PERGUNTAR NÃO OFENDE (A propósito da IVG*)
O n/ Premier não se cansa de proclamar que a questão da IVG (até às 10 semanas) é exclusivamente jurídica. Não é – e ele sabe bem que não é. O que está verdadeiramente em causa, não é descriminalizar a IVG (ainda que nas referidas condições), mas considerá-la um acto médico abrangido pelo SNS. Em palavras simples: pôr os contribuintes a subvencionar esse acto médico (e hospitalar).
Num tema tão delicado como este, que divide a sociedade portuguesa em duas tribos irreconciliáveis, não é de estranhar que as opiniões em confronto se façam ouvir. Mas era de esperar que os media de referência fossem mais longe e que, de moto proprio, depurassem, comparassem, verificassem e resumissem as razões que de um e de outro lado se esgrimem. Infelizmente, só uma das teses parece continuar a ter acolhimento regular, como se a outra nada tivesse a dizer em seu abono – e o trabalho jornalístico é, lamentavelmente, escasso.
E, no entanto, cada uma destas correntes tem os seus quês que, por regra, evita expôr – mas que são essenciais para o esclarecimento da opinião pública. Por exemplo: dos que defendem a vida intra-uterina desde o momento da concepção seria interessante saber que soluções propõem naqueles casos em que os progenitores recusam as suas responsabilidades paternais, ou não estão em condições de assumi-las. Dado que enviar para a cadeia os pais não resolve satisfatoriamente o problema dos filhos (e das gestações) malqueridos ou maltratados - que alternativas defendem? Como pensam regulá-las no interesse destes últimos? E como pensam financiá-las?
Os que, no campo adverso, defendem o direito da mulher ao seu próprio corpo (e sabendo-se que a vida humana não se reproduz por cisiparidade), será que omitem a responsabilidade do homem para melhor justificarem a desresponsabilização da mulher? Afinal, há, ou não razões para proteger a vida humana, mesmo quando ela seja perceptível, únicamente, no corpo que a está a gerar? Ou, sendo ainda um esboço viável, um embrião, pode essa vida, por uma vez, ficar completamente à mercê da vontade arbitária de outra pessoa, uma só, até à aniquilação?
Mais prosaicamente, o que é que está verdadeiramente em jogo: a despenalização da IVG, ou o seu financiamento como se fosse um episódio mais de saúde pública? E em período de vacas magras, em que tantos são chamados a pagar cada vez mais pelo tratamento hospitalar motivado por causas que não estava ao seu alcance evitar – como explicar mais despesas públicas só porque alguém, em seu perfeito juízo, entendeu correr riscos perfeitamente evitáveis?
As sociedades humanas só vencem o tempo quando asseguram o render das suas gerações. Como saber então que elas reúnem as condições para prosseguirem e perdurarem se os primeiros passos de uma vida nelas gerada puderem ser interrompidos sem receio e sem custo pessoal? E, se assim for, quem, nessas sociedades, sustentará os "inactivos", quando repetidos saldos demográficos negativos não mais o permitirem? É só o casal, seja qual for o modo como viva a sua sexualidade, que deve ser jurídicamente protegido? Não haverá que dar à maternidade um tratamento de excepção, premiando-a, para garantir que um certo modo de viver em sociedade se não extinga?
Ainda que não pareça, IVG também é economia – e é economia bem mais séria do que tentar adivinhar o futuro de conceitos tão abstractos como os de investimento e consumo.
Lisboa, Outubro de 2006
A.Palhinha Machado
* IVG = Interrupção Voluntária da Gravidez = Aborto