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A bem da Nação

CRÓNICA DE UMA REALIDADE OPACA - IV

 

A operação de “titularização” de créditos fiscais revisitada

Pelo que ficou escrito nos artigos anteriores, esta operação é demasiado semelhante a dívida pública, e demasiado corriqueira, para justificar prémios e sobrecustos – e, não obstante, eles aí estão.

Mas como é que o Governo pensava pagar tudo isto? Com o produto da cobrança dos créditos que estava a entregar, naturalmente. E chegaria? Que sim, segundo o Servicing Agreement (documento assinado por Sagres, SA, Fisco e Segurança Social, não divulgado na íntegra e que vem resumido no Prospecto, embora cuidadosamente despojado de dados). Aí se admitia, com louvável prudência, que, em dez anos, cobrar-se-ia cerca de 20% dos créditos entregues (€ 2.29 mil milhões), podendo a operação ficar totalmente liquidada até 2008. Estes primeiros quatro semestres e meio (até 28/02/2006), hélàs! contam-nos uma outra história.

Desde logo, revelam que o Estado tem vindo a entregar créditos que não estavam vencidos (se é que estavam constituídos) na data-limite adoptada para a operação inicial (30/09/2003). Apesar de os Relatórios semestrais serem omissos quanto a isto, é possível adiantar algumas estimativas sobre o que se tem passado com estes créditos mais recentes: dos 226 mil créditos entregues (no valor de € 1.8 mil milhões), 19 mil (no valor de € 591 milhões) voltaram à procedência e 119 mil (no valor de € 135 milhões) foram cobrados. Nestes dois primeiros anos, e neste lote de créditos, a eficiência de cobrança terá sido de 53% em número, mas só de 7% em valor. O rácio de exclusão, esse, terá atingido 8% em número e cerca de 1/3 em valor. Ora, o aparecimento destes créditos não dá lugar a dúvidas: estão a ser mobilizadas receitas que pertencem a exercícios orçamentais mais recentes para liquidar um compromisso que aproveitou, directa e exclusivamente, ao exercício de 2003. Se isto não descreve uma dívida que está a ser paga - como descrevê-la, então?

Quanto aos créditos que integravam a carteira inicial (ela própria constituída por 1.5 milhões de créditos no valor de € 11.4 mil milhões; mas nunca se soube quantos eram os contribuintes envolvidos, pelo que a concentração do risco continua uma incógnita), teriam sido devolvidos 914 mil (no valor de € 5.4 mil milhões), recebidos em substituição 128 mil (no valor de € 728 milhões) e cobrados 262 mil (no valor de € 496 milhões). A eficiência de cobrança, neste período, foi de 17% em número e de 4% em valor - muito longe, pois, do que inicialmente se admitira (o realizado não foi além de 22% do previsto). Mas o que mais surpreende é o nível que o rácio de exclusão terá atingido: 59% em número e 47% em valor. Porquê? É a pergunta que se impõe. Será que o Estado não consegue demonstrar os créditos que reclama (talvez, efeito colateral daquela prática que consiste em fixar anualmente, com burocrática presciência, objectivos de liquidação por Repartição de Finanças)? Ou será que do critério de exclusão também consta a acrescida dificuldade de cobrança (que o Prospecto não captou), o que tornaria o Estado, objectivamente, fiador dos contribuintes cedidos? Ou ambas, à vez?

Não cabe fazer aqui uma análise por imposto e contribuição do que se está a passar, mas essa análise é inegavelmente útil à administração fiscal. Quando decorriam os preparativos para esta operação, Fisco e Segurança Social, depois de alguma demora, lá facultaram estatísticas sobre a eficiência das suas cobranças no passado (que o Prospecto, aliás, transcreve). E é essa a face mais trágica desta operação. Dez anos não são suficientes para cobrar o IRS liquidado num qualquer ano - 28% ficam por cobrar. Pior no IRC, onde 68% dos valores liquidados num ano estão destinados a prescrever. E no IVA, em que extinguem-se incobrados cerca de 60%. Ou na Segurança Social, que só consegue receber 26% das suas receitas. Sabendo-se que, em teoria, todos os impostos e contribuições deveriam estar praticamente pagos entre o ano a que respeitam e os dois anos imediatamente seguintes (salvo os atritos usuais num processo de cobrança), as referidas estatísticas dão-nos o seguinte quadro das percentagens cobradas, em média, nesse lapso de tempo: IRS, 21%; IRC, 14%; IVA, 18%; e Segurança Social, 13%.

Perante isto, como não perguntar: Acredita-se ainda que a operação pode ser liquidada com os créditos inicialmente entregues? Existe alguma verdade nos processos de liquidação fiscal em vigor? Ninguém, alguma vez, esteve interessado em conhecer, mês após mês, os resultados mensais do esforço de cobrança e o porquê dos desvios? Alguém se apercebeu de que os dados da execução orçamental comparam o incomparável (as receitas orçamentadas para esse ano versus as cobranças de créditos que vêm do antecedente)? Não percebem os Ministros das Finanças, e os candidatos ao lugar, que pôr a casa em ordem, antes de se entreterem com a macroeconomia, é uma responsabilidade que só a eles pertence e que é para isso que são pagos? Enfim, que juízo fazer desta operação e dos seus interpretes?

 

Lisboa, Julho de 2006

A. Palhinha  Machado

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