CURTINHAS XXXIV
Reflexões sobre Democracia: Democracia e Modelo de Mercado
v Tal como a democracia, também o modelo do mercado é uma forma de organização social que integra espontaneamente a diversidade (das preferências individuais à oferta de bens e serviços) e a mudança (na maneira como o produto é distribuído, e o excedente, orientado).
v E tal como a democracia, também o modelo de mercado não conduz a nenhum óptimo (aqui, espero que os leitores mais devotos da teoria económica venham interpelar-me a propósito do óptimo paretiano).
Vilfredo Pareto (1848 - 1923)
v A virtude de ambos torna-se realidade quando evitam que situações indesejáveis se perpetuem: a todos iguais oportunidades; a cada um o seu resultado – e a convicção de que o novo dia trará oportunidades renovadas.
v O modelo do mercado pouco tem a ver com o laissez faire ou com a ideia de que qualquer um, deixado a si próprio, acabará sempre por encontrar “o seu caminho” por entre os outros.
v Pelo contrário, exige regras claras e universais – e exige-as a dois níveis: (a) a priori, para que cada um possa manifestar validamente, e com igual efeito, o sentido da mudança que deseja; (b) a posteriori, para corrigir a tendência centrífuga (principalmente, através da dinâmica das restrições monetárias) que vai empurrando continuamente uns quantos para fora do mercado (excluindo-os, por esse facto, de participar no processo produtivo e, consequentemente, na distribuição do produto social - depois de os ter afastado já das decisões sobre que orientação dar ao excedente).
v Dito de outro modo, regras que assegurem a igualdade de oportunidades para todos (a level playing field, na feliz expressão anglo-saxónica), e regras destinadas a reintegrar sistematicamente os que ficarem marginalizados e excluídos (para manter intacto o produto potencial).
v Na origem de tudo isto está a divisão do trabalho (e o consequente abandono da auto-suficiência familiar), que não é compatível com toda e qualquer forma de organização social. No limite, só dois modelos conseguem realmente sustentá-la: o modelo do mercado e o modelo do ditador iluminado.
v Os pontos que tornam possível comparar estes dois modelos são: (a) o primado das preferências individuais (princípio eminentemente ideológico); (b) a variabilidade (ou diversidade) das preferências individuais (uma evidência empírica); (c) o facto de o ciclo real (produção/distribuição) ser um processo “no tempo” durante o qual as preferências individuais variam, ou podem variar (outra evidência empírica); (d) a inacessibilidade da informação completa sobre algumas condicionantes da produção - mas, acima de tudo, sobre as preferências individuais, em cada momento (uma racionalização a partir da experiência, e a diversidade, uma vez mais).
v De alguma maneira, o modelo de mercado acolhe a incerteza e o risco como ingredientes essenciais (ou inevitáveis, tanto faz) da actividade económica - e com eles procura conviver, recorrendo às regras que referi mais acima. Daí ser ele frequentemente acusado de incentivar excessos de produção – de ser o modelo do desperdício.
v O modelo do ditador iluminado, pelo contrário, ao pressupor a informação completa (ainda que desigualmente distribuída), mais do que ignorar a incerteza, rejeita-a – opondo-se activamente (apetecia-me escrever militantemente) a tudo o que considere ser fonte de risco (como a diversidade e a variabilidade das preferências individuais, por exemplo). Neste ponto, Salazar e tantos dos que mais acerrimamente se lhe opunham coincidiam.
v É, por conseguinte, a atitude perante o risco (gerado, em larga media, pelas características das preferências individuais estimuladas pela inovação, mas podendo ter também causas naturais) a pedra de toque que distingue estes dois modelos um do outro.
v Acontece que, quando se condiciona directamente as preferências individuais, “congelando-as”, para desse modo abolir o risco (ainda que sob a melíflua intenção de poupar as pessoas a consequências traumatizantes), é o modelo do ditador iluminado que está a falar mais alto.
v E é ainda o modelo do ditador iluminado a prevalecer quando se exorciza a sujeição de cada um a restrições de natureza monetária (quem tem dinheiro, compra; quem não tem dinheiro, sonha) - sem as quais, bem vistas as coisas, não seria possível nunca compatibilizar produto disponível e somatório das preferências individuais espontaneamente manifestadas.
v A alternativa ao constrangimento das restrições monetárias é, recordo, ou o desprezo pelas preferências individuais e pela livre escolha (pela diversidade, em suma), como faz o modelo do ditador iluminado, ou a apropriação violenta que estilhaça a divisão do trabalho.
v A ironia é que o modelo do mercado também não dispensa um ditador iluminado na esfera nominal (do qual se espera que fixe, se não o volume, pelo menos a variação da liquidez em circulação e o preço de a emitir ou criar). Feitas as contas, lidar com a incerteza e o risco, afinal, não é tão fácil como à primeira vista parece. (cont.)
Lisboa, Fevereiro de 2007
a. palhinha machado