milhão de pessoas), com uma taxa de abandono escolar precoce da ordem dos 50%, em que cerca de 80% da população com mais de 15 anos de idade apenas tem a antiga 4ª classe da instrução primária (enquanto na Suécia são apenas 20%), apenas 11% do mesmo grupo etário tem o ensino secundário (48% na Suécia) e 9% possui uma licenciatura (30% na Suécia), parece-me errado que se afirme que há um excesso de licenciados nisto ou naquilo. Pelo contrário, há uma falta estrutural de licenciados. A partir deste momento, e recorrendo aos elementos compilados no “European Innovation Scoreboard 2002” constato que em 1999 Portugal tinha no grupo etário dos 20 aos 29 anos algo como 5,5 % de diplomados em Ciências e Tecnologia enquanto no Japão havia 11,2%, nos EUA 8,1% e em Inglaterra havia o máximo europeu de 17,8%. Diz-se ali também que em 2000 a percentagem da população activa com diploma pós-secundário era em Portugal de 9,8% enquanto o Japão tinha 30,4%, os EUA 34,9% e o máximo europeu se verificou na Finlândia com 32,4%; que em 1999 o European Patent Office registou 0,4 patentes de alta tecnologia por milhão de residentes em Portugal, 29,5 por igual número de americanos, 27,4 por milhão de japoneses e novamente um máximo europeu obtido na Finlândia com o assombroso número de 80,4 patentes por milhão de residentes. Ou seja, a nossa percentagem de licenciaturas tecnológicas não é assim tão mais baixa que nos EUA. Regresso, pois, à questão de que já falei sobre a qualidade da investigação desenvolvida em Portugal e pergunto-me sobre o que andarão os nossos científicos a fazer. A dar aulas e a “vacinar” os alunos contra as Ciências com base em programas absurdos? Já sugeri e repito agora a sugestão de que europeizemos os “curricula” científicos do secundário de modo a livrarmos as gerações futuras da deformação que os pedagogos portugueses nos têm causado. Recuso-me a aceitar a hipótese de que possamos ter alguma característica genética nacional que nos dificulte os raciocínios matemáticos ou das ciências da vida. O defeito está nos “curricula” e não nos alunos.

Afirmação – “Não podemos comprimir os salários aos níveis chineses”.
Comentário – Retomo a questão da informalidade como única forma de sobrevivência de inúmeras actividades produtivas portuguesas cuja taxa interna de rentabilidade não é suficiente para o cumprimento das obrigações legais e regulamentares e pergunto-me porque é que a esse tipo de actuações em Portugal se chama “informalidade” e na China se chama globalização. Reconheçamos que esta passagem portuguesa à clandestinidade é um reflexo imediato da concorrência desleal sofrida por via da globalização selvagem em curso. É que o acesso de produtos chineses à Europa devia ser feito por contrapartida das medidas legislativas chinesas com vista à instauração da democracia, dos sindicatos livres, das férias remuneradas, da Segurança Social obrigatória, da protecção do ambiente. Conclusão: é mais fácil acabar com os postos de trabalho do que reduzir os salários. As consequências estão à vista e creio que em vias de agravamento.

Lisboa, Janeiro de 2005

Henrique Salles da Fonseca

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