CRÓNICAS DO BRASIL
O alimento e os hábitos alimentares cariocas no século XIX
Jean-Batiste Debret
Un dîner brésilien, 1827
Alimentar as pessoas, em todas as civilizações, sempre foi uma histórica preocupação. Mesmo com toda a tecnologia e conhecimentos aplicados na produção de alimentos, muitos países ainda passam fome, seja por falta de desenvolvimento ou por políticas económicas e agrícolas equivocadas.
No Brasil, a promessa de dar alimento à população mais carente foi algum tempo atrás, bandeira eleitoral que apregoava que todo o cidadão brasileiro teria direito a três refeições diárias. O milagre é conseguir isso, num país em que parte considerável da população está desempregada e a outra tem a maioria das pessoas ganhando salário mínimo, que mal dá para sobreviver, a não ser pela renda total familiar ou pela distribuição de cestas básicas, eivada por desvios políticos e corrupção.
O DIEESE (Departamento Internacional de Estatísticas e Estudos Sociais e Económicos) diz que o individuo para ter uma elementar alimentação precisa de 12 itens na sua cesta básica:
Carne, feijão, arroz, leite, farinha de trigo, batata, pão, café, banana, açúcar, ovos, banha ou manteiga. O mais incrível é saber-se que no tempo do Brasil Colónia, mais exactamente, no século XIX, o brasileiro, mesmo o mais pobre, comia três refeições por dia.
Com a chegada de D. João e da Corte portuguesa a 8 de Março de 1808 houve um grande passo no desenvolvimento da Colónia. Hábitos e costumes europeus foram agregados aos da população e registados pelos artistas trazidos pelo rei. O Rio de Janeiro, base dessa recepção, progrediu, apesar do desconforto inicial com o desalojamento das pessoas, a “pedido” do rei, que punha na entrada das casas requeridas para os nobres, as letras PR (propriedade real) e a que os cariocas criticamente interpretavam como “Ponha-se na Rua”.
Certos luxos e refinamentos foram introduzidos pela nobreza e pelos negociantes ingleses, italianos, alemães e franceses. Saraus, passeios, o Rio passa a ter ares europeus num ambiente tropical.
Debret, Auguste Saint Hilaire, Eschwege, D’Allincourt e outros não pouparam elogios e criticas aos habitantes da Colónia portuguesa da América. O que sabemos dos usos e costumes da população do século XIX devemos às viagens, anotações e pinturas desses curiosos pesquisadores.
No quotidiano carioca da época joanina, a refeição principal era em geral do meio-dia às duas horas. A família reunia-se em torno de uma mesa para comer e conversar. A refeição durava mais ou menos duas horas. Os escravos domésticos acomodavam-se no chão e comiam da mesa do patrão. Servir na casa era ambição de todo o escravo, pois teria comida mais à vontade.
Nas famílias pequenas, a senhora da casa tinha por hábito alimentar os negrinhos, filhos dos escravos, com guloseimas, enquanto o senhor ficava na outra extremidade da mesa, após a refeição, revendo papéis e anotações dos seus negócios diários.
A comida era farta. Legumes, frutas, carnes variadas, uma sopa com substância ou um escaldado de farinha de mandioca substituía o pão, não muito comum naquela região.
Galinha com arroz, quitute muito apreciado por D. João, salada de batatas e cebolas, sempre regadas ao bom azeite português, servida com peixes confeccionados das mais variadas maneiras, eram pratos bastante apreciados principalmente nos feriados santificados.
A feijoada, em geral feita com feijão preto e partes menos nobres do porco, era consumida com farinha de mandioca e frutas (laranja e banana) à vontade pelos mais pobres. Por isso não eram comuns as doenças de subnutrição na população.
Em certas regiões do Brasil era costume acrescentar-se na alimentação uma pasta de pimentas ardidas que era “rebatida” pelo chupar de uma laranja.
Iguarias mais exóticas e estrangeiradas como doces (de arroz com canela), vinhos e café após as refeições, geralmente eram consumidas em casas mais ricas e europeizadas.
As frutas como maracujás, mangas, ananases, pitangas, jambos, melancias, jabuticabas, cajás, fruta-do-conde, laranjas, bananas eram sempre fáceis de se encontrar na mesa dos brasileiros, pois quase todas as casas tinham quintais onde cresciam árvores frutíferas. A água era fresca e saborosa, principalmente nas regiões serranas.
Jean-Batiste Debret (1668-1848) francês contratado por D. João para retratar o Brasil e sua população, conta-nos que a hora da refeição era de maneira geral respeitada. A pequena burguesia não atendia fregueses ou pessoas nessa ocasião. Por isso os estrangeiros nesse horário evitavam procurá-la, pois sabiam que iram receber qualquer desculpa ou até mesmo a notícia que não havia a mercadoria procurada. No Rio o empregado comia às duas horas da tarde, após a saída do trabalho. A refeição principal era o jantar servido na casa do negociante brasileiro às 2 horas da tarde e o restante da população ao meio-dia. E havia uma sesta que durava umas 2 a 3 horas, que ninguém interrompia. Já o negociante inglês só jantava às 17 horas, quando fechava o negócio para voltar no outro dia.
O pequeno negociante, na sua casa, comia com os cotovelos na mesa e usava a faca para pegar os alimentos. Já a mulher comia como as crianças, à moda asiática, sem talheres, com os dedos e às vezes com o prato sobre os joelhos. As crianças nas esteiras, de cócoras, se lambuzavam.
Com a corte vieram os estrangeiros trazendo outros costumes e hábitos alimentares aos modos de vida do carioca. Surgiram estabelecimentos na Rua do Rosário, centro do Rio de Janeiro, que serviam alimentos. Padarias, confeitarias, hotéis importavam o luxo europeu. Novos produtos alimentares apareceram. Os nativos aprenderam a aprecia-los, a fazê-los e a servi-los. A sociedade com o tempo se refinou, fazia saraus, ia ao teatro. Nas confeitarias encontros de poetas e literatos. O Rio passou a ser a cidade gastronómica e cultural do Brasil.
Uberaba, 11 de Fevereiro de 2007
Maria Eduarda Fagundes
Dados bibliográficos
Crónica de Época. Antologia da Alimentação no Brasil. (Luís de C. Cascudo).