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A bem da Nação

Os Açores e Gomes de Amorim

 

Francisco Gomes d'Amorim  (1827 - 1891)

Aquelas Ilhas Afortunadas, afortunadas pelas suas belezas naturais, pela sua história bonita, agitada, e por tantos filhos ilustres, entre os quais sempre sou levado a destacar o grande e controverso mestre Antero de Quental, controverso em si próprio e mestre sobretudo pela grandeza do seu caracter, desde a minha infância exercem sobre mim um atrativo que a vida não me proporcionou concretizar: visitá-las!

Há ali pairando um misto de tradição envolvido pelo verde dos seus campos e o azul do oceano que... deve ser respirado, vivido. Um dia, ainda pode ser... e como a esperança é a última que abandona o homem...

O nosso Francisco Gomes de Amorim - meu bisavô e homónimo - como disse um dia o Dr. Macedo Vieira, Presidente da Câmara da Póvoa de Varzim, não teve adolescência. Saiu menino de 10 anos de Portugal e assim que chegou ao Brasil, na Amazónia, passou  a viver como um adulto. Fez-se homem de súbito num clima ainda hoje difícil, insalubre, e não tardou que a sua saúde começasse a pagar os rigores dessa sua vida e desse clima.

Em 1840, então com 13 anos de idade subiu o rio Xingu para ir explorar borracha. Diz ele, na Nota LV de «Ódio de Raça»:

Saímos do Pará em duas canoas com todo o necessário para os trabalhadores e tripuladas por uns doze tapuios e um branco natural do Rio de Janeiro. ...logo que passámos a última vila (Pombal)... (já teriam navegado mais de 1.000 quilómetros rio acima) desembarcámos defronte de uma ilha que depois soubemos chamar-se de Santa Maria... Derrubámos uma porção de arvoredo junto à borda do rio... amarrámos com cipós quatro travessas nas árvores dos lados. Cobrimos tudo com folhas de palmeira e ficámos proprietários de uma casa.

Não era exatamente um hotel cinco estrelas, não tinha ar condicionado, nem levavam com eles antimaláricos ou outras «modernidades».

Dois anos depois

...Eu era caixeiro duns portugueses que fizeram um navio no sertão. Aqueles tratantes... obrigaram-me a trabalhar como carpinteiro e remador. Andávamos a tirar madeira de maçaranduba na margem austral do Amazonas, três dias de viagem acima da boca superior do rio Alenquer, quando adoeceu com sezões o mestre dos carpinteiros. ...peguei no machado do mestre dos carpinteiros e subi para cima dum grosso tronco de maçaranduba que andava a lavrar. Dei o primeiro golpe com tal força que o machado entrou dentro da linha do giz, por onde devia ser aparelhada a madeira; desci imediatamente para cortar o cavaco do lado oposto, mas, apanhando-o em falso o machado resvalou , correndo como um raio pelo pau fora, e veio dar-me um profundo golpe abaixo da articulação tíbio-társica do pé esquerdo, cortando-me o tarso obliquamente até à planta!

Perguntou a um dos tapuios:

- Que é bom para isto?

- Isca queimada.

- Dá cá.

... foi ao cesto (uru) onde se guardava, num canudo de taboca, o pano queimado que nos servia de isca, e voltou a correr. Rasguei um pedaço da camisa e limpei o sangue. O tapuio encheu o golpe com pano queimado e «um outro» pegando numa faca foi para o interior da floresta. Passados alguns instantes voltou trazendo um cipó de cujas pontas escorria um leite gomoso e avermelhado que ele me deitou no pé. Este suco grudou a isca sobre a carne.

Os remédios com que me curavam, além do pano queimado, eram cascas de árvores silvestres e leites de várias plantas.

Assim se curou o pé, depois de muitas outras peripécias, do nosso Aprendiz de Selvagem, como tão bem o retratou o Dr. Costa Carvalho no seu livro com este nome, que acaba por dizer fiquei com o pé doente mais sólido do que o outro!, homenageando deste modo a sapiência tradicional dos índios da Amazónia.

Mas sezões, pés cortados a machado e outras violências dum ambiente hostil, um dia cobram os seus impostos.

Pouco tempo depois de casar, aos trinta anos, em 1857, foi acometido duma congestão cerebral, cujas consequências o acompanharam pela vida fora, impossibilitando-o de comparecer com regularidade ao seu trabalho, retendo-o em casa com enxaquecas e quase permanente falta de saúde, que o levaram a considerar-se um «valetudinário».

À procura de solução para a sua saúde, que os médicos não conseguiam resolver, decide, não se sabe a conselho de quem, ir aos Açores, São Miguel, procurar nas águas quentes e sulfurosas de Furnas, o alívio que tanto desejava.

São de jornais de Ponta Delgada as seguintes notícias:

«Persuasão» - 24 de Setembro de 1862: Gomes d'Amorim, Francisco. Este notável poeta português que nas águas das Furnas veio procurar alívios a grandes padecimentos que sofre, vai para Lisboa nesta viagem do «Açoreano». Sentimos que o ilustre enfermo não encontrasse as melhoras que deseja mas também não se lhe agravaram os males. Sabemos que o sr. Amorim vai muito penhorado da obsequiosa maneira com que foi recebido nesta ilha e de que leva gratas impressões de todos os lugares que visitou.

 Furnas, ilha de S. Miguel

«Aurora dos Açores» - 27 de Setembro de 1862: Francisco Gomes de Amorim, desejando dar ao público um testemunho do seu reconhecimento pelas muitas provas de afectuosa consideração e simpatia, que recebeu durante a sua residência nesta ilha, e não lhe permitindo o seu mau estado de saúde despedir-se pessoalmente de todas as pessoas que lhe fizeram o favor de o visitar, tanto no vale das Furnas como em Ponta Delgada, a todos agradece por este modo, despedindo-se com profunda saudade e protestando conservar sempre viva a memória dos favores que recebeu nesta formosa terra.

Apesar de não ter obtido resultados volta no ano seguinte.

«Persuasão» - 3 de Junho de 1863:  Este mimoso poeta (Gomes d’Amorim) chegou a Ponta Delgada. Demora-se poucos dias na cidade e segue para as Furnas a fazer uso dos banhos termais.

Pior ainda se deu.

«Persuasão»  «9 de Setembro de 1863:  O ilustre poeta Gomes d’Amorim regressou das Furnas para esta cidade em muito mau estado de saúde. O sr. Dr. José Pereira Botelho, ornamento da medicina portuguesa, que tão desveladamente tratou nas Furnas o sr. Amorim, acompanhou o seu regresso e hospedou-o em sua própria casa, onde ele, sua excelente esposa e muito estimáveis filhas não poupam desvelos e carinhos na convalescença do sr. Gomes d'Amorim. Está muitissimo melhor do que veio das Furnas. Já se levanta, passeia e conversa há bastantes dias, sentindo ainda, infelizmente repetidas perturbações cerebrais. É possível que os banhos de mar, que já toma há dias, sejam proveitosos ao desditoso enfermo. Para tranquilidade de sua família e amigos do continente, asseguramos com profundo conhecimento, que o sr. Amorim, nem mesmo no meio de sua família seria tratado com mais afago e comodidades do que está sendo em casa do distinto e desinteressado médico de Ponta Delgada, o sr. Dr. José Pereira Botelho.»

«Persuasão» « 30 de Setembro de 1863:  Sr. Redator.- Próximo ao movimento de seguir viagem para Lisboa venho pedir-lhe o favor de me conceder um cantinho do seu jornal, para eu dar público testemunho do meu sincero reconhecimento pelas muitas provas de afectuoso interesse que recebi durante a minha residência nesta bela ilha.

Vapores de enxofre para tratar as enxaquecas . . .

 

. . . como a Medicina evoluiu entretanto . . .

O doloroso estado em que vou partir, impede-me de agradecer pessoalmente os favores que me honraram, e tira-me toda a esperança de tornar a ver os que mos fizeram; mas creiam todos aqueles a quem devi um cuidado ou um afecto, que a minha memória e o meu coração lhes serão sempre fiéis enquanto eu viver.

Os banhos de Furnas, propícios para tantos males, não me foram favoráveis; e a não serem os estremecidos cuidados com que me rodeou a mais pura, a mais caridosa, a mais fervorosa afeição, eu teria achado no meio das formosuras d'aquele vale, um lugar de repouso eterno, em vez do alívio que buscava.

Não o quis Deus assim. Ao lado da desventura, que agravou os meus padecimentos, surgiram logo milagres de zêlo, grandes afectos, uma nova família, que Deus mandava para substituir a que tinha longe: tudo, enfim, quanto o favor do céu produz na terra! Se a saúde fosse possível, eu tê-la-ia recobrado. De todos os lados me amparavam mãos abençoadas pela providência; e, ao partir, não posso deixar de derramar sobre elas todas as lágrimas da minha gratidão e da minha saudade.

Se me não é permitido citar nomes, nem dirigir mais claramente os meus agradecimentos àqueles a quem mais devo, e a quem mais amo, tenho-os todos no pensamento, ao dizer este último adeus à terra que os viu nascer.

Adeus, pois, formosa e querida ilha! Adeus, pátria dos bons corações! Que Deus te dê sempre destes belos frutos, e pague por mim  as dívidas que eu aqui deixo.

Ponta Delgada, 28 de Setembro de 1863. F. Gomes de Amorim.»

Não ganhou saúde o nosso poeta, mas ganhou uma família nova, a família desse grande médico e grande homem que foi o Dr. José Pereira Botelho. Grande e muito conceituado médico, sendo o filho, homem, mais velho de 10 irmãos, como morgado, devia herdar a quase totalidade dos bens de seus pais. Fez questão de abdicar do morgadio e dividir a herança com os irmãos, coisa rara, e talvez única no seu tempo, o que demonstra o valor do seu temperamento moral.

É pois o Dr. Pereira Botelho, sem qualquer favor, uma das grandes figuras de São Miguel. Salvou a vida do nosso Gomes de Amorim e ganhou mais um admirador e um grande e reconhecido amigo.

Na biografia deste médico, publicada na revista «Insulana» em 1954, escreve António Augusto Ripley da Mota em «O Dr. Botelho e o seu tempo»:

Havia clientes que o adoravam. Daqui e de fora da Ilha! ... distinguiremos Francisco Gomes de Amorim, o conhecido biógrafo de Garrett que viera experimentar (aliás sem resultado) as águas termais de Furnas;

Mais adiante: Todos ficavam agradecidos, alguns permaneciam seus íntimos amigos, como Gomes de Amorim que bem o manifesta numa longa correspondência de mais de 20 anos ... e no Cap. IV do seu livro «Fructos de Vário Sabor» (Lisboa, 1876), intitulado «Saudades» e dedicado ao Dr. J. P. B..

Deste modo, acabou Francisco Gomes de Amorim entrando para a história dos Açores.

Rio de Janeiro, Junho de 2002

 Francisco Gomes de Amorim

 

 

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