CURTINHAS XXII
v Numa crítica bem medida a um anterior artigo meu com igual título, H. Salles da Fonseca comenta que a neutralidade fiscal em matéria de juros e dividendos pouco fará pelo investimento – e assim arruma no sótão dos detalhes pouco menos que irrelevantes a medida em que eu depositava tantas esperanças. E ele tem razão.
v Todavia, as virtudes que eu associei a esta medida eram bem outras: (a) transparência no dia a dia das empresas; (b) redução do endividamento para níveis mais razoáveis; (c) saída da zona de risco onde a nossa economia tem vivido; (d) enfim, tudo coisas que por cá não tiram o sono a ninguém. Neste contexto, a maior eficácia fiscal nada mais era que um efeito lateral, trazido à conversa apenas porque o artigo ia cair no meio do debate sobre a redução da taxa nominal do IRC.
v O ponto de partida do meu raciocínio (já volto ao investimento...) é que a transparência na governação (da coisa privada e da coisa pública, por igual) não se impõe por decreto, nem se protege com polícias. Em abstracto, consagra-se como princípio. No concreto, resulta, melhor ou pior, da tensão entre interesses legítimos que se confrontam – os famosos “checks and balances”.
v Dito de outro modo, pugnar pela transparência da governação ou envolve quem esteja na primeira linha para colher os ganhos e suportar as perdas, ou não vai longe. E é justamente por aqui que passa a distinção entre investidores (sócios) “idiossincráticos” e “não idiossincráticos” (que a teoria, apressadamente designa por “racionais” - como se os primeiros o não fossem também).
v Exemplo de investidor idiossincrático é dado por aquele accionista de referência de um grande Banco que discorda do modo, para ele demasiado generoso, como os quadros superiores desse Banco estão a ser mimados. Quando se lhe pergunta porque é que não se manifesta, usando o peso das suas acções, responde “Julgam que eu sou doido? Então depois como é que era com os financiamentos de que necessito?”. Estes são os investidores que esperam do seu investimento outros retornos para lá dos dividendos e das eventuais mais valias (semelhantes, aliás, àqueles que criam a sua empresa só para terem finalmente onde trabalhar).
v Os ganhos do investidor “não idiossincrático”, esses, serão sempre e só os lucros distribuídos e as possíveis mais valias. Mas faço notar que um investidor não nasce “não idiossincrático”: pode muito bem mudar de campo e passar a integrar o grupo “idiossincrático” - e vice versa.
v Se os sócios maioritários (individualmente ou em grupo) propendem para idiossincrasia (ou seja, para colherem por antecipação, numa qualquer das rubricas da Conta de Exploração, os seus proveitos, dispensando lucros e valorização do capital - e, vantagem não despicienda, reduzindo desse modo a carga fiscal das suas empresas), aos sócios minoritários, por regra, só restam os lucros distribuídos e as mais valias para justificar o investimento que fizeram.
v Por isso, é de esperar que sócios minoritários activos vigiem de perto o que se passa no interior das suas empresas e contrariem as tentativas de quem não quer que os proveitos cheguem à última linha da referida Conta. Em suma: a transparência (e, já agora, a rendibilidade registada na tal última linha) é do interesse dos sócios não idiossincráticos – e, no plano “micro”, só deles.
v Para que existam investidores “não idiossincráticos”, as empresas têm de oferecer perspectivas de retorno aliciantes aos investimentos que eles façam. Mas como – se a parcela do Resultado Operacional afecta ao pagamento de juros chega livre de qualquer forma de tributação directa ao património do investidor/credor (e só então é tributada), mas essa mesma parcela, distribuída como dividendo, será tributada em sede de IRC antes de ser recebida pelo investidor/sócio (onde é de novo tributada)?
v E não falo já no facto de a lei fiscal tratar com maior benevolência os prejuízos de capital que sobrevenham num empréstimo ou noutra forma de crédito) do que aqueles que ocorrerem numa participação societária.
v Neste quadro de discriminação fiscal não espanta, pois:
a) Que, entre nós, os investidores “não idiossincráticos” se mantenham afastados da generalidade das empresas (excepto naquelas de capital aberto, mas aí o propósito deles será realizar mais valias tão depressa quanto possível, com nula intervenção no controlo da governação);
b) Que muitas das nossas empresas sejam realidades opacas, até para os investidores “idiossincráticos” (os quais não poucas vezes se deparam com aquilo com que não contavam);
c) Que os capitais próprios sejam substituídos por capitais alheios, já como hábil estratégia para minimizar a carga fiscal consolidada (isto é, no conjunto do par empresa/investidor), já porque não há alternativas para os fundos de que a empresa carece (e aqui começamos a tocar na história do investimento);
d) Que a mediana do endividamento nas empresas portuguesas (ou seja, 50% das empresas apresentavam um rácio de solvabilidade superior a este que vai indicado) é ligeiramente superior a 3 (dito de outro modo, os capitais alheios são mais do triplo dos capitais próprios) – e é manifestamente excessivo à luz dos padrões internacionais;
e) Que quanto maior for endividamento de uma empresa, maior é o risco de crédito que ela representa para os seus credores, e maior será o risco-preço a que os que nela investiram se encontram expostos (e fecha-se assim o círculo vicioso para os investidores “não idiossincráticos”);
f) Que, através do endividamento bancário que sustenta directa e indirectamente esta cadeia de dívidas (ou “bolha” de endividamento), o risco de crédito que emerge das empresas portuguesas contamina os Balanços dos Bancos;
g) Que para os Bancos portugueses, eles também muito endividados junto de Bancos estrangeiros, não é fácil, nem a tomada (roll over) de fundos nos mercados interbancários externos, nem a titularização de carteiras de crédito bancário cujo risco não conseguem demonstrar;
h) Que.... fico por aqui.
v O interessante é que a idêntica conclusões se chega através de um raciocínio mais formal que envolve explicitamente os conceitos de risco, de capital económico e pouco mais (quem quiser saber mais, contacte-me).
v Defender à outrance o investimento sem ter em linha de conta o risco que representa a entidade que vai levá-lo por diante (e sem imprimir transparência, comparabilidade, consistência e tempestividade à informação financeira que essa entidade irá divulgar) é, objectivamente, esperar que apareçam investidores “não idiossincráticos” dispostos a dar o seu capital por perdido: Mais prosaicamente, é continuar a depositar todas as esperanças no investimento público, pois só os Governos podem investir, sem preocupação nem remorso, o dinheiro dos outros (os contribuintes).
v Salvo melhor opinião, esta história do “investimento” (e, em paralelo, a “poupança”) é um dos vários maus serviços que a macroeconomia tem prestado ao pensamento económico.
v Contrariamente ao que se lê nos manuais e aprende nas escolas (mas algo que nós, portugueses, já deveríamos saber de olhos fechados, por experiência própria) investimento, com as virtudes que a teoria lhe reconhece, é um conceito a posteriori, ex post.
v Sob este ângulo, os “investimentos” são como os melões – só depois de os abrir é que sobre eles podemos opinar.
v De certeza, certezinha, só há a despesa – e, a priori, poderão manifestar-se as mais variadas intenções de investimento. Mas só as despesas que aumentem directamente o produto potencial (definição forte), ou que evitem a redução do produto potencial (definição fraca), são “investimento” (no sentido da teoria) – o que é dizer, são intenções de investimento concretizadas.
v O investimento, desligado por um momento do modo como seja financiado, faz-se - e é, ele próprio, uma via exposta a vários riscos. O que se promove, sim, com maior ou menor vigor, são as intenções de investimento. Mas essas são como os melões.