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A bem da Nação

CRÓNICAS DA GALIZA

Galiza: paradoxos e projetos

 

 

A expressão A bem da nação,  lugar-comum universal,  contém um paradoxo. Ao dizermos "nação" apelamos a uma solidariedade interna. Porém, o nome em singular não é possível sem a existência do plural, de outras nações, e isto reclama uma fórmula para a coexistência, na procura da fraternidade universal. Portanto, a procura do bem da nossa nação equivale a reclamar o bem para todas as nações. A origem deste paradoxo tem de ser procurado na história da Europa, mais concretamente na história social do latim europeu, na substituição do uso da expressão nationes por natio em cada sociedade relacionada e identificada por uma mesma língua vernácula. São questões que não costumam ser estudadas e mereceriam alguma reflexão.

 

A relação entre as noções de povo, etnia, nação e língua tem sido objeto de múltiplos estudos históricos, sociológicos e políticos, variando conforme aos paradigmas e ideologias dominantes. Neste terreno o livro de Lluís V. Aracil Do latim às línguas nacionais (2004) ajuda a compreender a história das línguas europeias e a íntima relação entre esses conceitos, permitindo obter umas ideias básicas das origens e evolução cultural da Europa como um conjunto. Entendermos a história cultural da Europa ajuda a obter uma visão do mundo muito diferente de uma agregação de elementos nacionais isolados, autárquicos e confrontados numa espécie de corrida desesperada pela obtenção dos limitados recursos materiais do planeta.

 

Língua, nação, etnia e povo são elementos comuns dos discursos identitários. Os discursos nacionalistas assentes na identidade têm uma peculiaridade escassamente comentada: todos se parecem por algum dos seus lados e podem cumprir, ao mesmo tempo, papéis contraditórios. Pode observar-se desde a Revolução Francesa como, frequentemente, o mesmo discurso nacionalizador que numas populações tem um valor positivo de articulação comunitária provoca noutras desassossego, exclusão e divisão social, sendo percebido como opressor e desagregador da identidade, v.g., o caso da Espanha contra a Galiza. Para ilustrar o nosso caso exporei uns aspectos da situação do ensino do português da Galiza, comumente conhecido por galego.

 

No ensino primário ou secundário da Galiza, explicar determinadas noções linguísticas que pertencem à cultura geral de qualquer país normal pode tornar-se num facto heróico. Explicar aos alunos a diferença entre fala e escrita, ou entre a língua histórica e diversas variedades regionais em que se realiza, e tirar a lógica conclusão de o galego ser uma das formas da língua portuguesa – que não uma variedade regional do castelhano –, é uma conduta de risco que frequentemente tem originado um expediente disciplinário contra o professor desafecto à verdade oficial. Esta verdade é a ditada pelas normas castelhanizadoras para o galego, impostas em 1983 por decreto do governo do Partido Popular (na altura, Alianza Popular) de costas viradas ao Parlamento. Estas regras para a escrita são basicamente as do castelhano, o que converte o galego, contra toda a lógica e a linguística românica, numa espécie de patois afastado das suas origens e do português moderno como língua nacional e internacional de cultura. Na Galiza, contra toda a evidência de as falas populares serem uma variedade do português, foi imposta essa verdade linguística manipulada, como instrumento de castelhanização, por meio de uma política de controle e inspecção da administração educativa, e outros meios de coerção, sem defender verdadeiramente os direitos dos utentes. Assim, em duas décadas, o enorme investimento nesse galego com farda castelhana teve por resultado uma vertiginosa castelhanização da população, especialmente da juventude.

 

Contra esta injustiça desenvolvem uma incessante atividade diversas associações culturais lusófonas, cujas iniciativas têm, por vezes, eco na comunicação social portuguesa. É o caso da reportagem da RTP editada em 1 de Janeiro de 2006, sobre a Petição da Associação de Amizade Galiza-Portugal e o Movimento Defesa da Língua ao Parlamento Europeu «para que se abstenha de promover a segregação linguística das minorias nacionais e seja reafirmada a unidade da língua portuguesa». Pode descarregar-se ou ver-se o vídeo na página web Versão Original.

 

Quando num país a liberdade de cátedra, em matéria de língua, está limitada e vigiada pelas instituições políticas; quando as pessoas, professores e alunos, a título pessoal ou por meio de organizações culturais, são perseguidos academicamente e até nalgum caso policialmente; quando por razão de língua alguns dos melhores professores, escritores e investigadores são desprezados e excluídos sistematicamente nos concursos públicos; quando lhes é denegada qualquer ajuda económica que legalmente lhes pertence para actividades culturais; quando por razão de língua algumas pessoas perdem ou não conseguem aceder ao seu posto de trabalho, e quando reiteradamente a justiça não defende esses cidadãos ante tanta arbitrariedade e discriminação, esses factos assinalam a existência de uma ideologia política e um regime político opressores.

 

De qualquer modo, o caso da Espanha contra a Galiza, do castelhano contra o português galego, não é único nem singular. A geografia europeia, e não só, está cheia de casos semelhantes. Os movimentos nacionalistas parecem surgir em sucessivas ondas, ao sabor das circunstâncias mais ou menos favoráveis. A história da Europa oferece diversos modelos e processos, em que o factor linguístico costuma ser determinante. A última vaga nacionalista surgiu com a queda da União Soviética, com episódios dramáticos na região dos Balcãs. Na altura, os países que estavam mais preparados, antes ignorados pela comunidade internacional, conseguiram um lugar no concerto das nações. Naturalmente, uma nação não nasce de um dia para o outro. O reconhecimento internacional é uma tarefa continuada por gerações, e o seu resultado depende de várias circunstâncias, nomeadamente políticas. Recentemente o Canadá reconheceu a nação quebequense. Isso deveria servir de exemplo para outros estados.

 

Regressando ao nosso galego, deve reconhecer-se que a difícil situação da língua portuguesa na Galiza não é atribuível exclusivamente ao nacionalismo espanhol. As carências e incapacidades dos nacionalistas galegos contribuíram extraordinariamente ao agravamento do problema. Um deles reside na sua proverbial inabilidade para conceber o galego como uma língua a sério, e para organizar um programa eficaz e racional de normalização linguística.

 

Por exemplo, muito longe da mitificação que um nacionalismo galego de inspiração terceiro-mundista concede ao povo como protagonista fundamental da história e agente principal da construção nacional, a existência das nações costuma desenvolver-se e contar-se do ponto de vista das suas instituições, a sua função e continuidade histórica. As entidades de alto valor cultural são símbolos e instrumentos de solidariedade entre os nacionais, e o seu desenvolvimento define em grande medida a própria nação. Sem instituições nacionais -económicas, políticas, culturais - só há um povo sem futuro. A este problema de concepção acrescenta-se a moda na cultura política mais estendida entre os militantes partidaristas, de inspiração anti-sistema, consistente em negar qualquer auctoritas, dando a entender que o facto de haver autoridades numa determinada matéria representa uma negação da democracia e da liberdade de opinião. Noutros casos, os próprios dirigentes nacionalistas, em lugar de promoverem os notáveis galegos, apoiam-se em notáveis declaradamente espanhóis, pretendendo que estes se constituam em fiéis defensores da língua da Galiza.

 

A criação de instituições competentes em matéria de língua nunca foi realizada por consulta popular ou escrutínio, pois é decisão pertencente ao âmbito da política linguística. Neste sentido, o critério de algumas autoridades de reconhecido prestígio académico, relevância cultural e demonstrado sentido cívico, reunidas entorno a uma entidade prestigiada, de filiação privada ou pública continua a ter, como sempre teve na história da Europa, toda a legitimidade para representar e defender os interesses nacionais de qualquer país, mesmo da Galiza. Por outro lado, toda a importância que a comunicação social tem vindo a adquirir no século XX, e o seu peso no desenvolvimento da língua não nega nem substitui o necessário labor das instituições. Estas não são necessariamente conservadoras ou revolucionárias, de esquerda ou de direita. Simplesmente cumprem uma função na sociedade, lá onde existem.

 

A Galiza, como outras nações frustradas pela história, careceu nos últimos séculos de armas e barões assinalados. Felizmente, no plano cultural, as últimas décadas serviram para desenvolver um amplo movimento de marcado caráter lusófono que, apesar ter sido sistematicamente excluído e combatido pelos governos de Madrid e Santiago, foi capaz de produzir alguns escritores de primeira linha e publicado algumas obras dignas de atenção. É o caso dos saudosos Ernesto Guerra da Cal, Jenaro Marinhas ou Ricardo Carvalho e, entre os continuadores, Carlos Quiroga, António Gil ou Concha Rousia, entre outros.

 

Nesta linha, em Outubro de 2006, durante a realização do V Colóquio Anual da Lusofonia, o Professor Doutor Martinho Montero, escritor e catedrático da Universidade de Vigo, lançou a proposta de criação da Academia Galega da Língua Portuguesa, que recebeu apoios públicos de personalidades e associações, e algumas críticas locais. Montero, que é um dos históricos defensores da unificação linguística do galego com o português, junta ao seu incontestável prestígio intelectual o seu valor como pessoa de consenso no âmbito da lusofonia galega, situando-o na melhor posição para ocupar um papel relevante na Academia.

 

A instituição, que deveria trabalhar pela normalização linguística do português da Galiza, não poderá substituir nem contradizer o labor das associações culturais previamente existentes, de incidência regional ou nacional, que continuarão a desenvolver o tão necessário trabalho de dinamização cultural. A Academia está chamada a exercer um papel de representação da lusofonia galega em organismos como o Instituto Internacional da Língua Portuguesa. Uma academia moderna e dinâmica, livre da sumptuosidade e dos ritos iniciáticos tradicionais, mas não desprovida do necessário simbolismo, que tenha por valores fundamentais a investigação rigorosa, o fomento da unidade da língua, a inserção da Galiza na Lusofonia e a defesa dos direitos dos utentes, responde aos interesses da Galiza e constitui, nesta altura, uma prioridade nacional.

 

Santiago de Compostela, Maio de 2007

 

Ângelo Cristóvão

 

Secretário da Associação de Amizade Galiza-Portugal

 

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