“L’ÉTAT C’EST MOI” OU NEM POR ISSO?
L’État já foi você, Luís XIV, mas hoje l’État somos todos nós, ou, pelo menos, temos direito a pensar assim. Somos, pois, titulares dos direitos da Res Publica, essa “grande propriedade comum” que é o Estado e é sustentada pelos impostos cobrados em função do nosso trabalho, da actividade que desenvolvemos ou das riquezas que o nosso engenho permite criar.
E, não obstante, comportamo-nos como se ignorássemos ou não valorizássemos essa faculdade que nos foi outorgada pelo Liberalismo e se tornou uma realidade palpável com a Democracia. Temos nas nossas mãos a possibilidade de eleger o governo que queremos, e, no entanto, incorporamo-nos nas hostes abstencionistas, que cada vez são mais expressivas nos actos eleitorais. Temos a possibilidade de denunciar ou tolher o passo aos que lesam a nossa riqueza comum, e, no entanto, calamo-nos ou refugiamo-nos em silêncios timoratos, para não dizer cúmplices. Interesses de grupo (corporativos), alheios ao interesse comum, manifestam-se despudoradamente contra o Estado, em nome das suas próprias conveniências, e, no entanto, muitas vezes juntamo-nos ao coro dos seus protestos sem nos darmos conta de que estamos a agir contra nós próprios. Enfim, ficamos estupefactos com a denúncia ou o conhecimento público de graves crimes de corrupção, mas raramente nos perguntamos se não seremos todos, também, parceiros inconscientes de muitas situações de incumprimento tributário que connosco se cruzam no rame-rame das nossas vidas. Diria, ainda, que, não contente com tudo isso, tornou-se hábito fazer da figura do Estado uma espécie de “puntching ball” onde desferimos as pancadas da nossa raiva ou frustração, numa atitude tão patética como é detestarmos a nossa própria figura reflectida num espelho.
E, para citar alguns exemplos, vem-me à memória o pequeno empreiteiro que me apresentou há três anos um orçamento para a remodelação das duas casas de banho do meu apartamento. O preço pareceu-me deveras inaceitável, com custos excessivos e aparentemente injustificáveis face a outros valores comparáveis. Mas, sem me deixar respirar, logo adiantou o empreiteiro que, se tivesse de passar factura, ao preço apresentado teria ainda de adicionar 17% de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA). Percebi então o jogo sujo e rasteiro do homem. O elevado custo da proposta de orçamento, já de si tão elevado que normal seria estivesse nele incluso o IVA, era um estratagema para me dissuadir de exigir a respectiva factura, a qual, a efectivar-se, não o livraria das devidas obrigações fiscais perante o Estado. Claro que não vou confiar ao leitor a resolução que tomei. É cá com os meus botões, não é?
Continuando a rever a conta corrente dos meus escrúpulos e desleixos cívicos, vêm-me também à mente as ocasiões em que nos restaurantes pago a despesa contraída e só me é entregue um simples talão de máquina registadora, e às vezes nem isso, em vez da factura legalmente exigida. E quem diz restaurantes diz de outros inúmeros bens e serviços adquiridos em circunstâncias similares, em que há sempre um evasor ao fisco à espreita. Só os empregados por conta de outrem e os reformados é que se podem gabar de não figurar na lista do opróbrio, porque a dedução, no próprio vencimento, do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) os vinculam à obrigatoriedade do dever fiscal.
Estes são apenas exemplos comuns de como se ludibria o Estado com a conivência passiva ou parceria do cidadão comum, as mais das vezes por sua incúria e demissão, outras por insuficiente coragem moral para assumir as suas responsabilidades cívicas. E depois, ironicamente, depositamos nas costas largas do Estado todas as responsabilidades e encargos, esperando que ele resolva o que esteve ao nosso alcance prevenir, dissuadir ou evitar. E esperamos sempre que ele seja um cofre inesgotável de recursos para satisfazer todas as nossas justas necessidades e todos os nossos legítimos anseios. Porém, tudo seria mais fácil se déssemos todos uma ajudinha, não fugindo cobardemente às nossas responsabilidades de intervenção e de vigilância em torno daquilo que é nosso, essa “grande propriedade comum”.
Ficaríamos surpresos se pudéssemos imaginar as somas que fogem ao fisco pelos mais variados desvãos, desde os mais irrisórios, mas numerosos e frequentes, aos mais sofisticados pelos valores em presença e pelos métodos utilizados. Os casos corriqueiros que eu mencionei não podem ser desvalorizados por envolverem quantias menores quando comparadas com os valores abrangidos pelos crimes sofisticados. Entre uns e outros a diferença é apenas de grau de frequência. Basta imaginar que os ilícitos mais baratos se assemelham a milhares e milhares de galinhas que vão enchendo o papo diária e paulatinamente. Somando o total dos grãos ingeridos ao fim do ano, o normal é atingir cifras de milhões, variáveis, evidentemente, com a população e a riqueza económica de cada país.
Passando os olhos por dados oficiais divulgados, ficamos a saber que o país com menor índice de corrupção é a Dinamarca, que recebeu nota 10 (corrupção zero). Depois vêm Finlândia, Nova Zelândia, Suécia, Canadá e lslândia. O maior índice de corrupção está nos Camarões, que recebeu 1,5. Em penúltimo lugar vem a Nigéria, seguida pela Indonésia, pelo Azerbeijão, pelo Uzbequistão e pelas Honduras. Se atentarmos nos países em causa, somos levados a concluir que tudo tem a ver basicamente com a educação e com o civismo dos povos.
É um facto que cabe ao Estado, na pessoa jurídica dos nossos representantes na administração dessa “grande propriedade comum”, promover os meios e os processos organizativos susceptíveis de velar pelo interesse da comunidade, quais sejam, polícias fiscais, inspectores, auditorias, tribunais, etc, mas em moldes que se traduzam em eficiência e celeridade na detecção do ilícito e no seu julgamento. Mas tudo isso não dispensa obviamente o sistema imunitário que, pela natureza da sua proximidade e da sua convivência celular com o organismo que é a sociedade, em melhores condições se encontra para cortar o mal à nascença. Ora, esse sistema imunitário somos nós, os cidadãos comuns. Quem recusar o seu papel nesse sistema imunitário nunca poderá dizer: “l’État c’est moi”.
Adriano Miranda Lima