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A bem da Nação

O QUE TORTO NASCE . . . (2)

Decidiu em 2004 o Governo alterar o regime de rendas urbanas.

Datam dessa época os textos que o Dr. António Palhinha Machado fez publicar na Imprensa.

Agora que nova Lei foi aprovada na Assembleia da República, parece conveniente refazermos essa leitura para que possamos melhor compreender um processo que no tempo do Doutor Salazar nasceu torto.



"Agora, sim, vamos ser a inveja da Europa - II (cont.)

No primeiro artigo comentei as causas que motivaram a reforma anunciada. Volto agora a minha atenção para o regime novo (RNAU) – aplicável aos contratos de arrendamento urbano que vierem a ser celebrados já num futuro próximo e ponto de chegada para muitos dos actuais contratos – sem dúvida, a razão-de-ser de todo este notável afã legislativo. Será a reforma verdadeiramente radical, pelo menos na vertente do arrendamento para habitação?

As habitações para arrendar têm uma natureza, por assim dizer, dual: para o inquilino, representa um bem a fruir na satisfação de uma necessidade básica (um tecto que o abrigue); para o senhorio, é um investimento que ele crê seguro (se a renda não for cobrada, resta-lhe a propriedade intacta). Ora, são justamente as condições que rodeiam a oferta (o investimento) e não a procura (a necessidade básica), que vão favorecer, ou prejudicar, a formação de um mercado – o qual, dada a eficiência do sistema financeiro nos dias que correm, terá sempre uma importância menor no contexto mais amplo do mercado imobiliário. Isto porque a habitação própria é, nas mais variadas circunstâncias, uma decisão fortemente racional: junta a segurança de um tecto ao conforto de um investimento em que a perda total é altamente improvável. Aliás, o passado não deixa lugar a dúvidas: compra-se casa quando o dinheiro está barato; arrenda-se quando o dinheiro está caro. E, perante isto, os legisladores pouco podem fazer, por mais hábeis que sejam.

O contrato de arrendamento tem características muito próprias. Algumas que o legislador, cuidadoso, anotou: o objecto (está aí, mesmo que noutro lugar alcançásse melhor preço); a duração limitada; o facto de ser celebrado intuito persona, atendendo à pessoa do inquilino. Outras que lhe escaparam de todo, como a referida dualidade e as externalidades (o valor de um prédio depende, em larguíssima medida, da zona onde esteja localizado). Estranhamente, porém, o legislador, tendo reconhecido o que reconheceu, vai fixar como a modalidade supletiva o arrendamento de duração indeterminada, sem se aperceber que estava a tornar bem mais complicada a sua tarefa. Tivesse ele optado pelo arrendamento com prazo certo, mas renovável, não só teria de redigir menos regras e mais simples, como essas regras serviriam facilmente de baliza ao restante. Poupar-se-ia, assim, ao trabalho de descrever exaustivamente as duas modalidades e ao risco de cair em contradições – e poderia produzir um dispositivo legal mais consistente. Aliás, se tivesse ponderado sensatamente as tais externalidades veria que o senhorio, ele também, pode invocar causas objectivas legítimas para pôr fim a um dado arrendamento (por exemplo: a inesperada valorização do local arrendado) – direito que se lhe negou.

Seja, ou não, essencial aos equilíbrios do mercado imobiliário, este mercado do arrendamento, para funcionar menos-mal, deve observar princípios que são comuns a todos os mercados: a prevalência da vontade das partes; o equilíbrio de partida (aquilo que os anglo-saxónicos designam por level playing field), que nunca existirá se a lei tratar as partes de maneira assimétrica; custos de transacção diminutos face aos valores em jogo. Com a particularidade de que, em matéria de arrendamento urbano, é sempre mais fácil fazer do que desfazer. O que se lê, então, no RNAU?

Fora umas quantas situações imperativamente reguladas, o legislador limitou-se, bem, a fixar regras supletivas. Algumas discutíveis, como a indexação das rendas a um coeficiente publicado em portaria (porque não o IPCH, que é onde a burocracia vai beber?), ou a tal modalidade de prazo indeterminado. Contudo, o que salta logo à vista neste novo regime é a acentuada assimetria entre os direitos em confronto, como se o legislador desse por adquirido que o inquilino é sempre a parte mais débil (tese que faz sentido, apenas, se forem tidas por verdadeiras afirmações tão estereotipadas como estas: só os pobres habitam em casa arrendada; as casas para arrendar são património supérfluo dos senhorios, que as arrendam por mero desfastio; e por aí adiante). A não ser assim, como explicar que os prazos que o senhorio é obrigado a conceder sejam muito superiores àqueles que lhe aproveitam? Ou que o arrendamento fique subordinado a circunstâncias específicas da vida do inquilino (mudança de emprego, etc.), nada havendo de semelhante a favor do senhorio? Tudo isto agrava os custos de transacção (a mudança de contrato) associados a estes investimentos. Que ninguém se surpreenda, pois, se o mercado do arrendamento não saltar aí, pujante, mal esta lei entre em vigor.

Há inegáveis melhorias no RNAU e a qualificação de documentos particulares como títulos executivos para efeitos de despejo é certamente uma das mais importantes. Mas ficaram ainda pontos obscuros em torno de situações que são hoje frequentes (um exemplo: cada vez mais, nos prédios em condomínio coexistem fracções arrendadas com outras habitadas pelos respectivos proprietários; se for necessário proceder a obras nas partes comuns do prédio para renovar a licença de utilização, abre-se um conflito; quem for senhorio quererá ver essas obras feitas para continuar a rentabilizar o seu investimento; quem habitar casa própria poderá não ter interesse imediato nessas obras e nesses encargos, porque a licença de utilização para nada lhe serve), ou disposições a exigir melhor tratamento (exemplos: o dever do inquilino notificar, em tempo útil, o senhorio de todas as alterações que o agregado familiar, incluíndo hóspedes, vá conhecendo; a impossibilidade de se contratar um arrendamento por prazo inferior a 3 anos).

Resta recordar que o mercado de arrendamento foi, décadas atrás, o meio mais utilizado para transferir rendimento, principalmente entre gerações (dos activos para os reformados). E tudo indica que voltará a adquirir essa função, agora em novos moldes, à medida que os esquemas de previdência com benefícios definidos forem dando lugar aos modelos de contribuições definidas (ou de capitalização) – com a vantagem de, neste mercado, girarem aplicações financeiras de risco comparativamente mitigado. Mas se o RNAU permanecer tal qual, temo que esta seja mais uma oportunidade perdida, pese embora todo o voluntarismo do legislador."


A. Palhinha Machado
Outubro de 2004

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