CRÓNICA DE UMA REALIDADE OPACA - III
A operação de “titularização” de créditos fiscais revisitada
Se os primeiros passos desta operação foram, no mínimo, confusos, o seu teor também não prima pela clareza. Tenhamos presente que o interesse de titularizar créditos (mas créditos com vencimento futuro, não já vencidos, como estes agora) reside no facto de financiamentos assim não envolverem endividamento adicional (diminui, sim, o activo de quem se financia). Para que assim seja, o originador (aqui, o Estado) não poderá ficar por fiador daqueles que têm a obrigação de pagar os créditos entregues, nem poderá assumir perante o “veículo de titularização” (e/ou os portadores das obrigações que este emitir) o compromisso de recomprar, mais tarde, os créditos que acaba de ceder. Caso contrário, tratar-se-á de um verdadeiro empréstimo, em que os créditos entregues servem, ou como de forma de pagamento (pro soluto), ou como garantia (pro solvendo).
Obviamente, se os créditos que são objecto de titularização não existirem (ou se, existindo, nunca puderem ser exigidos), a cessão é nula; o preço recebido terá de ser restituído; e, talvez, a conduta do originador deva ser apreciada em juízo. A excepção que aproveita ao Estado visava isto mesmo: não, libertá-lo da obrigação de restituir o preço que receba por algo que nunca poderia alienar; sim, poupá-lo à acusação de ter promovido um negócio nulo. Pelos vistos, o Governo - receoso de que alguns dos créditos que se preparava para entregar, ou não fossem exigíveis, ou não existissem – quis afastar, desde logo, por via legislativa, os incómodos que daí lhe poderiam advir. Mas não se percebe porquê.
Na realidade, o que o Prospecto refere são entregas pro soluto (isto é, entregas destinadas a pagar dívidas que ficam, por esse facto, liquidadas), o que pressupõe uma anterior dívida do Estado a Sagres, SA (o “veículo de titularização”). Porque nefas? Se os créditos fiscais tivessem sido efectivamente vendidos (isto é, cedidos) falar-se-ia, sim, da dívida que Sagres estava a contrair perante o Estado (e não o contrário), do preço da cessão, e de como este preço teria de ser pago - nunca de entregas pro soluto. Pelos vistos, o modo como Sagres contabiliza esta operação sempre tem algum fundamento.
E não haverá outras mais responsabilidades assumidas em nome do Estado, designadamente, quanto à boa cobrança dos créditos envolvidos na operação? Também neste ponto o Prospecto é pouco esclarecedor. É certo que nele se lê que o Estado não responde, nem pelos contribuintes, nem pelas promissórias com que Sagres financia a operação. Mas não enumera exaustivamente os factores que, a verificarem-se num qualquer crédito, o excluem da operação. Em contrapartida, dá a saber que o Estado se obrigou a substituir prontamente os créditos que Sagres viesse a excluir, ou a recomprá-los, ou a restituir o que por eles recebera. Há que ver como a prática interpreta este critério de exclusão (referido, mal, como “a questão dos incobráveis”). Com a certeza, porém, de que nenhuma informação foi, até à data, divulgada sobre o número e valor, já dos créditos excluídos (isto é, restituídos ao originador), que têm sido muitos; já dos créditos entregues em substituição, que não têm sido menos; já dos créditos recomprados e das indemnizações pagas, sobre o que também nada se sabe.
Intervêm nesta operação: agentes cobradores (Fisco e Segurança Social, que se fazem pagar pelo serviço prestado); alguém que cobre o risco a que Sagres se expôs ao emitir dívida com taxa variável; outro que, se necessário, adiantará liquidez para que juros e reembolsos possam ser pagos pontualmente; e uns tantos mais, a propósito deste ou daquele aspecto operacional. Enfim, o habitual em tais ocasiões. Aliás, as comissões a cargo de Sagres também não são por aí além, embora falte apurar ainda os encargos que o Estado tenha pago, ou esteja a pagar, directamente.
A parcela maior do custo efectivo dos fundos que Sagres colocou à disposição do Estado corresponde, porém, aos juros contados nas promissórias – juros esses que reduzem o encaixe definitivo que o Estado terá a haver. Ora, ponderados os montantes das diversas séries e os respectivos prazos, o spread médio é de +0.70%. É muito? É pouco? Não existe nenhum instrumento de dívida pública que possa servir de comparação, já que esta operação reúne características nada usuais: taxa variável (excepto na série T), reembolsos variáveis (e não de uma só vez, no termo do prazo), capitalização de juros (na série T) e estruturação (as séries M, N, O só podem começar a ser reembolsadas depois de a série A1 ter sido integralmente paga). O que poderá haver de mais semelhante, em termos de spreads, são as emissões de Bilhetes de Tesouro com prazo igual ao do indexante (6 meses), cujas taxas efectivas, por norma, são inferiores às deste em –0.07%/-0.12%. Feitas as contas, o sobrecusto desta operação (€ 13 milhões/ano) é o preço que os contribuintes vão pagar durante anos para que o Governo de então pudesse proclamar, satisfeito: missão cumprida!
(continua)
Lisboa, Julho de 2006
A. Palhinha Machado