BURRICADAS - 3
Chuva de molha-tolos ( III )
v Enquanto na esfera real decorria o “efeito-valsa” entre preços de activos e taxas de juro nominais, no restrito círculo financeiro preparava-se o cenário para o “efeito-dominó”.
v Aí, a rede de responsabilidades cruzadas não parava de se adensar, agora com novidades de tomo: (1) já não eram só os Bancos a estruturarem-na – as EIC/Entidades de Investimento Colectivo disputavam-lhes, palmo a palmo, esse papel (exemplo claro da celebrada desintermediação); (2) muitos desses feixes de relações financeiras também não passavam já pelos mercados interbancários, nem sequer por qualquer mercado organizado (as operações OTC/Over-the-Counter, com especial destaque para os “derivados de crédito”, iam ganhando peso substantivo); (3) e, por consequência, escapavam ao controlo directo das Autoridades Monetárias situações que buliam com a estabilidade financeira.
v Esta configuração talvez não fizesse deslocar em definitivo, dos mercados interbancários para o mercado de capitais, o centro de gravidade do sistema financeiro. Mas criava para o risco sistémico um novo epicentro, o mercado de capitais, e um novo factor de risco, o risco de mercado (aqui entendido como risco cotação, ou risco preço), que assim vinha juntar-se ao risco de crédito, enquanto causas da instabilidade.
v Entretanto, as Autoridades de Regulação e Supervisão continuavam, como no passado, mais preocupadas em medir, com milimétrica precisão, o risco de crédito a que os Bancos se encontrassem directamente expostos (isto é, descuravam o que se escondia logo ao virar da esquina).
v Não restam dúvidas de que, a haver crise, será o risco de mercado a desencadeá-la. Por isso, bem avisados têm andado a Federal Reserve e o BCE (tal como o BoE e o BoJ) quando, através dos Bancos, não cessam de injectar liquidez no sistema financeiro, com o evidente propósito de evitar que as EIC, para não soçobrar, comecem a despejar títulos no mercado.
v Todavia, a medida, sendo inevitável para já, não só não é completa, como levanta, a prazo, um novo problema, aliás, bem bicudo. Vamos por partes.
v Não é completa porque nem todos as EIC podem recorrer indiscriminadamente a empréstimos bancários: as Seguradoras, os Fundos de Pensões e tantos Fundos de Investimento estatutariamente impedidos de contrair dívida, não podem (pelo menos, nos volumes de que talvez venham a necessitar). A plena eficácia da medida fica assim circunscrita aos Hedge Funds e aos Fundos de Investimento “alavancados”. Já não é pouco, mas pode não ser suficiente.
v Por outra parte, toda esta liquidez que está a ser lançada em circulação para conter o risco de mercado (e, assim, garantir a estabilidade do sistema financeiro) terá de ser imediatamente esterilizada - ou as Autoridades Monetárias perderão, a breve trecho, o controlo sobre a inflação. Ora, consegui-lo não vai ser tarefa fácil.
v Enfim, a prazo, a liquidez excedentária terá de ser reabsorvida (ou seja, retirada do sistema financeiro), ou abrir-se-á um novo foco de turbulência, agora com efeitos mais duradouros, por se localizar na esfera real da economia (maior volatilidade dos preços relativos de bens e serviços, sem esquecer os salários). Como fazer, porém?
v Goste-se ou não, o risco de mercado anda por aí, algures - na sombra de Seguradoras, Fundos de Pensões e Fundos de Investimento “não alavancados”. Tudo vai de saber como estão programados para reagir os actuais modelos de gestão automática de carteiras. Se replicarem, uniformemente, o mesmo padrão de resposta à queda das cotações, se reagirem de modo fortemente correlacionado (como reagiram em Outubro de 1987), o futuro não augura nada de bom, por mais liquidez que os Bancos Centrais injectem.
v Tanto mais que basta um leve sinal de turbulência para que os primeiros títulos a ficarem sobre pressão vendedora, os que vêem as suas cotações cair primeiro, sejam justamente aqueles mais facilmente vendáveis – dito de outro modo, os que não se encontravam no epicentro da crise. É exactamente por isto que, no mercado de capitais, pequenos focos de instabilidade se transformam rapidamente em turbulência e que essa turbulência, de um momento para o outro, descamba em crise global.
v A prova de fogo, contudo, será vivida pelos “derivados de crédito”. Consubstanciados, as mais das vezes, em textos contratuais avulsos, redigidos à medida dos interesses de ocasião, sem cláusulas padrão - será que podem ser sustentados em tribunal, e executados? Será que valem o papel em que foram escritos? [Não imagina, Leitor, a quantidade de gente que, por esse mundo fora, mal pode esperar pela resposta.]
v De entre as muitas coisas que este episódio tem trazido a lume, uma é, sem dúvida, a fragilidade dos métodos de supervisão, quando dão igual valor prudencial (ou seja, quando tratam de maneira idêntica) a contratos bem tipificados, que passaram já com sucesso a prova judicial (por exemplo: aqueles que a ISDA/International Swaps and Derivatives Association certifica), e a contratos avulsos, cuja interpretação está longe de ser pacífica. Não surpreenderá, pois, que o risco jurídico entre em cena mais cedo do que daria jeito.
v O que é dizer, a regulação e a supervisão, hoje em dia, não podem dispensar a auto-regulação e a disciplina do mercado, muito menos podem olhá-las como algo que não lhes diz minimamente respeito: verdades que as Autoridades Monetárias não aceitam facilmente.
v Em resumo: no centro de todo este episódio (não sei se se poderá falar de crise, para já) está a liquidez...
v A liquidez - que taxas de juro nominais excepcionalmente baixas, durante talvez demasiado tempo, lançaram na economia através dos empréstimos bancários (o financiamento dos “deficits gémeos” da economia norte-americana também terá dado uma boa ajuda).
v A liquidez - que alimentou a bolha especulativa no mercado imobiliário.
v A liquidez - que a teoria tem querido demonstrar, de há décadas a esta parte, ser totalmente irrelevante (uma variável espúria) na condução da política económica.
v A realidade tem destas ironias. (cont.)
A. PALHINHA MACHADO
Setembro 2007