Heresias - XXIV
A DÁDIVA COMO MODO DE GOVERNAR– I
- ...E eis-nos a um passo da terra do leite e do mel. Uma terra generosa como só na Bíblia: o leite a jorrar das fontes e o mel a pingar das árvores. Dádivas e mais dádivas. É só estender o braço e colher.
- Semear, cuidar? Um ferro. Que trabalhem os “jinns” - pois já é tempo de esses espíritos traquinas fazerem algo de útil.
- Antes de prosseguir, uma declaração de princípios: há muito que considero da maior importância para a vida política portuguesa que todos os partidos com representação parlamentar tenham, por uma vez que seja, a oportunidade de pôr à prova os seus programas através da governação. Mais do que um direito, é uma exigência: o pêso de ideários políticos que, por via do protesto e/ou da promessa, vendem ilusões é demasiado grande para uma sociedade frágil como a nossa.
- Para que o debate político não se fique pelo despique entre ideários, a prova-de-fogo da realidade é fundamental. Infelizmente, da realidade só nos são dadas, quase desde o berço, visões ideológicas que pouco ou nada adiantam para este efeito.
- Como é, então, num relance, a realidade factual das sociedades mais desenvolvidas, onde todos os ideários políticos são, tarde ou cedo, postos à prova?
- Repare, Leitor, que, hoje em dia, as sociedades desenvolvidas são economias de base contratual: a participação no processo produtivo, a distribuição (e a utilização) do produto e do rendimento, além da orientação do excedente económico, acontecem quase sempre por via de contratos.
- Contratos de vários tipos, de onde sobressaem os contratos sinalagmáticos (os que se desdobram numa prestação e numa contraprestação) - e, de entre estes, aqueles em que contraprestar significa pagar um preço em dinheiro. Designarei estes últimos por contratos monetários.
- E é por isto que as sociedades desenvolvidas são Estados de Direito com sistemas de pagamentos razoavelmente eficientes.
- Estados de Direito - para imporem a segurança jurídica sem a qual poucos se atreveriam a celebrar contratos, por não saberem se alguma vez poderiam exercer plenamente os direitos que assim adquirissem.
- Sistemas de pagamentos - cuja finalidade é, precisamente, criar (ou emitir), pôr em circulação, movimentar e extinguir o dinheiro (melhor, a liquidez) que permite celebrar e levar a bom termo contratos monetários.
- Depois da desmonetização do ouro (em 1971), dinheiro (liquidez) é dívida - exclusivamente dívida.
- [Excepção feita à moeda metálica (produzida e posta a circular pelo Tesouro). Mas mesmo esta tem um valor facial (ou poder liberatório) muito superior ao seu valor intrínseco - e, aliás, é uma pequeníssima parcela da liquidez em circulação. Vou ignorá-la no que segue.]
- O facto de a liquidez (o dinheiro) ser única e exclusivamente dívida (de Bancos Centrais e de Bancos Comerciais) - dívida criada para financiar mais dívida (agora, de Governos, de outras Instituições Financeiras, de Empresas não Financeiras e das Famílias) - abre caminho a dois tipos de crise económica que, regra geral, se sucedem: primeiro, o sobre-endividamento; depois, o rápido desendividamento. A recente crise financeira internacional (2007/2010) e a crise das Dívidas Soberanas na Zona Euro (2010-?) são disto excelentes exemplos.
- A liquidez denominada em moeda nacional não é mais do que dívida:
- Dívida “à vista” do Banco Central - as notas (moeda fiduciária), que todos conhecemos, e a moeda escritural do Banco Central (liquidez primária), que só os Bancos Comerciais (sob a forma de Reservas) e o Governo (sob a forma de depósitos em conta-corrente) conhecem;
- Dívida “à vista” dos Bancos Comerciais - os depósitos à ordem.
- Há ainda a liquidez em moeda estrangeira (só as divisas convertíveis entram para este cômputo):
- Dívida “à vista” dos Bancos Centrais de outros países - em geral, detida pelo Banco Central nacional (nas economias “dollarizadas” também sob a forma de moeda fiduciária na posse da população);
- Dívida “à vista” de Bancos Comerciais não residentes - quase sempre sob a forma de saldos credores detidos pelo sistema bancário nacional sobre Bancos Correspondentes estabelecidos e a operar no estrangeiro (saldos designados na gíria por working balances/fundos de maneio).
- Liquidez primária à parte, a composição mais frequente do volume de liquidez em circulação (também designado por M1) é: moeda metálica (0%-2%), moeda fiduciária (5%-10%) e depósitos à ordem (88%-95%). Nas economias “dollarizadas” há bastante mais moeda fiduciária em circulação, boa parte dela denominada em moedas estrangeiras.
- Vendo os contratos monetários por outro prisma: numa sociedade desenvolvida não há quem não esteja sujeito a uma restrição de natureza monetária (restrição nominal ou restrição de liquidez):
- Quem tem dinheiro - pode dar expressão e concretizar as suas intenções (preferências individuais, planos de negócio, orçamentos, etc.) através de contratos (contratos monetários), na exacta medida do dinheiro que possua ou detenha;
- Quem não tem - não pode.
- Deste modo, nas sociedades desenvolvidas, só é agente económico quem tenha capacidade para entrar em contratos monetários - e só terá capacidade para entrar em contratos monetários, como contraparte pagadora, quem possuir uma restrição de liquidez capaz de comportar o preço a pagar.
- Consequentemente, todos os agentes económicos estão sujeitos a pelo menos uma restrição de liquidez que condiciona a concretização das suas intenções seja em que mercado for (mas as restrições nominais não são todas iguais, como veremos num próximo escrito).
- O modelo de mercado é este modelo que confia aos contratos (isto é, à vontade individual) - e, em especial, aos contratos monetários - já o modo como as actividades económicas se organizam e interagem, já, o desenho da malha social. As sociedades desenvolvidas são, cada uma à sua maneira, a expressão do modelo de mercado: são economias de mercado.
- É usual considerar-se “capitalismo” sinónimo de modelo de mercado. Em boa verdade, “capitalismo” é uma forma extrema do modelo de mercado: aquela em que, não só o tecido económico, mas também a organização social são determinados, única e exclusivamente, por contratos monetários. Ali, tudo se subordinará às restrições nominais (ou seja, à posse do dinheiro).
- É de tradição afirmar que a “mão invisível” de A. Smith são os mercados. Não é tal. É, sim, a restrição nominal, a outra face dos contratos monetários como motor da actividade económica. Mercados sempre existiram na Europa, mesmo quando (entre o séc. IV e o séc. XVII) por lá prevalecia (com diferenças de local para local, é certo) um modelo que assentava na extorsão, na dádiva e na partilha (o modelo senhorial, também designado, sem grande rigor, por modelo feudal) - e os contratos monetários tinham, por esses tempos, uma expressão muito, muito residual.
- Smith; no séc. XVIII, assistia a uma sociedade (a da Grã-Bretanha e, em especial, a da Escócia): (i) que era moldada cada vez mais pelo comércio e pelos contratos monetários que impulsionavam a vida económica (o modelo de mercado); (ii) onde a restrição nominal ganhava crescente importância para o sucesso individual; (iii) e onde o modelo senhorial entrava em lento e irreversível ocaso. O livro “The Wealth of the Nations” (e não “of the Kingdoms” como se esperaria num ambiente ainda senhorial) é um olhar penetrante - e uma reflexão profunda - sobre o sentido de todas essas transformações que prenunciavam a Revolução Industrial.
- Em vista disto, cabe perguntar: Para onde leva a dinâmica dos contratos? Como evoluem as economias de mercado?
- Mas cabe perguntar também: Como articular uma realidade eminentemente não-contratual (a dádiva) em sociedades que, em larguíssima medida, são moldadas e dinamizadas por contratos?
(continua)