EM TRÊS PENADAS
Foi o meu amigo António Barros, ilustre causídico de Lisboa, que leu a biografia de Jorge Amado da autoria de Josélia Aguiar e que me contou a cena com o meu avô, Tomás da Fonseca.
Estando ele no Rio de Janeiro, foi convidado para ir tomar um café a casa de Jorge Amado e de Zélia Gattai cuja mãe também lá vivia (ou apenas lá estava). Sucede que esta Senhora – cujo nome não descobri ainda – era anarquista e grande leitora de Tomás da Fonseca a quem quase idolatrava.
Sentados para o cafezinho, o genro vai chamar a sogra pois tinha na sala uma grande surpresa para ela. Perguntado, lá acabou por dizer o que era a surpresa e a Senhora exclamou alto a sua incredulidade. Mas acabou por ceder e foi até à sala onde os seus olhos nem queriam acreditar no que via. E diz quem leu o livro que a Senhora tomou conta da conversa com o anarquista-mor e terá sido das poucas vezes em que o nobelizado não foi a «estrela da companhia». E já sabemos como isto é das conversas e das cerejas: a trás de uma vem sempre outra e sou eu que adivinho que o cafezinho se estendeu até depois do jantar.
Alguns anos mais tarde, sem sogra mas comigo e com a minha avó, o jantar repetiu-se em casa do meu tio, o escritor Branquinho da Fonseca, na Malveira da Serra. Sobre este jantar já escrevi, não repito agora. Apenas refiro que se falou sobretudo de literatura e praticamente nada de política.
Como é sabido, Jorge Amado e Zélia Gattai eram comunistas, o meu avô anarquista e o meu tio era um republicano sereno ocupado na escrita e na indução dos hábitos de leitura nos portugueses através desse instrumento formidável de aculturação que ele dirigia, as bibliotecas itinerantes da Gulbenkian.
A cordialidade, o respeito mútuo e a literatura fazendo o pleno do interesse dos convivas, levou a política ao silêncio. Também já escrevi sobre as diferenças abissais entre comunismo e anarquismo, não repito agora.
- Então, se não conta do jantar nem da política, trata de quê? – perguntará quem me lê.
- Pois bem, em três penadas, trato do que julgo ser a razão estaminal da opção anarquista de Tomás da Fonseca.
PRIMEIRA PENADA – A iliteracia era a norma em Portugal na segunda metade do séc. XIX e chegámos à República com cerca de 90% de adultos analfabetos. Dentre os relativamente poucos portugueses alfabetizados estavam os Padres, o que lhes conferia natural capacidade de liderança das respectivas comunidades, ou seja, apontando para inúmeras situações de quase equiparação a hierocracia. Isto, sobretudo nas regiões rurais mais isoladas. À falta de alternativas, os seminários eram procurados por quem buscava instrução e não só por quem sentia vocação sacerdotal.
Foi o caso de Tomás da Fonseca que, depois de aprender a ler e escrever na escola ambulante que passava por Mortágua, rumou ao seminário de Coimbra onde fez o ensino secundário e o curso (superior) de Teologia. Mas recusou a ordenação sacerdotal e optou por aquele belo par de olhos que à saída de Mortágua o mirava da janela alta quando ele passava a cavalo a caminho das Laceiras. Sim, a minha avó teve sempre uns belos olhos.
SEGUNDA PENADA - Não sei se o meu avô alguma vez teve fé (católica) e, se a teve, quando (e porquê) a perdeu mas o que sei – porque mo disse mais do que uma vez – é que pensava que «religião pura dispensa ritos que só servem para impressionar os povos». Com o luxo da Igreja, revoltava-se; das indumentárias, ria-se e equiparava as casulas episcopais às homólogas dos adoradores de Amon-Rá.
Eis as causas que o mobilizaram toda a vida:
- A instrução pública;
- O anticlericalismo.
TERCEIRA PENADA – Não tenho o meu avô por nietzschiano mas admito que tenha lido alguma recensão de «A Gaia Sciêntia» onde terá gostado da frase «Deus está morto». Do seu (relativamente superficial, creio eu) conhecimento do nihilismo alemão, resultou uma óbvia rejeição da vertente suicidária optando, isso sim, pela via kropotkiniana da anulação do Estado. Ou seja, pelo anarquismo. Mas, mesmo assim, optando por uma via filosófica pacífica rejeitando a via terrorista catalã.
CONCLUSÃO - Tomás da Fonseca era democrata republicano radical-pacifista e era filosoficamente incompatível com quaisquer formas de fascismo, tanto de direita como de esquerda.
Obrigado, António Barros, por me ter sugerido esta reflexão.
Outubro de 2021
Henrique Salles da Fonseca