Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

A bem da Nação

AS MEDALHAS QUE NÃO TIVE

 

 

O peito do herói soviético é um autêntico mar de medalhas. Deve-as tanto ao número de nazis ou chechenos que abateu nas guerras como ao modo eficaz que praticou ao varrer a parada do quartel ou à poupança registada no consumo do desinfectante dos urinóis do Metro de Moscovo. Recitar um poema de louvor ao camarada Secretário-geral do Soviete Supremo também era motivo para a condecoração do jovem Pioneiro da revolução socialista e a prática louvaminheira da hierarquia também ia sendo motivo para o soviético julgar que era herói só pela acumulação de medalhas que ia pendurando do pescoço à cintura passando por tudo quanto era peito.

 

Só o acto eminente merece destaque; o desempenho cuidadoso da vulgar missão é obrigação funcional e o desleixo é punível. A banalização da condecoração destrói a essência do realce e só se justificava num regime político e económico, o soviético, que nada mais tinha para dar a não ser a flatulência condecorativa.

 

Também nós, portugueses, estivemos quase a cair na “condecoratite” pois bastava ao militar em comissão no Ultramar não ser punido para ter automaticamente direito a uma medalha. E tanto fazia que se tratasse de operacional no mato em zona de combate como de administrativo em zona urbana sossegada e com turistas à volta. Saindo à Ordem da Região Militar que fulano ou beltrano cumprira a comissão de serviço sem punições, era-lhe automaticamente conferida a condecoração. Contudo, a medalha teria que ser comprada pelo condecorado.

 

Chegado aos 18 anos lá fui “dar o nome à tropa” e de então em diante lá fui todos os anos informando o Distrito de Recrutamento de que cumprira os estudos com aproveitamento, assim me sendo conferido o adiamento legal de incorporação nas fileiras. Até que cheguei ao fim do curso e me considerei em condições para “ir pr’à tropa”. Que não, que tinham economistas a mais.

 

- Então você não tem mais nada que fazer? - perguntou-me o Sargento lá de trás do guichet - Venha cá pr’ó ano!

- Muito bem, venho cá pr’ó ano mas, já agora, diga-me cá em que época é que é melhor eu cá vir.

- Olhe: vamos já tratar disso. Você nem cá volta ao Distrito de Recrutamento e vai directamente apresentar-se em Mafra na incorporação de Abril do ano que vem.

 

E assim foi que fiquei um ano em pseudo-férias ou em pseudo-trabalho (passados quase 40 anos continuo sem saber classificar aquele meu ano de espera) pois passei por uma empresa a que a família estava ligada mas montei a cavalo todos os dias e voltei à ginástica até que... lá fui “assentar praça” em Mafra.

 

Assim, contei até aqui sete actos voluntários de ingresso no Serviço Militar: dar o nome; confirmar o fim dos cinco adiamentos; apresentar-me no quartel para a recruta.

 

Não fora o caso de ter engordado cinco quilos durante o primeiro ciclo da recruta e nada de especial haveria para contar, a não ser o facto de ter estado na iminência de ser encaminhado para Infantaria a fim de frequentar o Curso de Comandantes de Companhia e passar a desempenhar as funções de Capitão daquela Arma. Mas à última hora, os Comandos decidiram que os economistas poderíamos optar entre o desempenho das funções de subalternos em Administração Militar (Contabilidade e Pagadoría) ou de Capitães de Infantaria.

 

Eis como todos os estudiosos de Adam Smith e Milton Friedman seguimos direitinhos para o segundo ciclo da recruta na Escola Prática de Administração Militar.

 

Se considerarmos cada regresso de fim-de-semana ao quartel (11, no primeiro ciclo da recruta) como um acto voluntário de construção do Mundo Lusófono, somo 18 até aqui, mais outros 11 durante o segundo ciclo da recruta e ainda mais 11 durante o estágio. Tudo, somando 40 vezes que concordei cumprir o Serviço Militar Obrigatório. E depois desta enorme quantidade de actos voluntários, eis-me mobilizado em rendição individual para Moçambique, terra que há muito ambicionava visitar.

 

Já ia no avião quando um companheiro de viagem me disse que nós, os de Contabilidade e Pagadoría, só tínhamos em Moçambique como colocações possíveis Nampula, Beira ou Lourenço Marques pois os Conselhos Administrativos das Unidades militares espalhadas pela quadrícula tinham sido extintos e a gestão fazia-se conjuntamente nos respectivos Comandos Territoriais. Assim foi que fiquei a saber que iria para uma cidade e não para o mato.

 

Como todos os que iam em rendição individual, fui ao Quartel-general em Nampula – capital militar de Moçambique – receber colocação e . . . fui colocado em Lourenço Marques. Bem sei que “a sorte protege os audazes” (1) mas a minha audácia ainda estava totalmente por provar.

 

Chegado a Lourenço Marques, fui colocado na Comissão de Apoio à Liquidação e Extinção dos Conselhos Administrativos a qual ocupava uma “flat” no bairro militar, mesmo junto ao Clube Militar que, por sua vez, se situava perto da Polana, zona chique da cidade.

 

Faço desde já notar que a documentação a classificar tinha certamente sido colocada na referida casa em conformidade com um processo muito expedito sob o ponto de vista logístico mas algo problemático na perspectiva administrativa: transportada a granel e despejada à pasada.

 

Não será necessário explicar por que é que nesta posição geográfica não utilizei arma de fogo mas o armamento químico a que recorri na primeira missão militar de que fui incumbido em Moçambique destinava-se a exterminar pretos rastejantes e saltitantes, dava pelo nome de “Dum-Dum” e com ele nos íamos libertando de baratas e pulgas.

 

Mas ao fim de três esforçados meses de relativamente pouca classificação documental, muito extermínio químico de elementos indesejáveis e com inesquecível convívio social militar e civil, eis que sou recambiado para o Quartel-general em Nampula no âmbito duma determinação de ali juntar todos os economistas em serviço militar.

 

Colocado na Chefia de Administração e Orçamento, integrei-me de imediato num grupo bem divertido de militares e raparigas (filhas de militares mais velhos que nós), comprávamos três filas do cinema e esgotávamos a capacidade hoteleira quando íamos à Ilha de Moçambique. O serviço era cumprido com a maior normalidade, sem esforço nem sequelas mas com um grande sentido de responsabilidade perante os que, no mato, garantiam o nosso conforto. E se nas horas vagas contribuíamos para que Nampula tivesse um pequeno ensaio de cosmopolitismo, isso era muito positivo para os operacionais que vinham à cidade descansar. Dentre nós, havia os que à noite davam aulas no liceu, os que colaboravam nas missões da Igreja e os que participávamos nas múltiplas actividades da sociedade civil, todos vivendo e deixando viver num espírito de missão histórica a que não conhecíamos o ponto de chegada mas que muito nos fez pensar quando acabou a guerra no Vietname: «Agora foram os americanos; os próximos somos nós» – e fomos mesmo!

 

Muitas foram as histórias que por lá tivemos mas a que mais carinhosamente recordo é a da minha dactilógrafa Claudina, nada e criada em Nampula, miscelânea de sangues macua e goês, a quem nunca fui capaz de convencer de que em Lisboa havia um comboio que circulava debaixo do chão: - Ah! O Senhor Alferes está a brincar comigo.

 

No seu percurso de casa para o escritório (oficialmente era um quartel mas de facto tratava-se de um prédio de escritórios), a Claudina encurtava caminho pela floresta de cajueiros mas depois de almoço não resistia a estender o braço e colher um ou dois frutos. Só que aquele fruto fermenta mesmo a sério quando comido assim em fresco e vai daí que a nossa amiga chegava ao serviço sempre com “um grãozinho na asa”. Era por essa hora que lhe apetecia dançar e vai daí tínhamos que lhe fazer a vontade mas púnhamos o Ázito, o soldado que fazia de contínuo da Chefia, de plantão à escada para nos prevenir da chegada do Coronel. Nunca fomos apanhados a dançar, nunca ninguém faltou ao respeito a ninguém e sempre fomos convidados para os casamentos e baptizados que iam ocorrendo entre o pessoal civil autóctone da cidade e suas redondezas. Quando era hora de trabalhar, trabalhava-se; quando havia menos pressão, podíamos descontrair. Fui fiador de um escriturário que precisava de um pequeno empréstimo bancário para fazer um telhado de zinco na sua casa nova. É claro que fui ao festim de inauguração da casa e ele pagou o empréstimo na íntegra antes da minha saída de Nampula. Gente séria nota-se à distância. Chamava-se Boaventura e tinha acabado de casar quando o conheci.

 

Foi ele que me indicou o Faria Dois Mil, famoso ourives que derretia as moedas de dez Escudos para fazer pulseiras e brincos. Deixava-nos assistir ao trabalho quase todo mas a dada altura voltava-nos as costas com um pedido de desculpas dizendo – Agora tem esperteza, meu Alferes não podes ver. E é claro que o Alferes, eu, nada fazia para ver, estava lá para comprar pulseiras e brincos para a namorada de circunstância e ainda hoje estou convencido de que se visse o que ele escondia não havia de perceber onde podia estar o segredo a que ele chamava “esperteza”.

 

  Sentadas, da direita para a esquerda, a D. Glória cujo apelido esqueci e assessorava o Carlos Traguelho, a minha assessora Claudina Pinto, a  «dançarina» Claudina e uma Senhora que já não identifico; nos militares, também a partir da direita, o 1º é o António Seruca Salgado, o 2º sou eu (não, não estou metido num buraco, sou mesmo mais baixo que os outros), o 3º é o Carlos Prieto Traguelho, todos Alferes Milicianos, a que se segue o nosso Comandante José Giro que então era Major, a seguir está o Capitão Melo, o Alf. Mil. Delmiro Carreira e o Sargento Ajudante de que também esqueci o nome; na varanda e sempre a contar da direita, começamos pelo famoso João Lacerda mas depois só identifico o 3º que é o Boaventura.

 

Um dia houve um forasteiro que, entre outras originalidades, terá limpado os sapatos à toalha das mãos e o funcionário da limpeza, que pomposamente se chamava João Lacerda, colou no autoclismo um escrito que rezava assim:

 

“É favor que não dêtas pabel zenigo nosão nem limpas zabato gom tualha”

 

No 14 de Julho de 1972 saí de Nampula no meu carro com destino a Lourenço Marques – para onde fora novamente transferido – fazendo-me acompanhar de dois amigos, o António Sousa Pires e o Miguel Lory. Tive despedida especialmente organizada por esses “nampulitanos” por quem criei amizade, organizou-se cortejo de carros até ao limite da cidade para nos desejarem boa viagem e houve alguma emoção na despedida final.

 

O meu revólver fez a viagem dentro duma mala e as balas noutra mala, ambas no porta-bagagens. Guerra? Mentira! (2)

 

Ao fim destes anos todos, que será feito da Claudina, do Boaventura e do João Lacerda? Terão sobrevivido ao comunismo? Temo que o cilindro revolucionário tenha feito das suas . . .

 

Passados trinta anos, voltei a Moçambique mas fiquei-me pelo sul e não fui a Nampula. Da próxima vez que lá voltar, hei-de procurá-los mas eventualmente terei que me limitar a encomendá-los. E não haverá por certo qualquer confusão uma vez que os macuas estão muito islamizados e o Allah deles é o nosso Deus: no acto da encomendação, é só uma questão de nome e de ritos. Mas irei à procura deles, ai isso é que vou!

 

Chegado a Lourenço Marques, passei a desempenhar as funções de Tesoureiro do Quartel-general do Comando Territorial do Sul e assim acabei a comissão de serviço na Região Militar de Moçambique: sem actos heróicos nem punições.

 

Duvido que a máquina militar tenha tido grandes ganhos com esta minha missão; limitou-se a ter algum controle orçamental e a ter quem pagasse alguns compromissos. Mas eu ganhei imenso em mundividência, em humanidade, em experiência.

 

Onde está o motivo para a condecoração a que por lei tive direito? Fiz a tropa porque quis; não fui operacional; na vida estritamente militar, nada mais fiz do que o que me cumpria – mas reconheço que o fiz empenhadamente e as punições eram tão raras que a sua ausência não se fazia notar.

 

Por todos estes motivos, entendo que se me dispusesse a receber as medalhas das Campanhas de 1971, 1972 e 1973 em Moçambique, isso seria uma afronta aos operacionais que garantiram o conforto de que usufrui. Por esse mesmo tipo de razões, não me sinto com direito a ombrear com os verdadeiros ex-combatentes nas comemorações do 10 de Junho. A eles, toda a honra.

 

Eis, portanto, as medalhas que não tive.

 

Por isso comprei agora a cópia em miniatura da da Ordem de Cristo editada por um jornal de Lisboa em colaboração com o Museu de Presidência. Como a condecoração verdadeira nunca me foi conferida, comprei a cópia sem a mais leve hipótese de impostura.

 

 

Tavira, Agosto de 2006

 

 Henrique Salles da Fonseca

 

(1) - Lema dos Comandos do Exército Português

(2) - Sobre esta viagem bem como sobre a componente não militar da minha presença em Moçambique durante quase quatro anos, farei outras crónicas

7 comentários

Comentar post

Mais sobre mim

foto do autor

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2014
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2013
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2012
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2011
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2010
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2009
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2008
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D
  235. 2007
  236. J
  237. F
  238. M
  239. A
  240. M
  241. J
  242. J
  243. A
  244. S
  245. O
  246. N
  247. D
  248. 2006
  249. J
  250. F
  251. M
  252. A
  253. M
  254. J
  255. J
  256. A
  257. S
  258. O
  259. N
  260. D
  261. 2005
  262. J
  263. F
  264. M
  265. A
  266. M
  267. J
  268. J
  269. A
  270. S
  271. O
  272. N
  273. D
  274. 2004
  275. J
  276. F
  277. M
  278. A
  279. M
  280. J
  281. J
  282. A
  283. S
  284. O
  285. N
  286. D