CURTINHAS XXXV
Reflexões sobre Democracia: Liberalismo e neo-liberalismo
v Reina por aí alguma confusão ideológica quando se discute o liberalismo económico e a sua excrescência mais recente, o neo-liberalismo.
v É certo que o liberalismo nasceu em berço ideológico e daí o enorme esforço intelectual que preencheu a 2ª metade do séc. XIX e boa parte do séc. XX para demonstrar a excelência inexcedível dos seus princípios (de que Pareto e as teorias do equilíbrio geral são, sem dúvida, belos exemplos).
v Todas essas construções teóricas, umas mais matematizadas, outras mais discursivas – e mesmo aquelas que se lhes opunham – tinham em comum, porém, o seguinte: lidavam mal com os conceitos de dinheiro e de risco, se é que não os ignoravam tout court. E logo dois dos ingredientes essenciais ao modelo (o modelo do mercado) que se queria, apesar de tudo, enaltecer!
v Em boa verdade, defensores e críticos, todos eles se apercebiam claramente de que o modelo do mercado, como então era praticado, tendia a gerar, fosse onde fosse, uma dinâmica imparável de desigualdades que caprichavam em reter na aba esquerda (nos quantis inferiores) da curva de distribuição do rendimento quem tivesse o infortúnio de lá cair. Só que nem uns nem outros estavam intelectualmente preparados para resolver este problema.
v Os defensores porque, imbuídos de preocupações ideológicas, atribuíam isso, não à pureza do modelo, mas ao modo canhestro como ele era levado à prática – e recusavam-se a ver o óbvio: que o modelo do mercado, abandonado ao laissez faire e desprovido das duas regras que referi no artigo anterior, não possui mecanismos que contrariem espontaneamente a exclusão e a consequente ruptura do tecido social (para não falar já da tendência para a contracção do produto potencial através do desemprego).
v Os críticos porque, com preocupações não menos ideológicas, se regozijavam com o que entendiam ser o pecado original do próprio modelo que queriam exorcizar – e afirmavam, sem nada provar, que tudo seria diferente com um ditador iluminado.
v Por razões exclusivamente ideológicas, ainda que de sinal contrário, ninguém parecia muito interessado em desbravar o modelo do mercado e em conhecer-lhe os limites. Hoje, no entanto, já se vão dissipando algumas das dúvidas sobre a verdadeira natureza do pensamento liberal.
v Começa a ser evidente que liberalismo não é sinónimo de ausência absoluta de regras (como pretendia o laissez faire). Muito pelo contrário, é um corpo de princípios e regras que visam manter a sociedade plural e sempre disponível para a mudança. É, também, um crivo que leva a banir regras que espartilhem sem propósito as preferências individuais. É, por fim, um tipo de organização social que necessita de ser completada por soluções que não passam por trocas monetárias, escapando assim à interpretação estrita do próprio modelo.
v O aspecto mais desesperante, porém, resulta do facto de o modelo do mercado funcionar de modo aceitável na esfera real (produção, distribuição, orientação do excedente), mas não dispensar, nem um ditador iluminado (a Autoridade Monetária) na esfera nominal (volume e preço da liquidez), nem transferências de rendimento que parecem, também elas, fazer apelo às luzes de um ditador benevolente.
v Por fim, há a propensão de considerar sistema capitalista como sinónimo de modelo do mercado. Não é. Do modelo do mercado, o sistema capitalista retém, apenas, duas coisas: (a) a organização social baseada na divisão do trabalho; (b) sujeitar a distribuição do produto social e a orientação do excedente a restrições de natureza monetária.
v No mais, o capitalismo é uma das várias formas (e uma forma bastante extremada, aliás) que o modelo do mercado pode revestir. Uma variante na qual o capital financeiro (concentrado num número reduzido de mãos privadas ou no aparelho administrativo do Estado) aparece sozinho em cena para estruturar a sociedade e organizar a distribuição do produto e a orientação do excedente. O que é dizer, no capitalismo, fora do capital financeiro nenhuma diversidade terá maneiras de se manifestar.
FIM
Fevereiro de 2007
a. palhinha machado
Bilhete verde, eis o "ditador iluminado" do capitalismo