CRÓNICA DE UMA REALIDADE OPACA - II
A operação de “titularização” de créditos fiscais revisitada
Em 19/12/2003, Sagres, SA (uma sociedade de direito português que o Citigroup criara meses antes) entregava no Terreiro do Paço € 1,760 milhões, o preço provisório (líquido das comissões à cabeça) convencionado no âmbito de uma operação dita de titularização de créditos fiscais vencidos. Mesmo a tempo de salvar o deficit público desse ano.
Foi só em 21/03/2005 que Sagres deu a conhecer as suas contas de 2003, mas em conjunto com as de 2004 (o que, convenhamos, está longe de proporcionar uma visão clara dos factos). Designada de Explorer, lá aparece esta operação: o empréstimo obrigacionista no passivo a longo prazo, como seria de esperar; a contrapartida classificada no imobilizado, como investimento financeiro, e não no activo circulante (onde, por esse mundo fora, é costume contabilizar os créditos vencidos, logo, imediatamente exigíveis). Dos créditos entregues pelo Fisco e pela Segurança Social (os tais que totalizavam € 11,441.4 milhões) é que nem traço. Coisa estranha esta de Sagres considerar que possui um crédito de longo prazo sobre alguém (sem explicar em nota quem seja) e dar a esse crédito exactamente valor igual ao da quantia que acabava de desembolsar. Mas a estranheza dissipa-se quando nos lembramos que as contas de Sagres são consolidadas no Citigroup, que este está sujeito à supervisão da SEC, nos EUA, e não consta que a SEC seja de facilitar. Para valer do outro lado do Atlântico, nada de titularização de créditos vencidos - antes um empréstimo puro e duro. Por cá, ia-se insistindo na versão oficial.
Mas as maiores surpresas reserva-as o Prospecto: desde logo, porque ele vem datado de 15/04/2004, não havendo vestígio do registo de nenhum outro anterior; depois, porque refere uma emissão de seis séries de promissórias com o valor facial total de € 1,663 milhões a ter lugar daí a cinco dias. Estaremos a falar do mesmo? Não, não estamos. Este Prospecto diz respeita à emissão das promissórias que hoje circulam por aí. E tudo indica que, inicialmente, ou não foram emitidas nenhumas obrigações (embora o Balanço de Sagres, no fecho de 2003, refira um empréstimo obrigacionista), ou foram, mas sem se fazerem acompanhar do Prospecto que a lei exige.
O que terá acontecido, então, entre o fecho de 2003 e Abril de 2004? Nada de mais: a emissão anterior foi liquidada antecipadamente (e poderia ser? como saber, se não há prospecto?) com o encaixe da nova emissão, à qual, para complicar, foi dada a mesma designação. Mas, e os € 102 milhões de diferença (para não falar já nos custos de emissão em duplicado), de onde saíram eles? Poderiam corresponder a cobranças entretanto efectuadas? Impossível saber – por duas razões principais: o primeiro Relatório semestral que Sagres deu à estampa abrange o período entre 01/10/2003 (!) e 31/08/2004, em bloco, sem qualquer detalhe temporal; nem deste, nem dos Relatórios seguintes constam dados que são indispensáveis ao acompanhamento da operação (como sejam: que créditos Sagres devolve, classificados por causa de devolução; e que créditos recebe ela em substituição).
Conhecem-se as cobranças naqueles primeiros onze meses: € 212.8 milhões (aprox.). Não sendo crível que os contribuintes em falta, num rebate de consciência, tenham acorrido a pagar as suas dívidas nos últimos dias do ano, nem tendo havido mudança nos agentes cobradores (o Fisco e a Segurança Social, como até aí), forçoso é concluir que em menos de quatro meses se teria cobrado sensivelmente o mesmo que nos sete meses seguintes. Só que em mais nenhum outro período semestral se voltaria a cobrar tanto.
Podemos não saber como tudo se passou, mas não podemos ignorar o que tudo isto indicia: a não ser que circulem por aí informações confidenciais (o que representaria grave discriminação contra os obrigacionistas), os dados divulgados não permitem, de todo, que ninguém controle satisfatoriamente a operação; aparentemente, ainda a operação não estava fechada e já o Governo lhe afectava cobranças, não se percebendo muito bem se essas cobranças terão valido a dobrar (para efeitos da operação e para efeitos da execução orçamental); parece que os € 1,765 milhões foram só para UE ver – apurado o deficit, prevaleceu o montante que interessava ao financiador; se os € 102 milhões não saíram da cobrança dos créditos inicialmente afectados à operação (e é legítimo duvidar, até evidência em contrário), o Governo teve de lançar mão de receitas fiscais mais recentes para reembolsar parte do que lhe tinha sido adiantado (mas não caracteriza isto uma verdadeira dívida?); fica a ideia de que, pelo menos para o arranque da operação, o Governo escolheu créditos que sabia serem facilmente cobráveis, em prejuízo da sua própria tesouraria. Enfim, fosse outra a entidade envolvida, que não um Governo, e dir-se-ia que este era um caso flagrante de window dressing.
(continua)
Lisboa, Julho de 2006
A. Palhinha Machado