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A bem da Nação

Abade de Baçal

 

 

 

Francisco Manuel Alves

(1865 – 1947)

 

Personagens da cena que segue, ocorrida em Novembro de 1930:

 

  • Maria d’Assumpção d’Abreu Castelo Branco (1892-1972), filha dos Condes de Fornos d'Algodres, casada com Francisco de Barros Ferreira Cabral Teixeira Homem (1889-1966), proprietário da Casa de Samaiões, Concelho de Chaves, local da cena;

  • Padre Francisco Manuel Alves (1865-1947), Abade de Baçal

 

                         

Interior da Casa de Samaiões,  actualmente uma unidade de turismo rural

À mesa do almoço, a dona da casa deu a sua direita ao convidado especial e, após o agradecimento,  deu-se início à conversa:

 

- Hoje sucederam-me três coisas pela primeira vez.

- E que coisas foram, Senhor Abade?

- A primeira foi que me lavei duas vezes.

- Mas estava assim necessitado de tanta lavagem?

- Não, não. É que a certa altura da noite acordei e vi uma luz tão magnífica que julguei ser dia. Levantei-me, lavei-me e arranjei-me para começar o dia mas quando ia a sair do quarto, olhei melhor pela janela e foi então que vi um luar tão brilhante que me pôs na dúvida das horas. Olhei para o relógio e vi serem ainda 4 da manhã. Voltei a deitar-me e pelas 7 levantei-me, lavei-me de novo e comecei mesmo o dia que já despontara de verdade. Assim foi que hoje me lavei duas vezes.

- E qual foi a segunda novidade que hoje lhe aconteceu, Senhor Abade?

- Dormi com uma colcha de damasco.

- Mas, Senhor Abade, cá em casa sempre assim fazemos as camas: sobre as cobertas temos sempre uma colcha para afagar a rudeza das lãs.

- Pois foi esta a primeira vez que não senti a rudeza das lãs.

- E isso perturbou-lhe o sono, Senhor Abade?

- Ah! Claro que não, dormi lindamente até que vi a tal luz que me fez levantar.

- Estimo que se tenha sentido confortável. E qual foi a terceira coisa que lhe sucedeu hoje pela primeira vez?

- Na Celebração, fui acolitado por um fidalgo.

  Capela da Casa de Samaiões

Na verdade, o anfitrião fazia questão de ajudar à missa sempre que ela era celebrada em sua casa e, daí, o facto de o Abade de Baçal ter sido acolitado por um fidalgo.

 

Mas o que significam estas três novidades?

 

Revelam uma vida na maior austeridade em casa sem conforto e com portadas de madeira nas janelas, sem vidros que permitissem a entrada do luar. Revelam uma enxerga de conforto duvidoso, com a rudeza das lãs a roçar o rosto. Revelam a Celebração da Eucaristia para as gentes humildes, sem o recurso aos poderosos para obtenção de prebendas. Uma vida humilde ao serviço de uma Igreja humilde.

 

E foi este homem simples, vivendo nesta austeridade rural trasmontana, que certa vez foi convidado a proferir uma conferência em Lisboa, na Academia das Ciências. Foram os amigos que decidiram mandar fazer-lhe um fato para que o Abade não se apresentasse em Lisboa com a batina coçada e rudemente remendada que sempre usava nas serranias. Mandaram-no talhar “a olho” em Bragança por um alfaiate que nunca terá visto a personagem que havia de o vestir e se acertou no comprimento, sobrou-lhe por certo na largura e no aconchego. O resultado prático não terá sido de estética primorosa e o Senhor Abade apresentou-se na porta principal da Academia onde foi recebido por um porteiro engalanado que mais parecia um Doutor.

 

- O que é que Vossemecê quer daqui?

- Venho aqui para falar de …

- Vossemecê sabe escrever?

- Bem, qualquer coisa vou sabendo.

- Então escreva o seu nome.

 

Sem cartão de visita, buscou o Abade um canto de jornal onde escreveu o nome tendo o porteiro chamado um mandarete a levar o papel lá acima onde reunia a Academia.

 

E eis que passados momentos o porteiro se vê fulminado pelos olhos dos académicos que vieram em tropel ao átrio da Academia das Ciências receber com as maiores honras o conferencista por que aguardavam.

 

E o que se conclui desta passagem?

 

Conclui-se que o povo urbanizado mas ignaro não respeita os humildes de aspecto rural: “Se queres ver o vilão, põe-lhe o chicote na mão”.

 

E contudo, este homem simples, sóbrio e humilde que alguns julgavam um simplório, foi eleito membro da Academia das Ciências.

 

Lisboa, Março de 2007

 

Henrique Salles da Fonseca

 

Sacerdote secular, arqueólogo e historiador, de seu nome Francisco Manuel Alves (Baçal, Bragança, 9.4.1865 - ib., 13.11.1947), filho de Francisco Alves Barnabé e Francisca Vicente. Cursou preparatórios no Liceu e Teologia no Seminário de Bragança, sendo ordenado presbítero (13.6.1889) e logo nomeado pároco, ou abade da sua terra natal, por isso que ficou vulgarmente conhecido por Abade de Baçal, embora por vezes assinasse também Reitor de Baçal. Nunca paroquiou outra freguesia, vivendo uma vida entregue aos cuidados dos paroquianos, à sua lavoura e à investigação arqueológica e histórica, para a qual teve um singularíssimo instinto, sem necessidade de estudos científicos prévios, por isso havendo quem lhe aponte alguma assistematicidade nos estudos. Independente, modesto e sóbrio, misturado com o povo, foi nomeado (1925) director-conservador do Museu Regional de Bragança que hoje em dia ostenta o seu nome. Absorvido na arqueologia, não descurou os interesses da Igreja, participando nas polémicas que perturbaram a diocese no princípio do século XX, em defesa do seu bispo (O caso de Bragança e resposta aos Críticos, 1905, e Notas biográficas do Ex."' Senhor D. José Alves Mariz, bispo de Bragança, Porto, 1906). Deu vasta colaboração à imprensa, havendo artigos seus nos mais inusitados periódicos: (…). Em 1935 foi alvo de grande homenagem: atribuição do seu nome ao Museu de Bragança, condecoração com o Grande Oficialato da Ordem de Santiago, inauguração do monumento pelo escultor Sousa Caldas, sobre projecto do arquitecto Januário Godinho. Membro da Academia das Ciências, da Associação dos Arqueólogos Portugueses, do Instituto Etnológico, vogal da comissão de História Militar e membro de vários institutos académicos estrangeiros. A sua obra principal é constituída pelos 11 volumes das Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, começados em 1909 e terminadas em 1947, fonte incontornável para o estudo da vida, história e valores do nordeste trasmontano.

 In http://www.bragancanet.pt/filustres/abadebacal.html

 

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