DIÁLOGOS PLATÓNICOS
II Série – Nº 3
Casas de Correcção
Discípulo: – Estavam boas, as suas castanhas assadas?
Mestre: – Sim, mas estavam quase no fim; já só consegui comprar meia dúzia. Aquela empresária fez uma deficiente gestão de stocks . . .
Discípulo: – Qual empresária?
Mestre: – A vendedora de castanhas.
Discípulo: – Empresária?
Mestre: – E por que não? Não será uma empresa, aquele carrinho, as castanhas cruas, o assador e o produto acabado? Dá-se é a circunstância de o Presidente do Conselho de Administração, o Director dos Recursos Humanos, os Chefes de Compras, de Vendas e de Logística serem uma e a mesma pessoa mas que é uma empresa, não oferece qualquer dúvida. Uma empresa ambulante.
Discípulo: – Economia paralela?
Mestre: – Não obrigatoriamente. Não reparei nos pormenores mas acredito que o carrinho tenha matrícula camarária e que a fulana pague as taxas de vendedora ambulante. Se assim acontecer, é Economia formal e não paralela.
Discípulo: – Com contabilidade organizada?
Mestre: – Nos termos em que Você imagina, duvido seriamente mas olhe que estas pessoas que se dedicam por inteiro a um negócio que é deles e só deles, raramente se enganam na gestão que praticam. Mais vale só ter meia dúzia de castanhas assadas para me vender – porque eu não quis ficar à espera da produção de mais produto final – do que ficar com meia dúzia de castanhas assadas por vender; no dia seguinte estariam incomestíveis e seriam pura perda. É claro que desconhecem por completo as taxas de amortização que tanto nos preocupam nas imputações que fazemos aos custos sectoriais de produção mas a complexidade daquela empresa não é propriamente a mesma da daquelas a que nós estamos habituados . . . Mas não quer fazer um resumo da nossa conversa anterior antes de retomarmos o fio à meada?
Discípulo: – Sim, claro. O que eu retive da sessão anterior foi que há a economia oficial, a de meia-tigela e a clandestina que se subdivide em actividades criminosas, ilegais e «macquizardes». Lembro-me também de que considera que a grande vontade popular de obtenção de um título académico permitiu o aparecimento de muitos cursos que não servem para nada e que foram vendidos como lebres quando, na verdade, não passavam de gatos. São esses licenciados que hoje enxameiam os Serviços do Desemprego.
Mestre: – Muito bem, para resumo não está mau. E agora para que paragens quer navegar?
Discípulo: – Bem, eu notei que a inadiável vontade de comer castanhas assadas surgiu quando nos preparávamos para falar dos restos de corporativismo que existem em Portugal.
Mestre: – Ah!, sim, isso foi uma mera coincidência. O adiantado da hora no dia de S. Martinho exigia que saíssemos para ir à procura das castanhas, sob pena de furarmos a tradição. Não tenho qualquer receio de tratar do tema e de afirmar que considero completamente aberrante que os cursos tenham que ver previamente os respectivos curricula aprovados pelo Ministério da Educação e, depois, os licenciados só poderem exercer a profissão se devidamente aprovados pela respectiva Ordem. Trata-se de uma gaguez cacafónica, entorpecedora da fluidez com que a recuperação do nosso atraso relativo tem que acontecer.
Discípulo: – Está a referir-se a quem?
Mestre: – À medicina, ao direito, à farmácia, à contabilidade, à arquitectura, etc. Têm o curso completo, de acordo com as regras definidas pela Autoridade da Educação, não faz sentido submeter esses licenciados a mais formalismos verificadores da competência que formalmente já adquiriram. Ou então, a Autoridade da Educação é delegada nas Ordens e o Ministério deixa de fazer a aprovação prévia dos curricula. Das duas, uma; as duas, não fazem qualquer sentido. Era o que se passava com os registos notariais e com as Conservatórias mas, em boa hora, o Governo está a acabar com essa redundância. Em tempos que já lá vão, era o que se passava com os Despachantes Oficiais. Assim como o lobby dos Notários fazia com que fossem obrigatórios inúmeros registos sem qualquer valor acrescentado perante os homólogos nas Conservatórias, com as profissões que citei muito – ou tudo – tem a ver com a restrição à concorrência no seio dessa mesma profissão. Os médicos não querem que haja mais médicos para além dos que já existem; os advogados acham que já há advogados a mais, os contabilistas não querem mais concorrência, etc., etc., etc.
Discípulo: – Então para que serviriam as Ordens?
Mestre: – Para organizarem uns jantares, umas viagens, uns descontos nas lojas de conveniência . . . Ah! E poderiam também promover acções de actualização profissional ao longo da vida dos associados, os ordeiros, nas perspectivas técnica e científica.
Discípulo: – E não deveriam ter alguma acção disciplinar?
Mestre: – Veja-se o caso bem recente da Ordem dos Advogados e do seu ex-bastonário . . .
Discípulo: – Então não reconhece às Ordens algum poder disciplinar?
Mestre: – Não. Absolutamente nenhum. Se um profissional se meter em sarilhos, responde perante o Poder Judicial. Quando muito, as Ordens poderiam ser chamadas a opinar sobre as matérias em que o Tribunal sentisse necessidade de alguma assessoria técnica.
Discípulo: – Isso poderia inclusive levar à constituição de tribunais especializados.
Mestre: – E por que não? Isso seria do maior interesse para a melhoria da qualidade da Justiça se não mesmo para alguma celeridade processual.
Discípulo: – Bem, isso funcionaria para todas as Ordens com excepção da dos Advogados.
Mestre: – Muito provavelmente.
Discípulo: – Então é por causa desse corporativismo que as Faculdades de Medicina são de acesso tão difícil?
Mestre: – Estou convencido de que sim. Os médicos não querem que a profissão seja invadida por muitos portugueses. Não deviam era estar à espera da invasão espanhola nem das invasões que ocorrerão futuramente de médicos de outros Estados membro da UE. E com o livre direito de estabelecimento na UE e o reconhecimento mútuo e automático dos diplomas, o melhor é as Ordens começarem a mentalizar-se de que o 25 de Abril já aconteceu em 1974 e que o prazo de validade do corporativismo caducou há 32 anos.
Discípulo: – E com a Ordem dos Economistas?
Mestre: – Não é imprescindível ser-se membro da Ordem dos Economistas para se poder exercer a profissão. A minha Ordem não tem esse espírito corporativo; é uma instituição do séc. XXI, não calçou botas-de-elástico nas margens do Mondego.
Discípulo: – Ainda a propósito dos médicos. Deveria haver mais cursos de medicina?
Mestre: – Se a oferta não responde à procura, então há que instalar mais cursos ou abrir mais vagas nos existentes. Mas já que em Portugal ainda se entende que só o Estado tem competência para ensinar medicina, parece-me elementar que as Forças Armadas assumam um curso de medicina aberto a alunos civis. Aliás, creio que há muitos casos de ensino ministrado pelas Forças Armadas que têm o maior interesse para os civis e que estes estarão dispostos a pagar propinas como se se tratasse de Universidades privadas.
Discípulo: – Por exemplo . . . ?
Mestre: – Dentre as que ainda não existem, refiro a medicina, a farmácia, a veterinária; das que já existem, cito os vários ramos da engenharia e a enfermagem. Temo que a Escola Militar de Electromecânica de Paço d’Arcos – num nível pré universitário – tenha fechado as portas em vez de se abrir a civis e por essa via meter dinheiro nos cofres do Estado. Mas não conheço o assunto em profundidade e é por isso que, em vez de referir casos concretos, prefiro centrar a minha atenção no princípio geral de que há que admitir civis em certos cursos militares com o objectivo de promover um maior número de pessoas com formação adequada sem com isso aumentar a despesa pública e, pelo contrário, aumentando a receita.
Discípulo: – E acha que as Forças Armadas têm essa vocação, a da formação profissional?
Mestre: – As Forças Armadas portuguesas têm uma larguíssima experiência de formação dos seus próprios Quadros, a todos os níveis: superior – o dos Oficiais; médio – o dos Sargentos; básico – o dos Soldados. Têm muito que ensinar e em tempo de paz como este que atravessamos deveriam assumir-se como um instrumento do desenvolvimento nacional.
Discípulo: – E os alunos civis também deviam fazer Ordem Unida?
Mestre: – Se forem fisicamente aptos, não lhes faria mal nenhum. Mas isso são matérias não relevantes para o que estamos a tratar.
Discípulo: – Seria importante para a educação cívica dos alunos civis?
Mestre: – Admito que sim. A disciplina anda em grande crise: toda a gente tem todos os direitos; ninguém tem obrigações.
Discípulo: – Haverá que militarizar os civis?
Mestre: – Não propriamente. A nível do secundário há que reintroduzir a responsabilização da juventude. Chumbar por faltas e fazer os trabalhos de casa têm que voltar a ser imperativos. A indisciplina tem que voltar a ser penalizada. Deixar passar todos de ano só para não estragar as estatísticas tem conduzido a nossa Nação a níveis de irresponsabilização ímpares na nossa História e nem com esse laxismo conseguimos baixar o abandono escolar precoce.
Discípulo: – E os professores estarão em condições para desempenharem essa função?
Mestre: – Os professores e os pais! Os professores não têm que ser vítimas do abandono da função disciplinadora a que os pais se votaram. Deixemo-nos de demagogias: a função dos pais não tem que ser substituída pela dos professores. Aos professores não cabe aturarem más-educações. Aluno mel-educado vai para a rua com falta disciplinar não justificável e chumba se exceder o número de faltas permitido. Se isso suceder significa que é um delinquente; a Escola é destinada a gente normal e os alunos normais têm o direito de não serem prejudicados por vândalos que têm que ser tratados desse modo, como alienados.
Discípulo: – Está a promover a exclusão escolar?
Mestre: – Estou a promover a disciplina escolar e a protecção dos interesses dos alunos normais que são a clara maioria.
Discípulo: – E que propõe para os excluídos?
Mestre: – Não, não proponho pancada. Disso já eles devem ter que sobre nos ambientes que frequentam fora da Escola, nomeadamente a nível familiar.
Discípulo: – Então?
Mestre: – Qualquer coisa que se assemelhe com o regime de ensino napoleónico, ou seja, com o ensino oficial francês.
Discípulo: – Mas isso é à pancada.
Mestre: – Nem pouco mais ou menos mas é claramente um regime disciplinador.
Discípulo: – À maneira da tropa?
Mestre: – Não anda muito longe. Um pouco de Ordem Unida talvez faça bem a esses gandulos destabilizadores e a terapia ocupacional talvez seja indicada para a indolência tão em voga em certas cabeças rebeldes.
Discípulo: – E isso seria em regime livre ou de internato?
Mestre: – Não me refiro às Casas de Correcção mas sim a um regime mais benigno. Disciplinador, com certeza. O que temos é que garantir que a maioria disciplinada não seja incomodada na Escola por uma minoria mal-educada, indisciplinada, eventualmente portadora de vícios. Os casos que saem da normalidade têm que ser tratados com métodos especiais. Só isso.
Discípulo: – Estou mesmo a ver que esses vão acabar na rua.
Mestre: – Talvez nunca devessem de lá ter saído em vez de virem incomodar gente normal que quer estudar.
Discípulo: – E que faz a esses marginais quando se constituírem em bandos?
Mestre: – Ponho-lhes a Polícia no encalço.
Discípulo: – Acha isso democrático?
Mestre: – Poderá não ser politicamente correcto segundo os parâmetros dos telejornais actuais mas democrático é: proteger os interesses da maioria defendendo-a da marginalidade.
Discípulo: – Bem, proponho que façamos um intervalo para vermos a Polícia a correr com os marginais. Tem algum tema para a próxima conversa?
Mestre: – Proponho a matemática e desejo um Santo Natal a todos.
Discípulo: – Muito bem, falaremos de matemática. Boas Festas.
Lisboa, Dezembro de 2006
Henrique Salles da Fonseca