DE ATAQUES CIRÚRGICOS A GUERRAS SUJAS
No Verão do ano passado, quando fruía pacatamente a “silly season”, não me sentia com a paz interior de outros verões. Estando ao rubro o conflito no Líbano, dificilmente poderia imaginar nessa altura as delícias de um inebriante pôr-do-sol sobre o extenso deserto da Arábia ou a beleza acolhedora de um oásis da Síria com as suas tamareiras e figueiras. No entanto, estas imagens poderiam ser o pano de fundo de uma vida de paz e prosperidade de quem teve o benefício da abundância de recursos petrolíferos que Deus, nosso senhor e pai de todas as criaturas, decidiu um dia entesourar nos extensos areais do Médio Oriente.
Mas não, abri um dia o televisor e atingiu-me brutalmente o choro entrecortado de uma rapariguinha libanesa de 10 anos, única sobrevivente da bomba deflagrada perto do automóvel em que se fazia transportar com sua família. Logo depois, foi o olhar alucinado de uma mãe libanesa que queria fugir do inferno com os seus cinco filhos e não tinha transporte. E tudo isto porque o Líbano estava a ser sistemática e “cirurgicamente” bombardeado por Israel como táctica eleita para atingir os santuários do Hezbollah sem ter de entrar no território, em particular nas cidades, para se envolver num confronto de peito aberto com as forças daquela organização. São os chamados bombardeamentos ou ataques cirúrgicos, lançados por meio aéreo ou por plataformas terrestres contra alvos referenciados em áreas habitadas.
De há uns anos a esta parte, tornou-se paradigma das estratégias e tácticas das guerras contemporâneas o chamado “ataque cirúrgico” contra alvos de importância crítica para o inimigo, a fim de o desgastar, destruir ou reduzir o seu potencial de combate, ou então para amolecer o seu moral e levá-lo a render-se. Mas este conceito configura, acima de tudo, um estratagema que se destina a evitar ou minimizar o emprego das forças terrestres, de modo a acautelar a ocorrência de baixas significativas, dada a normal reacção negativa da opinião pública dos países ocidentais sempre que as baixas atingem proporções volumosas entre as fileiras dos seus exércitos. E com mais clamor quando são guerras “inventadas” ou com tíbios propósitos políticos que não encontram acolhimento consensual na sociedade.
Mas se o ataque cirúrgico poupa a vida do soldado porque o preserva do confronto directo com as forças do outro lado, o que estatisticamente significa a probabilidade de baixas mais volumosas, tem o contraponto de pôr em risco inevitável as populações civis no seio das quais se resguardam as zonas dos alvos militares. É que nem o instrumento tecnológico é infalível nem o olho “cirúrgico” do bombardeiro ou artilheiro podem assegurar uma perfeita “operação”, donde a consciência geral assumida de que é uma pura falácia negar a ocorrência de riscos e danos humanitariamente inaceitáveis entre quem não é parte activa na guerra. Como vimos na guerra dos Balcãs e na do Iraque, com a maior desfaçatez se têm bombardeado cidades e povoações sempre que, de antemão, se admite que nelas se acoitam forças inimigas, núcleos importantes da sua estrutura ou alvos considerados remuneratórios. As bombas teleguiadas e lançadas de plataformas aéreas ou terrestres são tidas como inteligentes, no mínimo susceptíveis de identificar com precisão o alvo visado, mas a realidade demonstra que isso nem sempre acontece e basta lembrarmos as numerosas vítimas civis dos bombardeamentos de Belgrado, de Bagdad e, mais recentemente, do Líbano. Os chamados dispositivos de referenciação e guiamento das armas erram com frequência, as mais das vezes porque o alvo atingido não é o que se pensou ser quando foi identificado e visado. Além disso, raramente a bomba deflagra sem efeitos colaterais sobre o que se localiza próximo do seu raio de acção. O erro de desempenho, como se tem visto, ocorre com frequência porque quem acciona os dispositivos é um homem, um homem com todas as suas limitações de ordem física e psicológica, para não dizer de ordem moral. E assim, pelos seus efeitos desastrosos sobre as populações civis, temos de considerar sujas estas guerras.
Tiro tenso, frontal e directo ou ...
... tiro curvo, longínquo e escondido
Com esta constatação, podemos então reconhecer que os anos derradeiros do século XX e o início deste século vieram colocar-nos perante problemas de consciência civilizacional, com a agravante de pôr em causa exactamente as nações que se consideram guardiães da civilização humana. Porque para poupar os seus soldados têm sacrificado civis do lado contrário. Ao longo da história, os exércitos se constituíram como braços armados das nações para que pudessem ser eles a fazer as guerras e a sofrer as suas agruras e não a comunidade como um todo, dentro da qual há que proteger os mais vulneráveis e indefesos. Isto quer dizer que se a nação escolhe os homens para a sua defesa, a intenção é não expor ao perigo directo toda a comunidade Devia ser rigorosamente respeitado o princípio universal de que se os soldados existem é precisamente para fazer a guerra e, se necessário, morrer nela, em defesa da sua terra e dos seus. Perante este princípio, seria de esperar que os soldados olhassem para os civis do lado contrário com mútuo sentimento humanitário. Princípio eivado de grande valor ético-moral, por que não julgá-lo pertença irrecusável da nossa bagagem antropológica? Mesmo sabendo que a guerra é um fenómeno horroroso e que nem sempre se evitam as condutas desviantes, cremos, no entanto, que os impulsos sucessivos da civilização têm de obrigar o homem a uma conduta moral mais consentânea com o progresso material que vai logrando atingir.
Do evolucionismo justo é esperar que o entrelaçamento de factores morais, filosóficos, religiosos e científicos leve o homem, se não a evitar a guerra, pelo menos a rodeá-la dos maiores escrúpulos. Contudo, parece que isso não é conquista ainda dos nossos dias, a avaliar pelos violentos acontecimentos que tèm ensombrado os primeiros anos deste milénio. Que pior ainda ficam quando o ódio religioso, étnico ou tribal lhes adiciona a carga suplementar da irracionalidade, como, infelizmente, se tem visto nas ruas de Bagdad.
É tempo de lançar um brado uníssono de indignação.