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A bem da Nação

A PENA VERRINOSA


Tirando-o da minha intimidade, quero partilhar convosco o seguinte pensamento:

Com frequência, desde há algum tempo, têm vindo a circular na Internet excertos de "As Farpas" de Eça de Queirós com a finalidade de denunciar o aparente paralelismo entre os tempos queirosianos e os tempos actuais. Na verdade, Eça utilizou a sua pena para zurzir sem apelo nem agravo a sociedade do seu tempo. Para isso, não só fez uso das suas crónicas, mais tarde compiladas em As Farpas, juntamente com as do Ramalho Ortigão, como, nos seus romances, pôs na boca dos seus personagens mais sagazes os desabafos mais desanimadores sobre o estado do País e da sociedade de então. A expressão "isto é uma choldra" é a que mais serviu o seu intento. Por outro lado, o próprio Eça, quando não falava por interposto personagem, não perdia o ensejo de mostrar o seu desprezo pelo país onde nasceu e se fez homem, mormente lá fora, onde exerceu os seus cargos diplomáticos. Poder-se-á pensar que o Eça, naqueles países (Inglaterra e França) se sentia purificado e renascido, julgando-se porventura senhor de uma auréola que lhe permitia olhar o seu Portugal de soslaio e com desdém.

Acontece que o consagrado romancista com isso criou um paradigma qualificativo que desde então é utilizado de forma recorrente por todos aqueles, sobretudo intelectuais, que julgam haver apenas motivos para desconsiderar o país e descrer das suas capacidades. Mas o problema é que os que criticam, regra geral gente supostamente da elite social ou intelectual, dificilmente conseguem disfarçar as suas próprias frustrações ou despeito por não conseguirem aceder por mérito próprio a lugares a que se acham com direito. E cabe aqui especular se o nosso Eça não estaria nessa situação, ele que poderia ter enveredado pela política activa para corrigir os males que abundantemente denunciava. Mas não, era arriscado, mais seguro era um cargo diplomático. Se virmos bem, podemos encontrar na actual sociedade personalidades que muito criticam, às vezes gratuitamente, mas que calariam a boca mal ascendessem aos privilégios que são alvos da sua censura ou aos postos do poder para os quais dirigem a sua sanha verrinosa. A memória é ainda fresca sobre os inúmeros casos de figuras de partidos que, desde Abril de 1974, entraram em rotura com os seus correligionários, saltando de partido em partido, só por não terem sido escolhidos para ambicionados cargos na estrutura partidária ou no governo da nação.

É indiscutível que se instalou no espírito dos portugueses um baixo sentimento de auto estima desde a campanha deletéria iniciada por Eça e Ramalho. Desde a Monarquia Constitucional até aos tempos de hoje, passando pela Primeira República e pelo Estado Novo, esse estado de espírito permanece incólume e não há meio de se conseguir uma regeneração. Poder-se-ia perguntar se esta patologia mental tem alguma coisa a ver com o regime democrático, onde para alguns medrará por causa da nossa aparente dificuldade em visar o desígnio nacional, mas a questão cai logo por terra se tivermos presente que o tempo da ditadura salazarista também não lhe trouxe cura. E sublinhe-se o paradoxo de a ditadura ter sido imposta precisamente por causa desse mesmo mal.

A verdade é que os estrangeiros não nos vêem com o mesmo pessimismo com que nos vemos a nós próprios. A verdade é que os portugueses conseguem singrar lá fora e realizar os seus projectos. A verdade é que dificilmente se vê um espanhol, um inglês ou um francês a dizer que o seu país é uma "choldra".

E outras mais verdades se poderiam enunciar. Até já tenho recebido mails com dizeres do género: "Ó Eça volta novamente!" Para fazer o quê? Para ser mais um demolidor do moral da Nação? Provavelmente mais um invejoso sedento de mordomia? Não, desses o País não precisa. O País precisa, sim, é de tomar consciência de que é capaz de triunfar como os seus parceiros da Europa. Para isso, a sociedade civil tem de repensar a sua atitude e de saber assumir e partilhar as responsabilidades colectivas. É urgente acabar com o pensamento mesquinho e com a estreiteza provinciana com que olhamos a Pátria. A começar pelas elites intelectuais e pelas organizações partidárias. A verdade não pode ser para eles tão multiforme, não pode ser uma se estamos no governo e outra se estamos na oposição. Os camaleões são a mais abjecta praga que pode atacar um país. A comunicação social tem de servir seriamente o interesse do País servindo-se, não de gente inculta, inexperiente e leviana, mas de profissionais capazes e responsáveis. A classe empresarial tem de assumir a integridade do seu papel cívico, não visando apenas o lucro desmedido, mas emparceirando com o Estado na realização dos objectivos de justiça social.

Só assim podemos alimentar o sonho de tempos futuros mais risonhos.
Eu até admiro a obra literária do Eça de Queirós, que já li quase toda, mas dispenso receber mais crónicas de "As Farpas".

É claro que gostaria de ouvir a vossa opinião.


Adriano Miranda Lima

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