CRISTALINA
Cigana, quase tão larga quanto de altura, perfeito batoque de buço e pelo saliente no queixo, Cristalina rondava aquela idade incerta que todas as mulheres têm depois de casadas e antes de serem velhas.
Saia a roçar o chão, lenço a tapar o cabelo que se adivinhava negro, mão na anca para estabilizar humores ou dar ênfase aos argumentos, poisava por Chaves e seus arredores, ali bem perto da passagem para o outro lado. Não que lá houvesse soltura que por cá faltasse mas qualquer cigano sempre prefere a fronteira do que o enfeudamento a um sítio. E o salto fronteiriço dá a liberdade que a passagem na Alfândega priva. Cigano quer-se livre, noite ao relento, à luz da fogueira, deambulando por aí além, fingindo que compra aqui para vender ali, na realidade vivendo de esmola e expedientes quando não do tráfego ilícito ou mesmo trasfegando o ilícito.
Nada consta quanto à prole de Cristalina, só se lhe conhecia marido. Magro, baixote, patilha descaída, chapéu inclinado sobre o olho esquerdo sugerindo inspiração no Borsalino que ele nunca viu, bigode mal amanhado, toda aquela grande figura de pouca gente cheirando a fumo. Ou será que é o fumo que cheira a cigano? Nome? Ah, sim, claro que era conhecido por Cristalino. Não por mérito próprio mas por ser marido de quem era. E constava que a mulher o zurzia.
Sai fora da dignidade cigana o trabalho assalariado. Um cigano não trabalha por conta de outrem: negoceia, isso sim. Bom produto de transacção é esse, o das relações públicas, a conversa. E também não pede esmola: conversa. Fundamental apresentar-se de fato e colete mesmo que à torreira do Sol. Dá senhorio e o que veda do frio também tapa o calor, sobretudo se o corpo não se esfalfa. Cigano cheira a fumo, não a suor.
E naquele dia a porta da Casa senhorial foi espremida com toques de campainha até alguém acudir à grande aflição.
- Oh Cristalino, o que é que sucedeu assim de tão grave?
- Nada, menino Antoninho, nada. Só queria saber de si, se está bonzinho e se tudo vai bem com o menino Antoninho.
- Oh criatura de Deus! Claro que estou bem. Mas isso é maneira de tocar à porta? Não imaginas que pudesse estar a fazer outra coisa mais longe e não estivesse aqui a trás da porta?
- Oh menino Antoninho, eu só queria saber de si …
- Pois sim, obrigado pelo teu cuidado, está tudo bem, tudo bem. Olha: já comeste alguma coisa hoje?
- Ah …
- Bem, vem daí comigo lá adiante às cozinhas que se há-de arranjar alguma coisa.
E assim era que o Cristalino aceitava o convite para comer alguma coisa, com a dignidade própria de quem condescende petiscar depois de ter ceado como um Abade. Fiquem as aparências, os subentendidos, os silêncios; sobrem os cumprimentos e os salamaleques.
Sossegado o fastio, beberricando um segundo copito para acompanhar a conversa, cigarro de mortalha lambida, eis que chega a Cristalina em busca do marido.
- Oh menino Antoninho. Então o meu homem veio cá cumprimentá-lo?
- Olá Cristalina! Sim, o teu marido é muito simpático e veio cá ver-me. Olha: come também tu alguma coisa apesar de já teres almoçado.
E assim era que também a Cristalina fazia o favor de comer alguma coisa para “fazer o jeito” ao dono da casa.
Acalmados os estômagos e descontraídos os espíritos, era a vez de ser o menino Antoninho a tomar a dianteira da conversa:
- Oh Cristalina. Diz-se por aí que chegas pancada ao teu marido …
- Ah menino Antoninho, ele é mum iducado, mum iducado …
E por esse “mum iducado” se ficava a Cristalina sem deixar de responder mas nada dizendo que se aproveitasse. O Cristalino encolhia os ombros como que a disfarçar do embaraço e o silêncio caía com enorme estrondo sobre a cena da conversa.
Passados dias, correu a notícia que o Cristalino iria a França “fazer pela vida”. Mas o negócio não estava brilhante e a Cristalina ficava ali por Chaves à espera que ele voltasse. Mas a estética da cigana era motivo da chacota popular e um qualquer folgazão perguntou ao marido:
- Oh Cristalino: deixas cá a tua mulher? E se ela foge com outro homem?
- Ah, sim, ela é tão bela que se eu a amarrasse ao tronco do ferrador, era certo que quando voltasse ninguém havia de a ter ido lá soltar.
A cultura cigana é assim: prenhe de virtualidades, de faz de conta, de fingimentos. Vive das aparências, da solidariedade do clã, da faca de ponta e mola ou mesmo da pistola, negando a integração. Mas também há os que passam pelas fábricas de confecção a comprar fins de colecção ou peças com defeito e seguem para as “Feiras de Carcavelos” espalhadas por esse mundo fora. Só que dessas peças com defeito passaram para as de contrafacção e ei-los, radiantes, no seu elemento mais tradicional, a ilegalidade.
Mas há quem acredite que cigano tem que se integrar. Meteram-nos em casas mas eles vivem nas soleiras, todos na rua à conversa e a vender relógios aos parantes nos semáforos. Há os que substituem os relógios e canetas por pequenas embalagens de papel de prata com um pó branco que não sei para que serve … E quando a professora se zanga com o jovem cigano que na escola assumiu alguma atitude menos conforme com as dos “gadjos”, todo o clã se apresenta e espanca a professora, os contínuos e todos que lhes apareçam pela frente.
Mas dentro de algumas gerações, entre 300 e 500 anos no futuro, os ciganos estarão integrados. Isso significará que passaram a comportar-se como nós, os “gadjos”. Perderam as características que há quem tanto aprecie e não hesite em me chamar racista porque não gosto deles. É que esses democratas que tanto apreciam a cultura cigana, esquecem-se de que é essa cultura que os leva a comportamentos desconformes com a nossa cultura, que a convivência não é possível porque eles nos desafiam sistematicamente como aquela criança pequena no supermercado que à minha vista se dirigiu a uma arca frigorífica, agarrou num lombo de vaca impecável e o atirou ao chão só para me incomodar. O pobre do Segurança ali de serviço teve o azar de presenciar o acto de puro vandalismo e viu-se em palpos de aranha para não levar uma facada.
Os democratas integracionistas querem os ciganos com as características deles bem vivas … para os observarem como aos bichos no jardim zoológico.
Integração? Sim, claro! Nos confins da Arábia ou no sul de Espanha em cima de um “tablau”, o zoo a que acorrem os turistas.
Lisboa, Abril de 2007
Henrique Salles da Fonseca
Nota: foi o meu amigo António Teixeira Homem que me contou as histórias da Cristalina e as cenas passaram-se em Samaiões, Chaves, lá pelos anos 80 do século passado, o XX