AS MEDALHAS QUE NÃO TIVE
O peito do herói soviético é um autêntico mar de medalhas. Deve-as tanto ao número de nazis ou chechenos que abateu nas guerras como ao modo eficaz que praticou ao varrer a parada do quartel ou à poupança registada no consumo do desinfectante dos urinóis do Metro de Moscovo. Recitar um poema de louvor ao camarada Secretário-geral do Soviete Supremo também era motivo para a condecoração do jovem Pioneiro da revolução socialista e a prática louvaminheira da hierarquia também ia sendo motivo para o soviético julgar que era herói só pela acumulação de medalhas que ia pendurando do pescoço à cintura passando por tudo quanto era peito.
Só o acto eminente merece destaque; o desempenho cuidadoso da vulgar missão é obrigação funcional e o desleixo é punível. A banalização da condecoração destrói a essência do realce e só se justificava num regime político e económico, o soviético, que nada mais tinha para dar a não ser a flatulência condecorativa.
Também nós, portugueses, estivemos quase a cair na “condecoratite” pois bastava ao militar em comissão no Ultramar não ser punido para ter automaticamente direito a uma medalha. E tanto fazia que se tratasse de operacional no mato em zona de combate como de administrativo em zona urbana sossegada e com turistas à volta. Saindo à Ordem da Região Militar que fulano ou beltrano cumprira a comissão de serviço sem punições, era-lhe automaticamente conferida a condecoração. Contudo, a medalha teria que ser comprada pelo condecorado.
Chegado aos 18 anos lá fui “dar o nome à tropa” e de então em diante lá fui todos os anos informando o Distrito de Recrutamento de que cumprira os estudos com aproveitamento, assim me sendo conferido o adiamento legal de incorporação nas fileiras. Até que cheguei ao fim do curso e me considerei em condições para “ir pr’à tropa”. Que não, que tinham economistas a mais.
- Então você não tem mais nada que fazer? - perguntou-me o Sargento lá de trás do guichet - Venha cá pr’ó ano!
- Muito bem, venho cá pr’ó ano mas, já agora, diga-me cá em que época é que é melhor eu cá vir.
- Olhe: vamos já tratar disso. Você nem cá volta ao Distrito de Recrutamento e vai directamente apresentar-se em Mafra na incorporação de Abril do ano que vem.
E assim foi que fiquei um ano em pseudo-férias ou em pseudo-trabalho (passados quase 40 anos continuo sem saber classificar aquele meu ano de espera) pois passei por uma empresa a que a família estava ligada mas montei a cavalo todos os dias e voltei à ginástica até que... lá fui “assentar praça” em Mafra.
Assim, contei até aqui sete actos voluntários de ingresso no Serviço Militar: dar o nome; confirmar o fim dos cinco adiamentos; apresentar-me no quartel para a recruta.
Não fora o caso de ter engordado cinco quilos durante o primeiro ciclo da recruta e nada de especial haveria para contar, a não ser o facto de ter estado na iminência de ser encaminhado para Infantaria a fim de frequentar o Curso de Comandantes de Companhia e passar a desempenhar as funções de Capitão daquela Arma. Mas à última hora, os Comandos decidiram que os economistas poderíamos optar entre o desempenho das funções de subalternos em Administração Militar (Contabilidade e Pagadoría) ou de Capitães de Infantaria.
Eis como todos os estudiosos de Adam Smith e Milton Friedman seguimos direitinhos para o segundo ciclo da recruta na Escola Prática de Administração Militar.
Se considerarmos cada regresso de fim-de-semana ao quartel (11, no primeiro ciclo da recruta) como um acto voluntário de construção do Mundo Lusófono, somo 18 até aqui, mais outros 11 durante o segundo ciclo da recruta e ainda mais 11 durante o estágio. Tudo, somando 40 vezes que concordei cumprir o Serviço Militar Obrigatório. E depois desta enorme quantidade de actos voluntários, eis-me mobilizado em rendição individual para Moçambique, terra que há muito ambicionava visitar.
Já ia no avião quando um companheiro de viagem me disse que nós, os de Contabilidade e Pagadoría, só tínhamos em Moçambique como colocações possíveis Nampula, Beira ou Lourenço Marques pois os Conselhos Administrativos das Unidades militares espalhadas pela quadrícula tinham sido extintos e a gestão fazia-se conjuntamente nos respectivos Comandos Territoriais. Assim foi que fiquei a saber que iria para uma cidade e não para o mato.
Como todos os que iam em rendição individual, fui ao Quartel-general em Nampula – capital militar de Moçambique – receber colocação e . . . fui colocado em Lourenço Marques. Bem sei que “a sorte protege os audazes” (1) mas a minha audácia ainda estava totalmente por provar.
Chegado a Lourenço Marques, fui colocado na Comissão de Apoio à Liquidação e Extinção dos Conselhos Administrativos a qual ocupava uma “flat” no bairro militar, mesmo junto ao Clube Militar que, por sua vez, se situava perto da Polana, zona chique da cidade.
Faço desde já notar que a documentação a classificar tinha certamente sido colocada na referida casa em conformidade com um processo muito expedito sob o ponto de vista logístico mas algo problemático na perspectiva administrativa: transportada a granel e despejada à pasada.
Não será necessário explicar por que é que nesta posição geográfica não utilizei arma de fogo mas o armamento químico a que recorri na primeira missão militar de que fui incumbido em Moçambique destinava-se a exterminar pretos rastejantes e saltitantes, dava pelo nome de “Dum-Dum” e com ele nos íamos libertando de baratas e pulgas.
Mas ao fim de três esforçados meses de relativamente pouca classificação documental, muito extermínio químico de elementos indesejáveis e com inesquecível convívio social militar e civil, eis que sou recambiado para o Quartel-general em Nampula no âmbito duma determinação de ali juntar todos os economistas em serviço militar.
Colocado na Chefia de Administração e Orçamento, integrei-me de imediato num grupo bem divertido de militares e raparigas (filhas de militares mais velhos que nós), comprávamos três filas do cinema e esgotávamos a capacidade hoteleira quando íamos à Ilha de Moçambique. O serviço era cumprido com a maior normalidade, sem esforço nem sequelas mas com um grande sentido de responsabilidade perante os que, no mato, garantiam o nosso conforto. E se nas horas vagas contribuíamos para que Nampula tivesse um pequeno ensaio de cosmopolitismo, isso era muito positivo para os operacionais que vinham à cidade descansar. Dentre nós, havia os que à noite davam aulas no liceu, os que colaboravam nas missões da Igreja e os que participávamos nas múltiplas actividades da sociedade civil, todos vivendo e deixando viver num espírito de missão histórica a que não conhecíamos o ponto de chegada mas que muito nos fez pensar quando acabou a guerra no Vietname: «Agora foram os americanos; os próximos somos nós» – e fomos mesmo!
Muitas foram as histórias que por lá tivemos mas a que mais carinhosamente recordo é a da minha dactilógrafa Claudina, nada e criada em Nampula, miscelânea de sangues macua e goês, a quem nunca fui capaz de convencer de que em Lisboa havia um comboio que circulava debaixo do chão: - Ah! O Senhor Alferes está a brincar comigo.
No seu percurso de casa para o escritório (oficialmente era um quartel mas de facto tratava-se de um prédio de escritórios), a Claudina encurtava caminho pela floresta de cajueiros mas depois de almoço não resistia a estender o braço e colher um ou dois frutos. Só que aquele fruto fermenta mesmo a sério quando comido assim em fresco e vai daí que a nossa amiga chegava ao serviço sempre com “um grãozinho na asa”. Era por essa hora que lhe apetecia dançar e vai daí tínhamos que lhe fazer a vontade mas púnhamos o Ázito, o soldado que fazia de contínuo da Chefia, de plantão à escada para nos prevenir da chegada do Coronel. Nunca fomos apanhados a dançar, nunca ninguém faltou ao respeito a ninguém e sempre fomos convidados para os casamentos e baptizados que iam ocorrendo entre o pessoal civil autóctone da cidade e suas redondezas. Quando era hora de trabalhar, trabalhava-se; quando havia menos pressão, podíamos descontrair. Fui fiador de um escriturário que precisava de um pequeno empréstimo bancário para fazer um telhado de zinco na sua casa nova. É claro que fui ao festim de inauguração da casa e ele pagou o empréstimo na íntegra antes da minha saída de Nampula. Gente séria nota-se à distância. Chamava-se Boaventura e tinha acabado de casar quando o conheci.
Foi ele que me indicou o Faria Dois Mil, famoso ourives que derretia as moedas de dez Escudos para fazer pulseiras e brincos. Deixava-nos assistir ao trabalho quase todo mas a dada altura voltava-nos as costas com um pedido de desculpas dizendo – Agora tem esperteza, meu Alferes não podes ver. E é claro que o Alferes, eu, nada fazia para ver, estava lá para comprar pulseiras e brincos para a namorada de circunstância e ainda hoje estou convencido de que se visse o que ele escondia não havia de perceber onde podia estar o segredo a que ele chamava “esperteza”.
Sentadas, da direita para a esquerda, a D. Glória cujo apelido esqueci e assessorava o Carlos Traguelho, a minha assessora Claudina Pinto, a «dançarina» Claudina e uma Senhora que já não identifico; nos militares, também a partir da direita, o 1º é o António Seruca Salgado, o 2º sou eu (não, não estou metido num buraco, sou mesmo mais baixo que os outros), o 3º é o Carlos Prieto Traguelho, todos Alferes Milicianos, a que se segue o nosso Comandante José Giro que então era Major, a seguir está o Capitão Melo, o Alf. Mil. Delmiro Carreira e o Sargento Ajudante de que também esqueci o nome; na varanda e sempre a contar da direita, começamos pelo famoso João Lacerda mas depois só identifico o 3º que é o Boaventura.
Um dia houve um forasteiro que, entre outras originalidades, terá limpado os sapatos à toalha das mãos e o funcionário da limpeza, que pomposamente se chamava João Lacerda, colou no autoclismo um escrito que rezava assim:
“É favor que não dêtas pabel zenigo nosão nem limpas zabato gom tualha”
No 14 de Julho de 1972 saí de Nampula no meu carro com destino a Lourenço Marques – para onde fora novamente transferido – fazendo-me acompanhar de dois amigos, o António Sousa Pires e o Miguel Lory. Tive despedida especialmente organizada por esses “nampulitanos” por quem criei amizade, organizou-se cortejo de carros até ao limite da cidade para nos desejarem boa viagem e houve alguma emoção na despedida final.
O meu revólver fez a viagem dentro duma mala e as balas noutra mala, ambas no porta-bagagens. Guerra? Mentira! (2)
Ao fim destes anos todos, que será feito da Claudina, do Boaventura e do João Lacerda? Terão sobrevivido ao comunismo? Temo que o cilindro revolucionário tenha feito das suas . . .
Passados trinta anos, voltei a Moçambique mas fiquei-me pelo sul e não fui a Nampula. Da próxima vez que lá voltar, hei-de procurá-los mas eventualmente terei que me limitar a encomendá-los. E não haverá por certo qualquer confusão uma vez que os macuas estão muito islamizados e o Allah deles é o nosso Deus: no acto da encomendação, é só uma questão de nome e de ritos. Mas irei à procura deles, ai isso é que vou!
Chegado a Lourenço Marques, passei a desempenhar as funções de Tesoureiro do Quartel-general do Comando Territorial do Sul e assim acabei a comissão de serviço na Região Militar de Moçambique: sem actos heróicos nem punições.
Duvido que a máquina militar tenha tido grandes ganhos com esta minha missão; limitou-se a ter algum controle orçamental e a ter quem pagasse alguns compromissos. Mas eu ganhei imenso em mundividência, em humanidade, em experiência.
Onde está o motivo para a condecoração a que por lei tive direito? Fiz a tropa porque quis; não fui operacional; na vida estritamente militar, nada mais fiz do que o que me cumpria – mas reconheço que o fiz empenhadamente e as punições eram tão raras que a sua ausência não se fazia notar.
Por todos estes motivos, entendo que se me dispusesse a receber as medalhas das Campanhas de 1971, 1972 e 1973 em Moçambique, isso seria uma afronta aos operacionais que garantiram o conforto de que usufrui. Por esse mesmo tipo de razões, não me sinto com direito a ombrear com os verdadeiros ex-combatentes nas comemorações do 10 de Junho. A eles, toda a honra.
Eis, portanto, as medalhas que não tive.
Por isso comprei agora a cópia em miniatura da da Ordem de Cristo editada por um jornal de Lisboa em colaboração com o Museu de Presidência. Como a condecoração verdadeira nunca me foi conferida, comprei a cópia sem a mais leve hipótese de impostura.
Tavira, Agosto de 2006
(1) - Lema dos Comandos do Exército Português
(2) - Sobre esta viagem bem como sobre a componente não militar da minha presença em Moçambique durante quase quatro anos, farei outras crónicas