CRÓNICA DE UMA REALIDADE OPACA - 1
Em 2003, o Governo de então viu nos créditos vencidos que Fisco e Segurança Social não conseguiam cobrar a solução para um deficit orçamental que já se previa enorme. Houvesse quem quisesse ficar com eles, e seriam cedidos (isto é, vendidos) de pronto - fossem quantos fossem. O importante era que o encaixe da operação trouxesse o deficit previsto para níveis mais civilizados. Aliás, fazia-se uma ideia bastante aproximada de quanto convinha: para aí € 2 mil milhões. Só havia que dar uns retoques na lei fiscal para assentar, de uma vez por todas, que tratamento o IVA iria dar à cessão de créditos.
Por estranho que pareça (e, na altura, pareceu estranho), foi entendido que as disposições do Código Civil sobre cessão de créditos não satisfaziam. Melhor seria tipificar a titularização de créditos, conferindo-lhe uma natureza eminentemente financeira. E assim se fez, aproveitando-se o ensejo para criar um estatuto de excepção que protegesse o Estado, enquanto cedente (ou originador): contrariamente ao que o velho Código, com bom fundamento, estipula como condição sine qua non para qualquer cessão de créditos, o Estado ficou dispensado de demonstrar a exigibilidade, ou mesmo a existência, dos créditos que pretenda ceder. Hoje percebe-se bem o porquê de tanta cautela. Era, porém, o facto da contabilidade pública ter razões que a razão desconhece que permitia considerar receita corrente (e remédio santo para o deficit) o encaixe da titularização de créditos que tinham vindo a acumular-se, ao longo dos anos, nas gavetas da administração pública.
O que veio a lume sobre esta operação foi pouco e em cima da hora. Apresentada pelo Governo como um caso exemplar de sofisticada engenharia financeira, soube-se, quase no final desse ano: que aqueles dois organismos iriam ceder créditos vencidos no valor de € 11,441.4 milhões; que o encaixe provisório fora fixado nos € 1,765 milhões; e que o encaixe definitivo seria obtido adicionando os valores entretanto cobrados e subtraindo o custo de oportunidade (não revelado) destes € 1,765 milhões mais as comissões devidas pela montagem ( € 5 milhões à cabeça) e pelo acompanhamento (sobre estas nada se dizia) da operação.
Em boa verdade, operações destas já então eram comuns nos mercados financeiros: uma sociedade especialmente constituída para o efeito (o “veículo”) adquire os créditos que são objecto de titularização e emite obrigações no mercado de capitais para assim poder pagar o preço dessa cessão (no caso, o encaixe provisório) e suportar os encargos que certamente vai ter, daí em diante, seja com a gestão e a cobrança de tais créditos, seja com a divulgação periódica das informações a que ficar obrigada. Assim aconteceu também aqui, servindo de “veículo” uma sociedade do universo Citigroup, mas de direito português: Sagres – Sociedade de Titularização de Créditos, SA.
As críticas que se fizeram ouvir tardaram em aparecer, e não foram tantas assim. Políticos da oposição questionaram brandamente a razoabilidade da operação; protestaram alto e bom som contra a falta de informação; admitiram por palpite que talvez 20% dos créditos entregues ficassem por cobrar; e concluíram, sensatamente, que a obrigação de substituir os créditos considerados incobráveis impedia que se conhecesse de antemão, quer o prazo global da operação, quer o seu custo total. Os Bancos portugueses que não participaram na montagem da operação, pelo seu lado, lamentaram-se por não terem sido também convidados - e por aí se quedaram. No plano mais técnico, disse-se que o busílis de toda a operação residia no entendimento que fosse dado à palavra “incobrável”, e que a escassa informação vinda a lume sobre este ponto não podia deixar ninguém descansado. Enfim, houve quem se interrogasse sobre as reais razões que levaram o Governo a pôr de lado o Código Civil, e sobre a verdadeira natureza da operação: um financiamento que deixava intacta a dívida pública? ou mais dívida pública encapotada?
Para obtermos uma visão clara desta operação, e do modo como ela tem vindo a evoluir, dispomos de três fontes, apenas: um Prospecto, registado junto da CMVM e publicado; as Demonstrações Financeiras anuais de Sagres, igualmente publicadas; e o Relatório destinado aos investidores que Sagres divulga semestralmente. Dir-se-ia mais que suficiente. Infelizmente, não: o Prospecto é um denso texto de 155 páginas em inglês (é este o documento que se encontra no site da CMVM); os períodos cobertos pelos Relatórios semestrais não coincidem com o ano civil, logo, não há como compará-los com as Demonstrações Financeiras anuais; e Sagres é o “veículo” de várias outras operações de titularização, com diferentes originadores, algumas anteriores a esta. Do Ministério das Finanças, nada. Seja como for, os artigos seguintes procurarão revelar os aspectos fundamentais de tudo isto.
(continua)
Lisboa, Julho de 2006
A. Palhinha Machado