A operação de “titularização” de créditos fiscais, revisitada – II
Os créditos fiscais que têm circulado pelo Veículo de Financiamento (mais de dois milhões em número e quase € 17 mil milhões em valor) formam inegavelmente uma amostra muito ampla daquilo que acontece quando os contribuintes não pagam espontaneamente. E é mesmo provável que alguns dos créditos entretanto entregues (aqueles posteriores a 2003) nunca tenham chegado a entrar em incumprimento – mal surgiram, foram logo encaminhados para o Veículo de Financiamento com o único propósito de assegurar o pontual serviço desta dívida. Seja como for, estes dados não deixam dúvidas quanto ao desempenho da administração fiscal, quer na fase de liquidação, quer na fase de cobrança activa. Na liquidação, porque uma tal quantidade (em nº e, sobretudo, em valor) de devoluções só é explicável por existirem também falhas, e falhas graves, na demonstração da exigibilidade dos valores de imposto que são liquidados. Na recuperação, porque taxas de sucesso (medidas sobre a totalidade dos créditos fiscais entregues e não devolvidos) da ordem dos 7% em valor (35% em nº) são extremamente baixas, mesmo em sectores muito vulneráveis ao risco de crédito.
Aliás, o facto de a recuperação ser mais visível em nº do que em valor (o valor médio dos créditos efectivamente cobrados é substancialmente inferior ao valor médio dos créditos em carteira) traça o perfil, por um lado, das capacidades funcionais do Fisco, por outro, da atitude dos contribuintes face ao (in)cumprimento fiscal. Estes, grosso modo, quando as suas dívidas fiscais são de montante relativamente pequeno, não pagam, na esperança de que elas prescrevam – para o que contam com a inacção da máquina fiscal. Mas, na iminência de uma execução fiscal, acorrem a pagá-las - o que só põe a claro a pouca diligência da administração fiscal quando é chamada a exercer um normal esforço de cobrança. O Fisco, esse, assenta a sua estratégia de recuperação de créditos na intimidação, que lá vai dando resultados quando os contribuintes são pessoas singulares, ou quando os créditos reclamados são de pouca monta, mas que se revela ineficaz quando estejam em causa valores elevados devidos por contribuintes que não temem a lide judicial. Manda a verdade que se diga que, em 2006, a percentagem de créditos fiscais cobrados, em especial os créditos mais recentes, subiu bastante relativamente ao que se registara em 2004 e 2005 – mas a subida não teve paralelo nos valores recuperados, os quais cresceram apenas marginalmente. Isto mais evidencia as fragilidades da administração fiscal quando se trata de exercer a cobrança activa em tempo útil. Por isso, talvez não seja exagerado afirmar que tem faltado ao Fisco uma metodologia de cobrança consequente – sem que os sucessivos Ministros das Finanças, entretidos com elocubrações macroeconómicas, se tivessem apercebido disso.
Neste vai e vem de créditos fiscais, apetece perguntar: Como é que estão a ser contabilizados os créditos com data posterior a 2003 e que são entregues ao Veículo de Financiamento? Como receitas fiscais (o que, desde logo, faz da operação uma verdadeira dívida)? Ou não são contabilizados como receitas fiscais do ano – e, então, onde ficam eles registados? E podem os créditos constituídos num dado exercício fiscal, e ainda vincendos, ser livremente intercambiados por créditos mais antigos, e já em mora, como se fossem valores perfeitamente fungíveis? Que diz o Tribunal de Contas a tudo isto?
Enfim, a operação tem de ficar paga algum dia. E se o Veículo de Financiamento não dispuser de recursos que lhe permitam exercer a opção de reembolso antecipado, o custo final desta dívida não deverá andar longe dos tais € 2,290 milhões que mencionei mais acima. Ora, se o padrão de cobrança se mantiver, se o Governo não proceder a novas entregas de créditos constituídos a partir de 2004, e se não houver lugar a mais devoluções, até 2012 cobrar-se-ão cerca de € 324 milhões (dos quais € 132 milhões até ao final de 2008). No cômputo geral, para que a meta de 2008 fosse respeitada, o Governo teria de desviar para o serviço desta dívida; em apenas dois anos (este e o próximo) uns € 900 milhões – o que representaria um esforço financeiro enorme. A insuficiência da carteira actual (28/02/2007), caso a opção de reembolso antecipado não seja exercida, é de € 1,100 milhões, mas repartidos por seis exercícios orçamentais. E, é claro, resta sempre a possibilidade de o Governo converter a operação em dívida soberana, com menor custo efectivo e reembolso diluído por dez ou mais anos. É caso para perguntar, uma vez mais, se terá valido a pena efectuar uma operação destas, tão mal alinhavada?
PS1: Na última vez que abordei este assunto (em Setembro de 2006), deixei no ar a acusação de que o Governo escondia informação, uma vez que o IR nº 5 não tinha sido publicado no site da CMVM (como não foi). Tratou-se certamente de um lapso não corrigido e nada mais. O IR nº 6 lá apareceu a tempo e horas.
PS2: Não posso deixar sem referência o facto de o Citigroup, a meu pedido, me ter enviado prontamente o IR em falta. E-mail para lá, e-mail para cá. Quando será assim, entre nós?
Lisboa, Maio de 2007
A. Palhinha Machado