LIDO COM INTERESSE – 12
Título: “História de Lisboa”
Autora: Dejanirah Couto
Tradutor: Carlos Vieira da Silva
Editora: Gótica
Edição: 9ª - Setembro de 2005
Maître Corbeau, sur un arbre perché,
Tenait en son bec un fromage.
Maître Renard, par l'odeur alléché,
Lui tint à peu près ce langage:
"Hé! bonjour, Monsieur du Corbeau.
Que vous êtes joli! que vous me semblez beau!
(…)
Pois é assim: cada vez que me cruzo com um «maître», logo me lembro daquela fábula de La Fontaine. Desta vez, foi a autora do livro, Dejanirah Couto, «Maître de Conférences» numa Universidade parisiense que serviu de pretexto à minha recordação e confesso que os próprios Mestrados me fazem sempre lembrar qualquer coisa equiparável a um colégio para corvos. Ideias que nos ficam da infância quando no liceu, o Charles Lepierre, nos obrigavam a decorar poesias como forma de exercício da memória “en même temps” que íamos aprendendo alguma coisa da cultura francesa.
Lá pelo meio da leitura deste livro (389 páginas) pretendi saber mais alguma coisa sobre a Autora cujo nome me soava um tanto ou quanto exótico e naveguei pela Internet à procura de algo de jeito. Acabei por saber que é natural de Lisboa, que o seu pai é oriundo de Goa, que na juventude militou pela esquerda e por isso se exilou em França onde permanece como professora universitária no ramo da História.
Quanto ao livro propriamente dito, começa nos tempos pré-históricos em que a esta região havia quem chamasse Ofiuza, a terra da serpente. Passando pelos fenícios, romanos, visigodos e árabes, de tudo nos vai dando contas a narrativa minuciosa ao estilo académico, sabedor, frio. Bem nítidas as cenas da reconquista cristã e interessante a divisão em capítulos com os antecedentes de Lisboa como potência marítima, a idade da glória e consequente castigo e finalmente a lenta aprendizagem da modernidade. A cronologia acaba em 1999.
O estilo literário tem por certo muito a ver com o trabalho do Tradutor – a lisboeta Autora escreveu o original em francês – pelo que não me refiro a esse particular. O que me chamou a atenção foi a tal forma académica e fria ao estilo de uma tese de doutoramento com que a Autora nos “educa” bem para além de meio da obra transformando-se a pouco e pouco numa reportagem que nos faz viver o ambiente da Lisboa dos nossos dias como se por lá nos estivéssemos a passear. Tive a sensação de que eu próprio podia aparecer numa das páginas dos capítulos finais e senti-me profundamente envolvido em tudo quando já na antepenúltima página aparece um parágrafo que não resisto a transcrever: «A Alameda [Afonso Henriques] é ainda uma fronteira invisível que separa dois mundos: para trás a que usa várias vezes o mesmo óleo de fritar; para a frente, a das grandes lojas com cosméticos de importação.» Eu vivia do lado dos cosméticos, cheio de sol e sempre achei que aquele lado do óleo de fritar era sombrio. Sempre pensei isso, nunca o tinha dito e foi necessário ler esta «Mestra de conferências» emprestada a Paris para finalmente o fazer. Esta é uma das realidades mais flagrantes da nossa cidade: a proximidade geográfica de estruturas sociais não incompatíveis mas dificilmente miscíveis. Bastaria aquele parágrafo para um sociólogo dissertar durante decénios.
E na ronda que fiz pela Internet à procura de referências sobre Dejanirah Couto, deparei com críticas ferozes ao livro e à Autora, dando a entender que nele se diz mal dos lisboetas por despeito de quem o escreveu. Não partilho dessa opinião. Pelo contrário, pareceu-me muito realista, historicamente critico e abdico totalmente das referências bibliográficas para dar à obra o valor que lhe reconheço: um retrato muito fiel desta cidade que me viu nascer, de que tanto gosto mas a que reconheço certos pecadilhos, como aquele que se refere na página 221 sobre o meu aparentado do séc. XIX José Cesário Sales.
Conclusão: gostei e recomendo.
Lisboa, Janeiro de 2007
Henrique Salles da Fonseca