MUROS NA NOSSA CONSCIÊNCIA
Quando, em 9 de Novembro de 1989, caiu o ominoso Muro de Berlim, selando o acto oficial da reunificação das duas Alemanhas, garrafas de espumante rebentaram e foguetes estalejaram. A alegria foi particularmente esfuziante nos dois países até então desirmanados, mas contagiou o mundo ocidental em geral.
No entanto, em outro quadrante civilizacional continuava intacto um outro muro abominável a separar dois povos. Refiro-me ao muro (vedação de arame farpado) de cerca de
Todavia, a realidade não tardou a vir ao de cima, surpreendente realidade, ou talvez não, qual crisálida que rasga o seu invólucro para libertar um novo ser. Enquanto o problema do Médio Oriente continuou sem solução credível, a nova realidade desvendou logo novos e diferentes cenários de conflito: a violenta implosão da República Socialista Federal da Jugoslávia em 1991, com os episódios horrorosos da Bósnia-Herzegovina e do Kosovo, que não se julgavam já possíveis
Portanto, o fim da guerra-fria não aliviou o ambiente de crispação e confrontação, antes parece tê-lo acirrado de forma insidiosa. É como se tivesse sido aberta uma válvula de escape para caucionar toda a libertinagem na cena política mundial. De início, ainda se pensou que a erosão do bloco leste pudesse dar lugar a uma nova e mais concertada ordem mundial, expurgada da hegemonia política de qualquer potência, ou seja, a emergência de um mundo multipolar. Mas quem tinha a faca e o queijo na mão não entendeu assim. Os Estados Unidos, pois claro, a superpotência subitamente triunfante, não quiseram deixar os seus créditos por mãos alheias e não tardaram a reivindicar a sua hegemonia. Se com o presidente Clinton houve uma fase inicial de aparente introversão estratégica, pautada por uma certa hesitação sobre o novo papel dos Estados Unidos no teatro mundial, as dúvidas caíram por terra quando aquele país não diminuiu praticamente o seu orçamento militar e começou a intervir em força no plano externo e em várias regiões. Ainda assim, nada que se visse como prelúdio da arrogância que o segundo George Bush viria a assumir mal conquistou o poder, iniciando uma postura que se tem classificado como “unilateralismo” ou “isolacionismo”. Basta lembrar a posição de Bush face ao Tribunal Penal Internacional e ao Protocolo de Quioto.
Com a queda da economia marxista, a palavra “globalização” entrou no nosso léxico na década de 1990, quando os novos meios de comunicação electrónicos, os investimentos e o marketing a nível mundial abriram as portas a uma economia que se pretendia global. Tendo como objectivo esbater o fosso entre o terço do mundo que vive na abastança e os dois terços que vivem em graus variáveis de miséria, a globalização vai, no entanto, dividindo opiniões. Não é um tema pacífico. E que resultados se viram até agora, a não ser cavar-se o fosso cada vez mais fundo, sem solução à vista para os problemas do mundo mais pobre? Segundo dados oficiais, o flagelo da fome atinge cerca de 800 milhões de pessoas nos países subdesenvolvidos, cerca de 270 milhões nos países em transição e cerca de 11 milhões nos países desenvolvidos. Estima-se que 820 milhões de seres humanos em todo o mundo sejam vítimas de grave subnutrição. Em África, o continente mais martirizado, são pouco animadoras as perspectivas de desenvolvimento, porque se a agricultura podia em muitos países ser uma arma estratégica para o combate à pobreza, o seu crescimento sucumbe face à esmagadora concorrência dos países ricos (UE e EUA), cuja agricultura é fortemente subsidiada pelos respectivos governos. Quando se sabe que há já populações em África com um consumo diário de apenas 57 dólares, choca lembrar o desperdício permitido em outras paragens.
A situação lastimosa prevalecente no chamado terceiro mundo não pode modificar-se se as ajudas que recebe do mundo rico não excedem os 0,25 por cento do PIB daquele. Seria necessário muitíssimo mais, mas é a própria FAO que não prevê que a fome possa extinguir-se nem daqui a dezenas de anos. E o resultado é esta demanda que diariamente milhares de seres humanos tentam empreender em direcção aos países ricos para fugir à pobreza, calculando-se, segundo as Nações Unidas, em 200 milhões o número de emigrantes em todo o mundo. Esses 200 milhões já lá estão, mas receia-se a grande retaguarda que vai engrossando assustadoramente os seus efectivos. O futuro será negro se não subirem ao palco das decisões internacionais mais homens da envergadura moral de Muhammad Yunus, o prémio Nobel da Paz de 2006. Homens como estes podem reformatar a consciência das grandes empresas transnacionais que dominam as finanças e a produção mundial, sob a égide de um capitalismo globalizado. Por enquanto, o que se vê é criar riqueza, mas não promover a sua distribuição equitativa; globalizar os mercados, mas sem verdadeira solidariedade; eliminar barreiras comerciais, mas ao mesmo tempo impedir a circulação das pessoas; defender o livre mercado como um direito, mas dificultar o acesso aos direitos básicos.
Muhamad Yunnus: a evidência do desenvolvimento endógeno
E perante esta (des)ordem mundial, perante a ineficácia das políticas ou a falta delas, como reage o mundo rico? Cerca-se com muros. Protege-se para não ser invadido por aqueles que violam as suas fronteiras para tentar mudar o seu destino. Apetece dizer que não houve suficiente exorcismo à beira das ruínas do Muro de Berlim, antes pelo contrário, tudo indica que o feitiço se virou contra o feiticeiro, donde se pode dizer que a globalização está a produzir um grande e terrível paradoxo. E é assim que vimos construir o muro na fronteira dos Estados Unidos com o México, o muro israelita na Cisjordânia, o muro de Marrocos e os muros de Ceuta e Melilla, enquanto o da Coreia continua impregnado do cimento ideológico de quem o mandou construir. Não vale a pena falar do “muro” que envolve Cuba, por obra e graça do seu presidente, porque isso é já do domínio da arqueologia.
Fronteira entre os México e os EUA: globalização sim, mas ...
À excepção dos muros de Israel, da Coreia e de Marrocos, que têm finalidades mais de ordem política e de segurança, os muros dos Estados Unidos e os de Ceuta e Melilla destinam-se a barrar as ondas de emigrantes ilegais que demandam a direcção norte. No caso dos de Ceuta e Melilla, estão em causa os emigrantes africanos, magrebinos e subsaharianos, mas a esses muros há ainda que acrescentar os “muros” flutuantes constituídos pelas unidades navais que patrulham as fronteiras marítimas do Sul da Europa, com especial destaque para a Espanha e as ilhas Canárias. O muro construído pelos Estados Unidos, iniciado há pouco tempo e não sei se já concluído, visa impedir o fluxo da emigração clandestina de mexicanos. Com uma extensão de
Por enquanto, auspiciamos que a União Europeia não siga o exemplo dos Estados Unidos e venha a murar também toda a sua orla meridional, o que seria a prova derradeira de que o mundo ocidental perdeu o norte. Mas mais preocupantes que muros de alvenaria ou de arame farpado são os muros que erigimos na nossa consciência.
Tomar, 10 de Fevereiro de 2007